segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Desafio VII - Resposta

Era a noite de 6 de Dezembro, e ainda haveria tempo.

Sentado na cadeira, inclinado para trás, mordendo e corroendo de saliva uma caneta, sentia-se como um suicida que saltara de um prédio demasiado alto. Faltava muito tempo para o impacto, e todos os instantes de vertigem foram dados à consciência, para ela se pronunciar. Tinha já feito as contas às vidas que se perderiam no dia seguinte. Vidas de americanos, que jurara proteger. Tinha também já feito as contas a quantas vidas de americanos se perderiam nos anos seguintes. E depois contrabalançara esse número com o peso da liberdade de uma Europa esmagada à vontade de um homem. Não, não podia ser. Aquele homem não podia triunfar. Desdobrou mais uma vez o pequeno pedaço de papel, aquele onde reproduzira o seu genial discurso em Paris, defendendo a coragem e a força dos homens de acção sobre os que se limitam a ficar sentados para trás em cadeiras a criticar quem faz. As suas próprias palavras relembravam-lhe quem era, e o que ele representava. Que viessem os japoneses, que destruíssem tudo. Dar-lhes-ia Pearl Harbor, e seria capaz até de lhes dar Nova Iorque. Não importava. Das cinzas surgiria um bem maior. E seria pelas suas mãos que a História seria escrita. Não importa com o sangue de quem. Deitou fora as hesitações e guardou o papel no bolso. Era hora de dormir. Deitou-se, e nessa noite não sonhou. Dormiu como um bebé.

Era a madrugada de 7 de Dezembro, do outro lado da linha da frente.

Em pé, caminhando de um lado para o outro, parava ocasionalmente para esmagar entre as mãos as costas da cadeira. A dúvida assaltava-o. Não conseguia entender se o que se estava a passar seria bom ou mau. Do outro lado do Atlântico, em Pearl Harbor, os japoneses puxavam os americanos para a guerra. Havia horas em que a última coisa que queria era ter que lidar com americanos, quando ainda tinha que tratar dos russos e dos ingleses. Havia outras horas em que não conseguia ver perigo naquele batido de nacionalidades. Tinha feito as contas ao valor do exército americano, tinha-lhe somado o peso simbólico da entrada de uma nova nação na Guerra. E depois contrabalançara esse valor com o seu novo aliado japonês. Ora, americanos e japoneses, não são mais que a grande nação germânica. Releu de novo o discurso do presidente americano, que há dias jazia no topo de folhas espalhadas em cima da secretária. Homens de acção? Ele mostrar-lhes-ia um homem de acção. O americano tinha toda a razão - é preciso é haver quem faça, acerte-se ou erre-se. O Mundo gira nas mãos dos homens de acção, não nas mãos dos filósofos, dos escritores ou dos artistas. O americano tinha mesmo razão. O problema do americano é que ele próprio não passava de um crítico do nacional-socialismo. Ele sim, ele desbravava o rumo da História. E era hora de redesenhar planos. E nessa manhã, deu instruções para que nenhum judeu escapasse. E em nenhum momento se sentiu tentado a desistir.

Era a tarde de 7 de Dezembro, uma tarde fria, igual às outras na Lisboa monótona e enfadonha de sempre.

Caminhando livre pelas ruas, Ricardo Reis sentia-se sem casa. Sem corpo para habitar e sem mãos que dessem voz aos seus pensamentos, vogava pelos cafés escondidos nas ruelas de Alfama, atirava-se em longas deambulações pela Mouraria, e passava noites inteiras preso num sobe e desde do Chiado. Talvez encontrasse alguém que pudesse habitar. Alguém que por uma última vez o escutasse. Desde que o Fernando partira, a sua vida resumia-se a isto. Até que naquela manhã aborrecida se cruzou com uma voz que disse o seu nome. "Ricardo Reis? Sim, tu! Eu conheço-te muito bem. És o Ricardo Reis. Usaste o Pessoa para dizeres que devemos ser como os homens que jogam xadrez enquanto uma cidade arde. Para dizeres que 'sábio é aquele que se contenta com o espectáculo do mundo'. Sei muito bem quem és. O Pessoa era um banana. Deixava-te para aí a falar e ainda te dava corda. E ainda sentia orgulho nisso."

Ricardo ficara gelado como um espírito, mas corado como o Fernando costumava ficar. Demorou a recompôr-se. Era um rapaz quem o afrontava assim. Apenas um rapaz. Ponderou, como os jogadores de xadrez, deixá-lo a arder na sua fúria. Ousou apenas uma resposta ténue. "Preferias que fosse como o alemão que ameaça matar meio Mundo? Ou como os japoneses? Preferias que escolhesse importunar-me com o mesquinho e o mundano, quando tudo isso é tão vão, e só causa mais sofrimento?" O rapaz fez um gesto violento e aproximou-se num safanão. "Não! Esses políticos usam como argumento o serem homens de acção só para se justificarem, para se defenderem dos críticos. Como se os críticos fossem o inimigo. A crítica, a revolta, e a insatisfação contra tudo, inclusive contra nós próprios, estão na génese de todos os movimentos criadores. O crítico é o verdadeiro líder. Por isso não, não queria que fosses como eles, não queria que tivesses as mãos sujas de sangue como eles têm. O teu problema é que a acção irreflectida é só metade do veneno do Mundo. A outra metade é a indiferença. Tu não entendes que o sábio não se contenta com o espectáculo do Mundo porque faz parte da sua natureza de sábio a revolta constante contra o que está errado. Os verdadeiros inimigos de uma nação são os nacionalistas, que defendem a sua pátria só por ser a pátria, sem qualquer sentido crítico, e por isso são o público ideal para demagogos como o alemão moldarem. Os verdadeiros inertes são os beatos, que vêem no primeiro atalho religioso o caminho para salvar o que resta dos seus egos estilhaçados. Os verdadeiros cobardes sem espinha são como tu. Lesmas deixando escoar-se a vida em cafés e copos bebidos no Chiado ou em esplanadas a olhar para o mar. Como se na espuma das ondas se encontrasse calmamente o sentido da vida. Como se as coisas fossem assim tão simples. Como se não houvesse mais vida do que o contemplar da vida que há."

E, como num exorcismo, o espírito de Ricardo Reis esfumou-se da mesma maneira que as almas dos americanos incautos que tinham sido abatidos naquele mesmo dia por aviões japoneses e pela precipitação de um líder duvidoso. Antes que a última partícula etérea de Ricardo atravessasse as dimensões e se juntasse ao local literário para onde as personagens de ficção ascendem, teve só tempo de perguntar. "Rapaz, como te chamas?" Recebeu um nome que não perderia de vista. "José. José Saramago."

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