É belo, seja qual for o ângulo por que se olhe. O olhar mais distraído é imediatamente captado pela profusão de cores nos pés dele. Cores que se articulam sem se misturar, que são florais sendo sóbrias. Cores que parecem solidificar uma base de apoio flutuante, um caminhar nas núvens seguro, um voo em terra. E depressa o olhar é conduzido pelo caminho ascendente de um manto hirto, no topo do qual nasce um pescoço e um rosto. O rosto adivinha-se masculino, mas está voltado, misterioso. Como se o homem que ama necessitasse de largar o Mundo e focar-se na mulher de tez pálida e olhos fechados que se entrega a um abraço e a um beijo ténue. O cabelo dele é crespo, e adivinham-se algumas folhas pontuando os caracóis. Destoa, individualizado, do cabelo escorrido e claro dela, onde as flores formam uma coroa. Pelo cuidado dele, ela é uma rainha. Uma rainha abandonada, ajoelhada, num acto quase sagrado de amor. Enquanto todo ele são rectângulos, nela tudo é circular e floral. E, ao seu redor, há uma atmosfera dourada, solene. Uma atmosfera que os separa do Mundo. Os dourados resplandescentes dão-lhe perspectiva, vagueiam na luz incidente e tornam-no diferente consoante o ângulo por que olha. Mas sempre belo.
“Gostas desse?”, perguntou-me ela ao entrar na sala. “Naturalmente”, porque afinal foi pelo Klimt que vim a Viena. “Eu não”, foi a confissão orgulhosa que ela me fez. Inaceitável para mim. E por isso fiz-lhe o roteiro do quadro, de baixo para cima. Expliquei-lhe as figuras, as ambiências, e até a técnica. Ela mantinha um olhar estupidamente fixo enquanto eu falava. Não parecia seguir com os olhos as minhas indicações, não parecia muito interessada nas ténues variações de cor e material. Ela já se tinha decidido.
“Pois, tudo isso pode ser verdade. Mas isto é muito pretencioso. Isto está pintado com ouro verdadeiro? Já viste bem o tamanho disto? Quanto ouro é que ele para aqui meteu? Não suporto estas coisas tão burguesas. E como se não bastasse, está aqui enfiado numa caixa de vidro, como se fosse superior aos outros quadros. E afinal, são só duas pessoas a beijar-se.” Ela terminou o seu discurso, e afastou-se calmamente, convencida de ter rematado a conversa e ficado com a última palavra. Porque afinal, palavras e argumentos seriam curtos para lhe responder. E então caminhou lentamente à volta da sala, fixando outras obras expostas.
Desviei o olhar do quadro e mantive-o fechado nela. Até então, a nossa viagem tinha sido perfeita. Até então, a nossa vida tinha sido boa. Mas tudo em nós gritava diferença. Eu, encerrado num monocromatismo de camisa, calças de bombazine e sapatos, parecia dez anos mais velho. Ela, expelia luz pelo arraial colorido da sua camisola de alças vermelha, calças largas com riscas verticais castanhas e laranja e sandálias. Juntos, eramos imiscíveis. Dir-se-ia que eu era feito de quadrados e ela de círculos.
Mas foi também naquele museu de Viena que a compreendi o velho Klimt. Aprendi que o belo chavão de extremos que se complementam não passa de uma frase feita. Não há complementariedade nenhuma. A beleza é feita da tensão e do choque. Os quadrados e os círculos juntam-se, tocam-se, mas nunca se misturam.
Por isso, movi-me rapidamente na sua direcção, antes que o seu pé esquerdo tocasse o chão semelhante da sala seguinte. Os olhares voltaram-se para mim, como se eu fosse a nova atracção, a obra viva. Aproximei-me dela lateralmente, e, num gesto seco, coloquei-lhe o braço esquerdo por cima dos ombros. Apoiei ambas as mãos no seu rosto e voltei-me para, com a subtileza prolongada que apenas a intimidade traz, lhe beijar o rosto, junto ao canto do lábio que ela voltara para mim. Naquele beijo, eu coloquei toda a electricidade que a presença dela me provoca e que a ausência dela me faz doer. E prolonguei aquele contacto suave dos meus lábios com a pele dela. E por entre a luz amarelada de dois ou três flashes das máquinas fotográficas de turistas japoneses, ela abandonou a sua mão esquerda no meu peito, e envolveu o meu pescoço com o seu braço direito magro.
E a última coisa que vi antes de cerrar os olhos e sentir a tontura do momento cair sobre mim, foi também os olhos dela a fecharem-se, e o canto da boca dela a ser trazido mais para junto da minha por um sorriso. E eu juro que, naquele momento, os joelhos dela enfraqueceram e dobraram-se um pouco. O nosso amor, assim posto, valia todo o ouro do Mundo. Era belo, seja qual for o ângulo por que se olhe.
“Gostas desse?”, perguntou-me ela ao entrar na sala. “Naturalmente”, porque afinal foi pelo Klimt que vim a Viena. “Eu não”, foi a confissão orgulhosa que ela me fez. Inaceitável para mim. E por isso fiz-lhe o roteiro do quadro, de baixo para cima. Expliquei-lhe as figuras, as ambiências, e até a técnica. Ela mantinha um olhar estupidamente fixo enquanto eu falava. Não parecia seguir com os olhos as minhas indicações, não parecia muito interessada nas ténues variações de cor e material. Ela já se tinha decidido.
“Pois, tudo isso pode ser verdade. Mas isto é muito pretencioso. Isto está pintado com ouro verdadeiro? Já viste bem o tamanho disto? Quanto ouro é que ele para aqui meteu? Não suporto estas coisas tão burguesas. E como se não bastasse, está aqui enfiado numa caixa de vidro, como se fosse superior aos outros quadros. E afinal, são só duas pessoas a beijar-se.” Ela terminou o seu discurso, e afastou-se calmamente, convencida de ter rematado a conversa e ficado com a última palavra. Porque afinal, palavras e argumentos seriam curtos para lhe responder. E então caminhou lentamente à volta da sala, fixando outras obras expostas.
Desviei o olhar do quadro e mantive-o fechado nela. Até então, a nossa viagem tinha sido perfeita. Até então, a nossa vida tinha sido boa. Mas tudo em nós gritava diferença. Eu, encerrado num monocromatismo de camisa, calças de bombazine e sapatos, parecia dez anos mais velho. Ela, expelia luz pelo arraial colorido da sua camisola de alças vermelha, calças largas com riscas verticais castanhas e laranja e sandálias. Juntos, eramos imiscíveis. Dir-se-ia que eu era feito de quadrados e ela de círculos.
Mas foi também naquele museu de Viena que a compreendi o velho Klimt. Aprendi que o belo chavão de extremos que se complementam não passa de uma frase feita. Não há complementariedade nenhuma. A beleza é feita da tensão e do choque. Os quadrados e os círculos juntam-se, tocam-se, mas nunca se misturam.
E aquela mulher, que agora se preparava para voltar as costas ao Klimt e deixar a sala, é bela, seja qual for o ângulo por que se olhe. Naquele instante, desejei-a muito. E a luxúria é o ouro do amor. Eu e ela, nós somos belos, seja qual for o ângulo por que se olhe.
Por isso, movi-me rapidamente na sua direcção, antes que o seu pé esquerdo tocasse o chão semelhante da sala seguinte. Os olhares voltaram-se para mim, como se eu fosse a nova atracção, a obra viva. Aproximei-me dela lateralmente, e, num gesto seco, coloquei-lhe o braço esquerdo por cima dos ombros. Apoiei ambas as mãos no seu rosto e voltei-me para, com a subtileza prolongada que apenas a intimidade traz, lhe beijar o rosto, junto ao canto do lábio que ela voltara para mim. Naquele beijo, eu coloquei toda a electricidade que a presença dela me provoca e que a ausência dela me faz doer. E prolonguei aquele contacto suave dos meus lábios com a pele dela. E por entre a luz amarelada de dois ou três flashes das máquinas fotográficas de turistas japoneses, ela abandonou a sua mão esquerda no meu peito, e envolveu o meu pescoço com o seu braço direito magro.
E a última coisa que vi antes de cerrar os olhos e sentir a tontura do momento cair sobre mim, foi também os olhos dela a fecharem-se, e o canto da boca dela a ser trazido mais para junto da minha por um sorriso. E eu juro que, naquele momento, os joelhos dela enfraqueceram e dobraram-se um pouco. O nosso amor, assim posto, valia todo o ouro do Mundo. Era belo, seja qual for o ângulo por que se olhe.
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