domingo, 28 de fevereiro de 2010
Desafio X - Resposta
- Passa-me o telefone, por favor.
- Não tens saudades de quando escrevíamos cartas? De quando esperávamos ansiosos por uma resposta, de ponderar no que escrevíamos naquela letra tão cuidada?
- Não. Perdíamos imenso tempo. Liga-me isto à tomada, que preciso de pôr o computador a carregar.
- E não sentes falta de teres de ler e pesquisar em livros, em vez de automaticamente copiares a informação que procuras? Agora a internet tem tudo, as pessoas nem precisam de sair de casa para terem o que procuram.
- Como te disse, isso veio-nos poupar imenso tempo e trabalho.
- Como é que pode ser cansativo ir a uma biblioteca folhear livros e estar rodeado daquele cheiro hipnotizante? Agora há cada vez menos pessoas a ler, a ter livros na mão. Arranjam documentos no computador e acham que é igual. Até os jornais ficam abandonados nas bancas, porque se tem tudo no computador ou telemóvel.
- Se o que temos agora é muito mais prático, porquê voltar atrás? Diz-me algo de mau que a tecnologia tenha trazido.
- Está a destruir o planeta e a deixar-nos doentes.
- Para isso temos a medicina que cada vez está mais evoluída, Temos tudo ao nosso alcance.
- E com isso as pessoas vivem cada vez mais fechadas em si. Cada um quer mais posses, consumidores que nunca estão satisfeitos. Um por si, e todos por eles próprios. Temos tudo ao nosso alcance, e no entanto, vivemos mais infelizes que nunca.
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010
Desafio X- Resposta
Amou-a tanto. Não se consegue imaginar sem ela, enquanto o passado é cheio e quente não germina a urgencia de um futuro . Solitáriamente diferente. Mas não consegue mantê-la, não é esse ser. Não consegue mante-la. Sabe que a não ama porque já a amou, ama-a ainda para saber que o que sente é um gasto pedaço do amor que ainda lhe bate no peito. Não a ama , tem o coraçao preenchido com o vazio dela. Porém, o nada que lhe preenche o coraçao tem o seu perfume . Ama-a ainda. Embora a já não ame, todas as estrelas morrem.
Mas não estavam mortas quando ambos contemplavam o céu numa noite qualquer. Talvez fria, talvez quente .Mas ele agora sabe que essas mesmas estrelas eram a reflexao luminosa perfeita da sua propria morte. Não a ama já porque sabe que ainda a ama. Tem de amar, as estrelas ainda dançam no céu uma dança quieta e silenciosa. Uma dança morta. Porque todas as estrelas morreram, a luz simplesmente ainda não fulminou o coraçao dele.
Ele sabe que a não ama mas que ainda a ama. O suficiente para lhe doer saber que será de outro. Ou que ele amará outra. Não sabe ser esse ser, que a não ama. Mas não aguenta continuar a ser esse, que a ama ainda. E doi-lhe, outro no lugar que ele ocupava nos olhos dela. Ou ele substitui-la, porque ele ainda a ama. O suficiente para que o coraçao dele já não tenha a cor dos olhos dela.
Porque ele a ama ( embora saiba perfeitamente que já não ama) para reconhecer que é o fim. Triste e suavemente duro. É apenas o fim, um corte rapido e radical que arrasta consigo no tempo todo o enterrar de memorias que . Ele se quer esquecer para não sofrer com a felicidade melodica que carrega na sua unicidade estéril.
Desafio IX - Resposta
“Só criam problemas, aqueles rebeldes. Sofrem de falta de atenção. Ocupam-nos as ruas com os seus cartazes e hinos, e param a cidade para nos impor as suas loucuras.” É o que os ouço dizer.
O que eles não sabem (ou não querem saber) é que há um propósito para a nossa “rebeldia”. Se criamos confusão é para chamar a atenção, não para nós, mas para um fim, um objectivo. Somos diferentes porque a normalidade está a matar o planeta. Criticamos e acusamos para os tentar acordar para a realidade. Não queremos atenção para a nossa pessoa, mas sim para aquilo que temos a dizer.
Mas eles não querem saber. Olham para o comportamento e não para o que ele quer dizer. Nós tentamos. Quando for tarde demais, arrependimento não vos irá servir de nada.
terça-feira, 23 de fevereiro de 2010
Desafio X
"Num mundo cada vez mais digital, uma pessoa dá por si a ter uma certa vontade de ser mais analógica."
Nuno Markl
Wings para Ricardo:
Legenda
para aquela estrela
azul
e fria
que me apontaste
de madrugada:
amar é entristecer
sem corrompermos
nada.
Carlos Oliveira
Blue Storm para Alice in Wonderland:
"If I had a world of my own, everything would be nonsense. Nothing would be what it is, because everything would be what it isn't. And contrary wise, what is, it wouldn't be. And what it wouldn't be, it would. You see?"
Mad Hatter
Alice in Wonderland, Lewis Carrol
Alice in Wonderland para Wings:
(...) "De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
A voz, o corpo claro. Os seus olhos infinitos.
Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda.
É tão curto o amor, tão longo o esquecimento. " (...)
Pablo Neruda - Posso escrever os versos mais tristes esta noite
Ricardo para Tiago:
“I don't believe in an afterlife, so I don't have to spend my whole life fearing hell, or fearing heaven even more. For whatever the tortures of hell, I think the boredom of heaven would be even worse.”
Isaac Asimov
segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010
Desafio IX - Resposta
Eu vivia desenfreadamente na crista da onda mais azul. Um brilho azul-escuro descansava na profundidade infinita do Mar, onde sempre estiveram guardadas as minhas asas. E eu sempre quis isso, as inúmeras viagens que o Mar contém.
Quando me prendias a terra eu ficava na berma da onda, a sentir o cheiro do sal que já tinha dado a volta ao Mundo. Era ali na praia, que tudo começava, que tudo acabava e que tudo estava no meio.
Eu vivia na praia mais do que vivia na vida. Quando chegava a tempestade, ficava eléctrica. Quando era Verão tornava-me nostálgica.
No resto do tempo habitava-me um sonambulismo teimoso que me afastava dos teus olhos inquisidores.
Até que um dia, finalmente as asas começaram a desabrochar-me. Sob os teus olhos impacientes gritei de dor, enquanto as duas asas me rasgaram as omoplatas. E finalmente, naquele dia o monstro que prendeste durante tanto tempo mostrou-se mais aberrante e luminoso do que nunca.
E descobriste uma beleza tão infinita nos milhões de cristais azuis das minha asas que a tua respiração congelou. Um grito seco morreu na tua boca aberta.
Levaste as mãos às costas e sentiste a memória profunda da cicatriz, quando te cortaram as asas à nascença.
Desafio IX - Resposta
O último, esse foi mais difícil de dobrar. Uma empresa pequenina de um tipo novo, mas um brilhante fabricante de aparelhos para imagiologia, com 70% do mercado. E nenhum império da electrónica está completo se não dominar nas máquinas de ressonância magnética, de tomologia de emissão de positrões, de radiografia por raios x. "É o domínio absoluto no negócio da saúde", disse ele, triunfante, enquanto presidente do conselho de administração, durante a reunião de accionistas. "É o sector onde nos falta dominar." Mas o outro tipo não queria vender. Dizia que aquele era o negócio da vida do pai, falecido de ataque cardíaco no ano anterior. Uma doença não diagnosticada. Mas ele não tinha chegado ao topo da empresa se não tivesse astúcia suficiente para vencer um miúdo. E, como sempre nestas alturas, ignorou a sua esposa para se fechar durante noites ininterruptas no escritório a investigar. Remexeu no passado; falou com amigos, com colegas, com ex-namoradas. "É assim que nos mantemos acima da concorrência", dizia sempre, "conhecendo os seus defeitos, e destruíndo-os onde pudermos." Os competidores mais vaidosos, destróem-se com notícias de jornal; os mulherengos, com chantagem; os viciados no jogo, com batota; e os invencíveis, os poucos que não têm podres, nunca se chegam a desafiar. Quando não se pode ganhar, não se luta. Naquele caso, a estratégia tinha que ser diferente. O miúdo era um sonhador. Esse era o seu podre. Então, uma noite, convidou-o para jantar.
Depois do jantar, animado pela fluência de um conhaque caro, o miúdo contou, envergonhado as suas ideias loucas sobre máquinas espantosas. "Imagine só o senhor! No nosso sangue há tanto ferro que nós acabamos por morrer de ferrugem. Só que está muito espalhado. Agora imagine se conseguíssemos inventar um íman gigante que apanhasse o ferro todo do nosso corpo... Já estou a ver, pessoas coladas magneticamente em placas verticais que andavam pela cidade a toda a velocidade! Acabavam-se os carros, acabavam-se os acidentes de automóvel." A sua esposa estava encantada, ria como se fosse alguma coisa de especial. O idiota, herdou um negócio de milhões que mantinha para poder esbanjar o lucro a investigar um autocarro de velcro.
E no dia em que lhe fez a proposta para a aquisição, a partir do 20º andar do seu escritório envidraçado com vista para a Praça de Espanha, acrescentou uma pequena variação que fez o miúdo aceitar tudo o que até então recusara. Ofereceu-lhe um financiamento de milhões e um contrato a cinco anos como investigador numa universidade de Londres. Poderia trabalhar no seu íman de autocarros, ou lá o que era. "Mas assino já o contrato e transferem o dinheiro já hoje?" Deus, quanta pressa por ver lá o dinheiro e ter a situação dele segura. "Sim, agora mesmo antes até da venda." E o miúdo portou-se como um miúdo. Aceitou a proposta, assinou na linha infame que dizia "all things taken into account, I would have done the same thing to you", e ainda o abraçou emocionado. "Obrigado, obrigado por esta oportunidade magnífica." O idiota.
Passara-se uma semana, e ainda em regozijo pelo triunfo e pelo louvor na reunião de acionistas que entretanto decorrera, passava horas de mãos nos bolsos das calças olhando pela janela envidraçada do 20º andar. Olhava o trânsito, e as pessoas que cá em baixo se movimentavam a espaços entre semáforos pareciam-lhe não ter segredos. Ele era o derradeiro equipamento de imagiologia. Ele era capaz de descobrir em toda a gente os interruptores certos. Sentia-se na proa de um navio. Sentia-se invencível. E recebeu uma mensagem escrita. Abriu o telemóvel num gesto só, e depois de ler deixou-o cair. "Se tivesses desconfiado que tinhas um rival, tinhas-lhe dado a volta, a ele e a mim. E eu nunca me escaparia desta jaula de casamento onde me prendeste. Mas como não pressentiste um inimigo, desleixaste-te. Por isso adeus. Vou para Londres. E não aches que eu sou má pessoa. All things taken into account, you would have done the same thing to me."
O idiota. Afinal ele não stava a competir nos negócios. Afinal ele estava a competir... pela mulher.
Desafio VIII - Resposta
"Incompetence - When you earnestly believe you can compensate for a lack of skill by doubling your efforts, there's no end to what you can't do.”
Chegamos a certas alturas da vida e sentimos que falhamos. Parece que tudo foi em vão, que por mais que tentemos tudo corre mal.
- Há-de melhorar.
Mas não. Incentivos parecem parvos, porque ninguém nos percebe. Que raio de incompetentes que somos, para falhar sempre em tudo. (Não que assim seja, mas ficamos cegos, muito cegos).
- Não te faças de vítima.
Mas não somos todos? Fomos feitos para falhar e ser miseráveis e tentar tirar partido disso. Trepar as paredes do poço, aprender e evoluir. Acho que até isso não sei fazer.
- Tens de acreditar. Acredita naquilo que fazes.
Ah! Ora aí está um bom conselho! Pelos vistos não se faz nada de jeito se não acreditarmos que conseguimos. Um simples mecanismo psicológico ajuda-nos a ultrapassar barreiras feitas de tijolos de incompetência.
- Agora que acreditas, tenta outra vez...
... e outra, outra, outra... Vê o castelo a ganhar forma, o quadro a ganhar cor, o puzzle a completar-se. Ou seja, vê os teus sucessos a acumularem-se.
Quem diria. Afinal não falhei assim tanto.
domingo, 21 de fevereiro de 2010
Desafio IX - Resposta
Not because they tell us that dragons exist.
But because they tell us that dragons can be beaten."
Coraline e a Porta Secreta - Neil Gaiman
O João corria que nem louco naquele sábado. Era o seu dia de anos, e mesmo o dia que ameaçava chuva não podia ser mais bonito, com os seus ténis novos, a camisola de lã da avó e os seus três livros novos. O João era apenas mais uma criança, com os mesmos gostos e as mesmas diversões das outras crianças. Habitualmente era mais calmo e recatado, mas não naquele sábado.
O jardim era pequeno. Era apenas um pouco de verde, uns bancos, um café, tudo rodeado por prédios a toda a volta. Era um jardim pequeno, com poucas árvores, ideal para os pais que não se queriam cansar demais e que de certeza não perderiam os filhos de vista. E que descanso era para os pais de João, que corria que nem doido, umas vezes perto dos pais, outras longe.
Perdendo o filho momentaneamente de vista, foram encontrá-lo de novo sentado ao lado de uma criança, com quem partilhava um dos livros que lhe tinha oferecido. João ainda não sabia ler, mas desfolhava com a criança o livro. E falava com ela, e ambas riam. A outra criança ria também, e esbracejava. Os pais do João continuaram a sua conversa, com um olho um no outro, e outro no João. Depois João correu até eles. Pegou em mais um livro, e disse rapidamente “vou ler outra história”, enquanto corria de volta para a criança. Ambos sorriram. O importante era que se divertisse no seu dia de anos.
Depois chegou outra pessoa, que se aproximou do banco. Olhou para as crianças, com um sorriso vago nos lábios. Depois interpelou, a medo, o casal.
- “Desculpem incomodar, mas… é o vosso filho?”
- “Sim, é. Porque pergunta?”
- “O Ricardo é o meu filho… a criança com quem o vosso filho está a brincar.”
- “Pelos vistos estão muito divertidos a ver aquele conto de fadas. Oferecemos-lhe o livro agora porque ele vai entrar para a escola e convém começar a ter livrinhos para ler, mas ele já sabe a história de cor, é bem capaz de o contar todo só com as imagens.”
- “Pois, mas… sabem, o… o Ricardo, o meu filho… ele é surdo.”
Uma onda de vergonha passou pelos pais de João. “Esbracejar”, que absurdo! Podiam ter compreendido mais cedo.
- “Desculpe, o João não faz por mal…”
- “Desculpar? Claro que não, é óptimo para o Ricardo arranjar amigos…nem sempre é fácil, as crianças acabam por não gostar muito de brincar com ele.”
- “O João adora histórias, é só ter quem lhe dê atenção para as poder partilhar…”
E depois João voltou, buscar outro livro.
- “João, estás-te a divertir?”
- “Sim, estou a ler as histórias para aquele menino. Ele gosta muito.”
- “João… tu sabes que o menino não te consegue ouvir?”
- “Não faz mal mãe. Eu também não sei ler. E a história também é só a brincar.”
Um grave silêncio apoderou-se daquele banco de jardim, conforme João se afastou e se sentou ao lado da outra criança, e de novo retomou história do livro. Tantos adultos, e foi precisa uma criança para lhes ensinar a maior lição de todas: o que interessa não é se os monstros existem ou não, o que interessa é que todos os monstros podem ser vencidos.
Desafio IX- Resposta
Talvez lhe deixasse um papel. Talvez a ajudasse a ter consciencia do que ia fazer. Talvez a ajudasse a clarificar aquela situaçao, talvez a permitisse compreender melhor. Mas quando começou a doloroso desenho de simbolos perceptiveis num resto de folha a mão doeu-lhe. Seria uma razao sólida para se ir embora? Era de todo uma razao ?
Não importava. Era insuportavel. A forma como ele se entregava à escrita. E coma suavidade de um final de tarde de Verão, ela teve consciencia da dor que lhe causaria e da forma como ele se curararia. De como abandonaria as lágrimas que nunca choraria na folha de papel, o sentimento de dor profunda ficaria lá, no som melodicamente triste que conseguia transmitir nas palavras que voavam dos seus dedos.
Para ele, a escrita era o suporte da existencia. Escrevia sempre, escrevia sobre tudo. A escrita dele acendia um milagre, garantia a manutençao de um sonho.
Pegou na mala, definitivamente ia-se embora. A escrita dele preencher-lhe-ia o buraco que a traição dela ia provocar. Ele regenear-se-ia em mais um brilhante livro. Que ela veria à venda nas mais ilustres livrarias.
As palavras dele tinham demasiado poder. Eram um mundo à parte só dele. Ao qual ela nunca foi convidada a entrar. Lá no fundo , reconhecia-o, sim. Invejava aquele processo de sobrevivencia dele, aquela arte levemente instruida.
Lá no fundo, sabia que nunca mais o queria ver. Era insuportável, a beleza dele ao candeeiro. E a fealdade dela, porque o nunca compreenderia. Ou compreenderia a libertaçao que era a escrita dele.
sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010
Desafio IX
"Escreve. Seja uma carta, um diário ou umas notas enquanto falas ao telefone, mas escreve. Procura desnudar a tua alma por escrito, ainda que ninguém leia; ou, o que é pior, que alguém acabe lendo o que não querias. O simples acto de escrever ajuda-nos a organizar o pensamento e a ver com mais clareza o que nos rodeia. Um papel e uma caneta fazem milagres, curam dores, consolidam sonhos, levam e trazem a esperança perdida. As palavras têm poder."
Paulo Coelho, in Maktub
Wings para Blue Storm:
"Quando um sabio aponta para a lua o idiota olha para o dedo"
Provérbio Chinês
Ricardo para Alice in Wonderland:
"Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti."
Friedrich Nietzsche
Alice in Wonderland para Tiago:
"Fairy tales are more then true. Not because they tell us that dragons exist. But because they tell us that dragons can be beaten."
Coraline e a porta secreta - Neil Gaiman
Blue Storm para Ricardo:
"I have been up against tough competition all my life. I wouldn't know how to get along without it."
Walt Disney
Desafio VIII - Resposta
Horácio
Sempre associei liberdade com voar. Sempre olhei para o céu invejando todos os pássaros, todos os aviões, todas as folhas caídas no Outono.
O aproveitar da vida não pode ser algo de fixo ou de estipulado, algo determinado por uma lei, por uma sociedade, por uma cultura ou uma religião. Aproveitar a vida não pode ser simplesmente ver os dias a passar da janela, de um quarto fechado, de um qualquer espaço que nos limite o movimento e nos tape a visão para o céu. Mas também não pode ser simplesmente louco, partir à aventura, só viajar, ou só trabalhar, ou só gozar e festejar e nem sequer dormir por uma hora que seja num fim-de-semana de Verão. Não. Tem de haver algo mais. E não, eu não considero que aproveite bem a vida, eu próprio não sei o que é esse algo mais…ou sei, talvez, mas escuta… será que alguém a aproveita realmente? E já agora, o que é realmente aproveitar a vida? Não me dizes?... O teu silêncio preocupa-me.
No outro dia diagnosticaram ao meu colega do lado na empresa um tumor maligno. Um tumor no pâncreas. Um tumor daqueles que não se remove nem se cura. Daqueles que fica lá até ao dia em que finalmente a ele sucumbimos, ou a qualquer outra complicação derivada dele. Nesse dia o meu colega não veio trabalhar. Terá ficado em casa, suponho. A chorar? A confortar-se com os familiares? A decidir como melhor aproveitar os três a seis meses que lhe restam?
Não sei. Mas no dia seguinte lá estava ele. De fato. Impecável. Impenetrável. Sentado à sua secretária, fazendo o mesmo que faz todos os dias. Ninguém lhe dirigiu palavra. O seu semblante era de tal forma sério que ninguém teve coragem de o incomodar. Sorriu duas ou três vezes. Aproveitar a vida? Como? Quando? Será nos últimos dias antes de morrer que o fará? Quando estiver já no hospital, numa cama onde terminará os seus dias?
Seremos todos fracos? Ou faz apenas parte da nossa condição? Não conseguir dizer “não” sempre que queremos. Não conseguirmos quebrar as barreiras que todos queremos quebrar. Não conseguirmos tomar uma mão forte e decidida na nossa vida. Não conseguirmos gritar, não conseguirmos blasfemar alto e em bom som. E depois fraquejamos. E quanto mais fraquejamos mais tendemos a fraquejar, e a conformarmo-nos, e a sermos esquecidos. E quanto mais nos conformamos mais vemos o nosso dia chegar. “Causa de morte: tristeza”. Ninguém irá ao funeral…
Não. Não pode ser. Aproveitar a vida tem de ser mais que isso. Aproveitar a vida tem de ser uma luta estóica com a Morte. Com a morte física e com a morte psicológica. Com a morte por esquecimento, por tristeza, por alheamento do mundo e da vida que vivemos. Aproveitar a vida tem de ser travar uma luta de cavalheiros com a Morte. Dizer alto: “Morte, eu sei que estás aí, e eu sei que esperas ansiosamente pelo dia. Mas até esse dia chegar, em que eu conformar-me-ei com a tua vitória, vou lutar contra ti, e contra todos os que como tu tentam que a morte psicológica venha ainda antes da física…”.
Porque a morte é a melhor coisa que pode acontecer a cada um. O medo da morte é o melhor motor de arranque que podemos ter. E sim, todos temos medo da morte. Todos choramos quando alguém nos determina um prazo máximo para viver, e todos sentimos um enorme arrepio de medo quando sentimos o momento próximo. A morte é o melhor da vida. A morte é o que nos tem de fazer querer viver, querer aproveitar, querer estar, querer ser, querer deixar uma marca forte e pessoal no mundo. Antes de tudo acabar.
Porque a gaivota começa a morrer lentamente quando perde uma asa, eu olho de novo para o céu. Não podia ter melhor metáfora para o meu carpe diem diário. O céu lembra-me como é importante aproveitar a vida. Como é importante voar enquanto temos asas. Como é importante tomarmos o pulso da nossa vida, e dizer “não”, e dizer “basta”, e dizer “merda”.
E gritar.
E voar.
quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010
Desafio VIII - Resposta
E eu acordo.
Sou amante do meu silêncio e amado pelo meu grito. E por isso sei que por mais belo que seja o suave correr do vento pelas asas de uma borboleta, nada aumenta a sedução dos meus momentos criativos como a electricidade orgásmica que se partilha pelo agitar da música. Nada enriquece todas as minhas vidas como o calor sonoro que me atinge como uma onda quando se abre a cortina. Nada me enche de cor os meus sonhos, e de palavras o meu imaginário, como o indistinto rugir que se agita com as curvas e os nós que dou ao meu corpo semi despido. Balanço-me, quebro o ar com um timbre violento. E à minha frente uma textura de peles, cabelos e roupa responde a cada variação. Sou um encantador de borboletas. E apenas me renego a viver a vida dos outros, apenas não me entrego ao sono eterno, porque não há sexo nem droga que se compare ao final da canção, quando, agitando mais fortemente as asas, clamando por libertação da harmonia que vem do palco, e desfeita em aplausos, a borboleta grita.
E eu acordo.
terça-feira, 16 de fevereiro de 2010
Desafio VIII - resposta
pois sendo mais do que um espetáculo de mim mesmo,
eu tenho que ter o melhor espetáculo que posso.
E, assim, me construo a ouro e sedas, em salas
supostas, invento palco, cenário para viver o meu sonho
entre luzes brandas e músicas invisíveis
Eu tenho o dever de sonhar. Sempre soube que esse era o meu dever. Porque é a única coisa que sei fazer.
E era como agarrar o meu talento com as mãos e moldar espectáculos com fogo-de-artifício, bolhas de sabão e algodão doce. Era encantador ver os aplausos aos mundos múltiplos inventados em pétalas de flores.
Eu ficava quieta, no fundo do palco, observando a observação dos meus mundos.
Depois cresci e os meus sonhos evoluíram. Deixaram o açúcar do algodão agarrado às minhas mãos e tornaram-se abstractos e surrealistas. Eram uma névoa difusa de premonições com sentido. Um ponteiro magnético, pólo de ferro de ele próprio. Mas destes sonhos não senti aplausos. Estes sonhos não tinham cor, só prometiam cor. Só que eu não sabia fazer mais nada e por isso continuei a sonhá-los.
Mais tarde descobri que depois de sonhados, os meus sonhos eram representados. Alguém via a névoa difusa do meu caminho inventado e percorria-o. E ele torna-se azul, depois verde, depois amarelo, laranja, vermelho. Depois era real.
E ocasionalmente, alguém aplaudia. Um som fundo, que ecoava na maravilhosa caverna de sonhos do meu coração.
Afinal, eu sou mais do que um espectáculo de mim mesmo. E tenho o melhor espectáculo de todos.
segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010
Desafio VIII- Resposta
Sentado na cadeira como se estivesse morto. Talvez estivesse a morrer.Ou a curar-se. Não ha assim tanta diferença, entre morrer e nascer. Não existe assim tanta diferença entre o seu corpo abandonado na cadeira e o espelho que o reflectia. Nas duas imagens era dele aquela tristeza desumana e escura.
Porque fez o que os outros mecanicamente bloquearam. Lembrou-se consecutivamente do que os outros se esqueceram. Reparou que lhe era insuportavel o pequeno e insignificante pormenor que os outros aprenderam a aceitar.
Não era feliz. Certo, não era profundamente infeliz. Profundamente acabado ou destruido. Mas isso o não tornava feliz, apenas não infeliz ( tao simples e mesmo assim os outros não compreendem...).
Abandonado na cadeira. Estava a deixar que a sua tristeza se afogasse, lentamente. Para garantir a cura, a herança de uma cicatriz sã. Porque ele foi corroido pela duvida, a perspicaz duvida. E naquele momento teve inconscientemente consciencia que aquilo não lhe proporcionaria qualquer felicidade. Era o equivalente a nada.
Sentado na cadeira como se estivesse morto. Talvez estivesse a morrer, a deixar morrer aquela esperança de ser igual aos outros e deixar de ter aqueles momentos de pura e dramática lucidez existencialista . Aquele momento em que desejava abraçar aquela felicidade vazia.E esquecer-se da sua crua traição.
Mas ele cura-se. Morre e cura-se. E eleva-se ao ponto em que tenta a verdadeira felicidade. Morrer feliz. Os outros estao mortos enquanto ainda respiram.
Desafio VIII
Eu tenho uma espécie de dever, dever de sonhar, de sonhar sempre,
pois sendo mais do que um espetáculo de mim mesmo,
eu tenho que ter o melhor espetáculo que posso.
E, assim, me construo a ouro e sedas, em salas
supostas, invento palco, cenário para viver o meu sonho
entre luzes brandas e músicas invisíveis.
(Bernardo Soares, in Livro do Desassossego)
Alice in Wonderland para Ricardo:
Ricardo para Blue Storm:
"Incompetence - When you earnestly believe you can compensate for a lack of skill by doubling your efforts, there's no end to what you can't do.”
(Larry Kersten)
Blue Storm para Wings
sábado, 13 de fevereiro de 2010
Desafio VII - Resposta
(provérbio)
O dia do terramoto amanheceu nada menos que lindo. Uma manhã soalheira, nem uma nuvem no céu. Sete horas da manhã, quando o céu ficou cor-de-rosa e a vida começou. Ele, e ela, de mão dada, olhavam ao longe da varanda da sua casa. Tinha sido a sua primeira noite da nova vida. Não tinham verdadeiramente fugido da antiga, mas apenas dado o passo em frente. A sua casa nova estava pronta, e reluzia com os primeiros raios da manhã. O silêncio, apenas entrecortado pelo primeiro chilrear dos pássaros, era o primeiro sinal de que nada era como antes.
Ainda fazia frio. Fevereiro mal tinha começado, e apenas agora os dias começaram a crescer. Eles olharam-se, enquanto o Sol começava a despontar no horizonte. Trocaram um beijo no silêncio. Sorriram um para o outro. Depois, tudo o resto foi muito rápido. Rápido demais. Primeiro um tremor, que tomaram como um arrepio de frio. Mas não. Depois correram, uma mão para cada lado, escadas abaixo, porta fora, longe da casa. Tremores mais fortes. Era um daqueles momentos em que não pensavam, não sentiam, não respiravam. A mão que mantinham dada um ao outro, não a sentiam. Apenas a crueza dos factos que viam à sua frente. Apenas a vida, assim como a casa, assim como tudo, que viam desmoronar-se à sua frente.
Aos poucos, nuvens de pó foram aparecendo à esquerda e à direita. Casas, perdidas. Depois a sua, e a dos vizinhos, e os prédios. Tudo quanto estava de pé rapidamente se deitou. Menos eles. Foram os cinco minutos mais longos das suas vidas. Tinham a certeza que daqui a muitos anos ainda se lembrariam daqueles cinco minutos, como se de alguma forma ainda os vivessem, como quem olha para uma lâmpada e fica com o reflexo da luz nos olhos durante muito tempo.
Quando a calma voltou, eles sabiam. Olharam-se. Depois, olharam para cima. Nenhum deles acreditava em nenhum deus, mas não conseguiram evitar. Isto era mais que eles, era acima deles. Logo naquele dia. Aquela terrível coincidência. Olharam de novo um para o outro. Depois choraram. Choraram longamente, abraçados, corações a bater descompassados, e pensamentos a passar a milhares de quilómetros por hora.
Aos poucos haveriam de recuperar. E não decorreria uma hora antes de ambos voltarem ao que sobrou da sua casa. Onde antes estava o sonho de uma vida, agora havia escombros. E só eles sabiam quanto custava ver os sonhos por terra. Não fazia mal. Eles eram fortes. Tinham chegado ali. Retornariam ao ponto de partida, e de novo recomeçariam. Ainda os corações batiam descompassados, e os pensamentos corriam à velocidade da luz; ainda as lágrimas não tinham secado quando ele lhe murmurou ao ouvido aquela que seria a palavra que doravante os poria de novo no rumo do seu sonho: “Persiste!”
quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010
Desafio VII - Resposta
Queres que te oiça, queres que te siga. Que te imite. Se arruinar a vida como tu entao estarás menos deslocado, se arruinar a vida como tu ilibas uma fracçao da culpa que te pesa em todos os pesadelos que tens todas as noites vazias.
Mas porque quereria eu seguir-te? (Ajudar-te?!) Falhas a tua propria vida, destrois a unicidade aromatica da palavra existir. E eu não o farei. Nunca.
Desiste. Não vou civilizar-me. Não vou automatizar-me. O encanto de viver descansa no pensamento fino de ser a coisa mais perigosa que podes fazer. É um dia poderes partir e nunca mais voltar. É garantires a oportunidade de voltar porque a escolha é sempre tua. Porque tu és tu e tu decides, a única escolha que fizeste foi essa. Quem serias amanha.
Oh por favor, ouve-te por um instante. Escolheste a vida já decidida e conquistada, escolheste esse conceito errado de dever, escolheste essa estabilidade inocua. Escolheste esse ser pomposo e vazio. Escolheste não escolher. Vendeste o teu coraçao quando delineaste tudo o que serias. E o coração é que sente o mundo, sem ele és oco.
Devias ouvir-te. É que escolheste mal. Não se escolhem coisas. Não se escolhe dessa maneira, não se escolhe ter. Escolhe-se sempre ser. Nunca ter.
Devias ouvir-te,vá. Experimenta. Já te assassinaste, que mais podes temer?
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010
Desafio VII - Resposta
Faço? Não.
Faço? Talvez.
Faço?
Não me consigo decidir. Não com estas vozes todas a lutarem por atenção. Dizem sim, dizem não, não sei ao certo o que dizem. Decido-me, volto atrás, dou meia volta e regresso ao início.
Não. É demasiado arriscado. Eles ficariam a saber. Ninguém quer isso, pois não? Não. Mas faz as vozes gritarem de arrependimento.
Ou talvez sim. Arriscar é bom. Traz perigo e adrenalina, faz o sangue correr nas veias. Mas faz as vozes gritarem de culpa.
Berro. Quero berrar porque não me deixam em paz, as vozes. Elas não querem mas EU quero. Eu quero voltar a tomar aquilo que faz as vozes irem embora. Porque elas dizem para não tomar, mas eles, os das batas, vão reparar. E depois vai ser mau, muito mau.
Portanto eu tomo, eu tomo. Assim ninguém sabe o mal que fiz.
terça-feira, 9 de fevereiro de 2010
Desafio VII - resposta
Caminharam em sentidos opostos. Um no sentido do mar. O outro no sentido de terra.
Encontraram-se na praia de manhã. A alvorada fresca agitava de forma suave ambas as camisolas, a primeira fina de bom corte e a segunda áspera e larga.
O barco esperava de forma paciente baloiçando e cantando o marulhar do mar. O cenário pintado não os denunciava. Mantinha-se em suspense, como eles.
Frente a frente, com a areia fria da manhã entre os pés, os olhos azuis fitaram-se. Ele disse: “ vou combater. Vou lutar pela minha liberdade”.
O homem da camisola fina respondeu-lhe de imediato, como se tivesse passado a noite em claro a pensar na resposta: “ Não és livre aqui?” E rapidamente acrescentou “Não és feliz aqui?”
Calmamente e sem qualquer ponta de desafio na sua voz tão grossa como a camisola, respondeu “Não. Não sou feliz. Porque não sou livre”.
O outro enterrou os pés na areia com força e virou-se no sentido das ondas, denunciando uma impotência que desejava aniquilar. Como se quisesse salvá-lo da fogueira. Como se ele fosse cego.
Deu uma pequena volta, uma pequena volta no seu pequeno mundo e garantiu-lhe: “Mas tu és livre. Nós somos livres. Eu não te compreendo...”
Ele abriu um sorriso franco, “Vês, tu não és como eu. Eu quero deitar-me de noite e sentir a consciência com o mesmo peso do coração”.
Mas no seu pequeno mundo, o coração tinha o mesmo peso da fome, do frio e dos pequenos prazeres. Nunca compreenderia. E portanto, em tom de desprezo, voltou-lhe costas: “Vai. Vai combater pela tua liberdade. Vais morrer.”
Mas ele já tinha voltado costas há mais tempo. Com um pé no barco disse: “Sim, tal como tu. Mas pelo menos eu sei que tentei viver”.
segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010
Desafio VII - Resposta
Sentado na cadeira, inclinado para trás, mordendo e corroendo de saliva uma caneta, sentia-se como um suicida que saltara de um prédio demasiado alto. Faltava muito tempo para o impacto, e todos os instantes de vertigem foram dados à consciência, para ela se pronunciar. Tinha já feito as contas às vidas que se perderiam no dia seguinte. Vidas de americanos, que jurara proteger. Tinha também já feito as contas a quantas vidas de americanos se perderiam nos anos seguintes. E depois contrabalançara esse número com o peso da liberdade de uma Europa esmagada à vontade de um homem. Não, não podia ser. Aquele homem não podia triunfar. Desdobrou mais uma vez o pequeno pedaço de papel, aquele onde reproduzira o seu genial discurso em Paris, defendendo a coragem e a força dos homens de acção sobre os que se limitam a ficar sentados para trás em cadeiras a criticar quem faz. As suas próprias palavras relembravam-lhe quem era, e o que ele representava. Que viessem os japoneses, que destruíssem tudo. Dar-lhes-ia Pearl Harbor, e seria capaz até de lhes dar Nova Iorque. Não importava. Das cinzas surgiria um bem maior. E seria pelas suas mãos que a História seria escrita. Não importa com o sangue de quem. Deitou fora as hesitações e guardou o papel no bolso. Era hora de dormir. Deitou-se, e nessa noite não sonhou. Dormiu como um bebé.
Era a madrugada de 7 de Dezembro, do outro lado da linha da frente.
Em pé, caminhando de um lado para o outro, parava ocasionalmente para esmagar entre as mãos as costas da cadeira. A dúvida assaltava-o. Não conseguia entender se o que se estava a passar seria bom ou mau. Do outro lado do Atlântico, em Pearl Harbor, os japoneses puxavam os americanos para a guerra. Havia horas em que a última coisa que queria era ter que lidar com americanos, quando ainda tinha que tratar dos russos e dos ingleses. Havia outras horas em que não conseguia ver perigo naquele batido de nacionalidades. Tinha feito as contas ao valor do exército americano, tinha-lhe somado o peso simbólico da entrada de uma nova nação na Guerra. E depois contrabalançara esse valor com o seu novo aliado japonês. Ora, americanos e japoneses, não são mais que a grande nação germânica. Releu de novo o discurso do presidente americano, que há dias jazia no topo de folhas espalhadas em cima da secretária. Homens de acção? Ele mostrar-lhes-ia um homem de acção. O americano tinha toda a razão - é preciso é haver quem faça, acerte-se ou erre-se. O Mundo gira nas mãos dos homens de acção, não nas mãos dos filósofos, dos escritores ou dos artistas. O americano tinha mesmo razão. O problema do americano é que ele próprio não passava de um crítico do nacional-socialismo. Ele sim, ele desbravava o rumo da História. E era hora de redesenhar planos. E nessa manhã, deu instruções para que nenhum judeu escapasse. E em nenhum momento se sentiu tentado a desistir.
Era a tarde de 7 de Dezembro, uma tarde fria, igual às outras na Lisboa monótona e enfadonha de sempre.
Caminhando livre pelas ruas, Ricardo Reis sentia-se sem casa. Sem corpo para habitar e sem mãos que dessem voz aos seus pensamentos, vogava pelos cafés escondidos nas ruelas de Alfama, atirava-se em longas deambulações pela Mouraria, e passava noites inteiras preso num sobe e desde do Chiado. Talvez encontrasse alguém que pudesse habitar. Alguém que por uma última vez o escutasse. Desde que o Fernando partira, a sua vida resumia-se a isto. Até que naquela manhã aborrecida se cruzou com uma voz que disse o seu nome. "Ricardo Reis? Sim, tu! Eu conheço-te muito bem. És o Ricardo Reis. Usaste o Pessoa para dizeres que devemos ser como os homens que jogam xadrez enquanto uma cidade arde. Para dizeres que 'sábio é aquele que se contenta com o espectáculo do mundo'. Sei muito bem quem és. O Pessoa era um banana. Deixava-te para aí a falar e ainda te dava corda. E ainda sentia orgulho nisso."
Ricardo ficara gelado como um espírito, mas corado como o Fernando costumava ficar. Demorou a recompôr-se. Era um rapaz quem o afrontava assim. Apenas um rapaz. Ponderou, como os jogadores de xadrez, deixá-lo a arder na sua fúria. Ousou apenas uma resposta ténue. "Preferias que fosse como o alemão que ameaça matar meio Mundo? Ou como os japoneses? Preferias que escolhesse importunar-me com o mesquinho e o mundano, quando tudo isso é tão vão, e só causa mais sofrimento?" O rapaz fez um gesto violento e aproximou-se num safanão. "Não! Esses políticos usam como argumento o serem homens de acção só para se justificarem, para se defenderem dos críticos. Como se os críticos fossem o inimigo. A crítica, a revolta, e a insatisfação contra tudo, inclusive contra nós próprios, estão na génese de todos os movimentos criadores. O crítico é o verdadeiro líder. Por isso não, não queria que fosses como eles, não queria que tivesses as mãos sujas de sangue como eles têm. O teu problema é que a acção irreflectida é só metade do veneno do Mundo. A outra metade é a indiferença. Tu não entendes que o sábio não se contenta com o espectáculo do Mundo porque faz parte da sua natureza de sábio a revolta constante contra o que está errado. Os verdadeiros inimigos de uma nação são os nacionalistas, que defendem a sua pátria só por ser a pátria, sem qualquer sentido crítico, e por isso são o público ideal para demagogos como o alemão moldarem. Os verdadeiros inertes são os beatos, que vêem no primeiro atalho religioso o caminho para salvar o que resta dos seus egos estilhaçados. Os verdadeiros cobardes sem espinha são como tu. Lesmas deixando escoar-se a vida em cafés e copos bebidos no Chiado ou em esplanadas a olhar para o mar. Como se na espuma das ondas se encontrasse calmamente o sentido da vida. Como se as coisas fossem assim tão simples. Como se não houvesse mais vida do que o contemplar da vida que há."
E, como num exorcismo, o espírito de Ricardo Reis esfumou-se da mesma maneira que as almas dos americanos incautos que tinham sido abatidos naquele mesmo dia por aviões japoneses e pela precipitação de um líder duvidoso. Antes que a última partícula etérea de Ricardo atravessasse as dimensões e se juntasse ao local literário para onde as personagens de ficção ascendem, teve só tempo de perguntar. "Rapaz, como te chamas?" Recebeu um nome que não perderia de vista. "José. José Saramago."
Desafio VII
It is not the critic who counts; not the man who points out how the strong man stumbles, or where the doer of deeds could have done them better. The credit belongs to the man who is actually in the arena, whose face is marred by dust and sweat and blood; who strives valiantly; who errs, who comes short again and again, because there is no effort without error and shortcoming; but who does actually strive to do the deeds; who knows great enthusiasms, the great devotions; who spends himself in a worthy cause; who at the best knows in the end the triumph of high achievement, and who at the worst, if he fails, at least fails while daring greatly, so that his place shall never be with those cold and timid souls who neither know victory nor defeat.
Theodore Roosevelt (Sorbonne, France - April 23, 1910)
"Choose life. Choose a job. Choose a career. Choose a family. Choose a fucking big television. hoose washing machines, cars, compact disc players, and electrical tin openers. Choose good health, low cholesterol and dental insurance. Choose fixed-interest mortgage repayments. Choose a starter home. Choose your friends. Choose leisure wear and matching luggage. Choose a three piece suite on hire purchase in a range of fucking fabrics. Choose DIY and wondering who you are on a Sunday morning. Choose sitting on that couch watching mind-numbing sprit- crushing game shows, stuffing fucking junk food into your mouth. Choose rotting away at the end of it all, pishing you last in a miserable home, nothing more than an embarrassment to the selfish, fucked-up brats you have spawned to replace yourself. Choose your future. Choose life... But why would I want to do a thing like that?"
(Transpotting, versão filme, escrito por John Hodge a partir do livro de Irvine Welsh)
Wings para Alice in Wonderland:
Todos os homens morrem, mas nem todos vivem de facto.
(Braveheart)
Alice in Wonderland para Blue Storm:
"Se não queres que se saiba, não o faças"
(Provérbio chinês)
Blue Storm para Tiago:
"O Homem põe e Deus dispõe"
(provérbio)
Desafio VI - Resposta
E eu sempre fora uma das duas pessoas que conseguia destruir essas muralhas. E estava a ouvir, naquele tom monocórdico que a Maria tem quando está partida (apenas) por dentro, como a outra morrera num terrível acidente. O amor da vida dela, e ela contava-mo como se falássemos do tempo. E isso indicava sempre o pior.
Pousei o telefone com a promessa que a ia visitar. Que mais podia fazer? Eu era a sua melhora miga e agora único porto de conforto no mundo.
Saí de casa com uma ideia fixa. Quando éramos mais novas, antes desta vida de responsabilidades, tínhamos um ritual. Quando precisávamos de falar, comprávamos uma caixa de bombons, sempre os mesmos, sempre da mesma chocolateira. Por nenhuma razão em especial, apenas pela simples mística do chocolate.
Toquei à campainha e ela convidou-me a entrar. A casa era a mesma, nada mudara. A não ser o olhar de Maria, perdido algures.
Obriguei-a a sentar-se. E quando estava à sua frente, olhos nos olhos, entreguei-lhe a caixa. Uma coisa simples, com um pequeno laço. Mas com tantas, tantas recordações.
- Come chocolate, pequena. - costumávamos dizer, tal como agora lhe disse. - Come chocolate.
Bastaram alguns segundos para ela pegar na caixa e comer o primeiro bombom, enquanto as lágrimas lhe caíam pelas faces.
Porque o chocolate é assim. Cada um o interpreta como uma metáfora diferente. Mas todos sabem que num pequeno doce, estão contido todos os tipos de sentimentos. O chocolate é uma droga, uma dádiva, um vício das sensações.
Talvez seja apenas uma comida. Se o é, digam-me outra que construa e destrua muralhas, que nos ponha felizes e nostálgicos ao mesmo tempo, que é referida como a comida dos deuses.
Eu poupo-vos trabalho: não há.
quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010
Desafio VI - Resposta
Choderlos de Laclos, "Dangerous Liaisons" (adaptação para o filme)
Mas um tímido daqueles que não faz mal a ninguém. Não sou um tímido que esconde um grande segredo, ou que analisa e avalia os outros no silêncio e no recôndito da minha mente. Não, sou apenas tímido. Evito conversas de ocasião. Evito falar sobre o que não sei. Evito discutir gostos ou opiniões estritamente pessoais. E espremendo tudo, no final, fico com muito pouco assunto.
E tanto que isso me frustra. Frustra-me querer mais, mas não conseguir nunca dizer as coisas certas, ou fazer as coisas certas, nos momentos certos e nos sítios correctos.
Era por isso que estava ali. Eu só poderia ser mais do que eu se tivesse a superioridade de poder falar. Se tivesse a experiência que me permitisse subir um nível acima dos meus pares, e desse alto anunciar enfim a mais profunda verdade, ou definir a mais importante lei moral, ou social, ou cultural. E não havia sido há muito tempo que eu descobrira isso. Não foi algo pensado durante anos, ou longamente planeado. Não. Foi uma conclusão muito bem tirada de um conjunto de situações. De um conjunto de discussões, de uma mão cheia de tentativas de ter razão. Mas não tinha. E agora eu sabia porquê.
Eu não vira tudo.
Claro, era isso. Eu não tinha visto tudo. Eu não conhecia tudo, e portanto não podia saber tudo. Era normal, fazia sentido. E foi aí que eu decidi que faria isso antes de dar continuidade à minha vida e aos meus planos. A minha viagem seria, a partir daquele momento, a minha vida, os meus planos.
O comboio estava prestes a partir. Na plataforma, as poucas pessoas que se vieram despedir tinham um ar triste, embora estivessem felizes por mim. Elas sabiam, tão bem quanto eu. A minha sede era muito maior que o tamanho do país que daqui a poucas horas abandonaria. A minha sede de conhecimento não tinha, neste momento, limites. Eu sentia-me hiper-activo. Hiper-atento. Beberei tudo o que puder nos próximos… meses, anos… ? Depois voltarei. Mais forte. Mais sábio. Mais culto.
Melhor.
Melhor que tudo, e melhor que todos. Porque a História só reza dos que vencem, e nesta História eu não aceitarei o segundo lugar.
terça-feira, 2 de fevereiro de 2010
Desafio VI - Resposta
Sempre tive dificuldades em entender exactamente a mecânica dos gestos mecânicos. Quanto mais penso neles, menos jeito tenho em fazê-los. É como as pedras. Dizem que as palavras são pedras, que se as repetimos muitas vezes elas tornam-se entidades amorfas e sem sentido. Quando penso em controlar a respiração deixo de conseguir fazê-lo. Quando penso que andar é meter uma perna à frente da outra, deixo de ser capaz de andar. Quando me fixo numa pessoa, parece que já nem a conheço. E quando procuro muito um objectivo muito específico na vida, parece que já nem sei porque o queria.
E isso deixa-me paralisado. Sempre necessitei de andar pela vida como um zombie. Sempre me foi completamente essencial ter mil coisas na cabeça, olhar para todo o lado, abstrair-me da vida e do Mundo e até de mim. Se por momentos me engano, e penso muito numa coisa só, os membros tolhem-se-me, as ideias fogem-me, e cai-me o chão que piso em cima da cabeça.
E é assim com tudo. Ter só um trabalho, ter só um ponto de vista, ter só um plano de vida, tudo isso me congela. É como se me afundasse. É como se ao olhar só para um bocadinho de céu em vez de ver o globo terrestre todo caísse dentro de um poço, do qual não consigo sair. É como se caísse no fundo de uma piscina porque me fixo nos gestos de nadar. E páro. Quando se pára de nadar vai-se ao fundo.
E quando estou no fundo do poço, não há nada a fazer. Preciso sempre que me vão buscar. Preciso sempre de um estímulo exterior que me acorde do transe e me mostre tudo o que há no Mundo.
Expira. Sustém a respiração.
Até hoje, encontrei sempre alguém que me lançou uma bóia e puxou de dentro da piscina.