terça-feira, 30 de março de 2010

Desafio XV

Tiago para Ricardo:

"I Don't Suffer From Insanity, I Enjoy Every Minute of It"

(Anonymous)

Ricardo para Wings:

Whose woods these are I think I know.
His house is in the village though;
He will not see me stopping here
To watch his woods fill up with snow.

My little horse must think it queer
To stop without a farmhouse near
Between the woods and frozen lake
The darkest evening of the year.

He gives his harness bells a shake
To ask if there is some mistake.
The only other sound's the sweep
Of easy wind and downy flake.

The woods are lovely, dark and deep.
But I have promises to keep,
And miles to go before I sleep,
And miles to go before I sleep.

Robert Frost, "Stopping by woods on a snowy evening"


Wings para Alice in Wonderland:


Conforme lhe penteava o cabelo , a pequena ia-se esquecendo do seu companheiro, pois a velha era entendida em artes mágicas, embora não fosse má pessoa.(...)
A fim que criança , vendo as rosas do jardim, se não lembrasse das suas e da familia, a velha saiu fora um instante e com o bordão puxou todas as roseiras e enfiou-as pela terra adentro.(...)
Uma vez , a criança, estando sentada ao ar livre reparou na flor mais bela, que era justamente uma rosa.

(...)”Que tempo que tenho perdido !Devia andar a procurá-lo!” E, dirigindo-se às rosas, perguntou: “Sabeis onde ele está’ Julgueis que tenha morrido?”

adaptado de “A Rainha das Neves”, conto de Hans Christian Andersen







Alice in Wonderland para Blue Storm:



"Para quê correr, se vamos no caminho errado?"
(Provérbio alemão)


Blue Storm para Tiago:

"Eu agora tinha a morte dentro de mim. E é horrível estar grávido da morte."



António Lobo Antunes





sábado, 27 de março de 2010

Desafio XIV - Resposta

É verdade. Não sabes o que é ele. Não consegues evitar essa sensaçao de encanto leve e caloroso que ele te oferece. Não consegues evitar maravilhares-te com a incognita que ele é.
Tudo o que ves é o segredo que ele esconde. Tudo o que ves é a sua pose seria e suave. O seu riso alto e exotico mas correctamente usado. Tudo o que queres é descontrola-lo. Rasga-lo em pequenos objectos que possas guardar. Ah, sim, riste-te. Mas ficares com ele seria muito mais do que um prazer passageiro e mundano. Seres quem consegue guarda-lo e dobrá-lo concede-te um estatuto social peculiar que se reflecte na forma como , posteriormente, te encararás. No teu mais profundo intimo.
Dizes que tens um certo receio dele. Porque ele observa o jogo antes de jogar e tu deixas de saber qual é a jogada inata dele. Dizes que o encontras louco na sua lucidez e que isso é mais estranho do que alguem que simplesmente é louco. Dizes que a aparencia dele não transparece nada. Ou o que descobres quando o observas é um puzzle sem imagem definida, mais abstracto e surrealista que um sonho.
Sabe que a tua procura incansavel de alguem como ele demonstra a tua não futilidade, a tua não banalidade. Sabe que na vossa interação ele denuncia o seu verdadeiro eu. Mas tu , na tua demanda pela profundidade de um pensamento, encontras o que queres ver.
Ele sabe que não és banal . Ou comum. E como só as “pessoas futeis não julgam pela aparencia”, observa o jogo antes de o jogar. Inconscientemente, sabes que ele te está a enganar, só não sabes aonde. É esse o encanto dele, todos os teus enganos começam e acabam em ti, ele disse-te exactamente o que era.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Desafio XIV - Resposta

"O riso é a mais útil forma da crítica, porque é a mais acessível à multidão. O riso dirige-se não ao letrado e ao filósofo, mas à massa, ao imenso público anónimo." Eça de Queiroz

A professora escreveu esta frase no quadro e disse-nos que Eça fora um grande escritor.
A verdade é que nunca gostei de Eça. Mas confesso que os meus referenciais sempre estiveram trocados.
Aquela professora de português que vomitava versos, que bocejava metáforas entre aulas, nunca me inspirou confiança.
Era o emprego dela, ler-nos aquela poesia. Ensinar-nos a interpretá-la. Não sabia ela que a essência da vida estava ali, naquelas palavras? Que a nossa vida, toda a nossa vida seria um poema no qual a personificação dela tinha um papel determinante?
Ela era como todos os outros. Não era diferente da contínua que lavava as escadas. Apenas lia poesia entre as degraus.
Eça fora um grande escritor. Talvez acredite nela. Talvez a opinião dela não exista no meu mundo.
Olho para aquela frase no quadro. Eça tem razão. O riso é acessível à multidão. Vejo os meus colegas a rirem-se de si próprios.
Eça não tem razão. E olho sem vontade de rir para o sorriso da minha professora que sublinha a frase, sem perceber que ela não é o letrado.

Desafio XIV - Resposta

Numa sinfonia compassada, roía a tampa azul da caneta ao ritmo do pé agitando-se por baixo da mesa, impecavelmente em sintonia com o ponteiro dos segundos do relógio da parede. Na mente, começaram a ser enfiladas palavras sinónimos de tédio. Aborrecimento, enfado, fastio. Trabalho.

"Peço desculpa, mas eu não concordo que precisemos de mais paquetes."

A sala inteira revirou os olhos. Porque não poderia ele deixar aquele pormenor quieto, pensavam em silêncio. O relógio faria o seu trabalho, e estariam todos em casa a tempo do boxe político na televisão.

"Estou velho para estas discussões. Mas pronto, vamos a isso, rapaz."

Com a dolência de uma contrariedade, o seu opositor retirava o casaco e dobrava as mangas da camisa branca. A idade, o peso, o cabelo que faltava no topo da cabeça, o extenso bigode de fios brancos e cinzentos, não permitiam mais rapidez nos dedos. Sentou-se em frente a ele, na alongada mesa em U, configurada a prever o duelo. As palmas das mãos direitas encostaram-se. Ele, jovem e confiante, encostado na cadeira. O seu opositor, enrugado e renitente, completamente dobrado para a frente, de mão esquerda apoiando o cotovelo. Começou. O ponteiro dos segundos não caminhou mais do que uma dezena de passos sem que as costas da mão do seu opositor idoso batessem sonoramente contra a mesa.

"Está decidido. Não há contratação do paquete. Dou por encerrada a reunião."

De volta ao gabinete, começava a reunir os papéis vagabundos, sempre viajando de casa para o trabalho sem nunca servirem nenhum propósito, por forma a metê-los na mala, quando de fora eclodiu um amontoado de vozes estridente como se alguém estivesse em guerra de palavras.

"Malditos terroristas, com as suas manifestações, deviam ser todos presos e mandados para longe."

"Não concordo. Acho que os terroristas devem ter o direito de usar da violência verbal para lutarem por aquilo em que acreditam."

"Queres mesmo entrar por aí? Queres mesmo defender os terroristas que andam aí a gritar argumentos em sítios públicos, sem se importarem de quem ouve?"

"Para te calar, quero."

Eram ambos jovens e promissores na empresa. Este oponente não era como o sénior na reunião, nem isto era uma decisão de negócios, que se resolve com um braço-de-ferro. Isto era uma opinião pessoal. Manda o Código Civil que as opiniões pessoais sejam decididas com uma luta corpo-a-corpo; apenas podem ser usados os punhos e os cotovelos, sem armas, golpes baixos ou a utilização de qualquer parte do corpo abaixo do ventre, e sem possibilidade de ajuda de terceiros; a razão é dada por desistência. Retiraram as gravatas e os casacos com o mesmo vigor, olhando-se e debatendo-se com os botões sempre tão pouco colaborantes. Saídas as camisas, saíram para o corredor, onde alguns curiosos paravam aguardando saber quem tinha razão. Os torsos semelhantes uniram-se e os primeiros murros contornaram-lhe a cabeça e acertaram-lhe na nuca. Caiu redondo para a frente, sobre a cara, e os primeiros vestígios de sangue acertaram na alcatifa. Levantou-se, e de uma assentada pregou dois murros no estômago bem delineado do seu oponente, seguido de uma cotovelada no topo da cabeça encolhida, e de um golpe de mão aberta no pescoço.

"Desisto. Bolas, com esse punho, devias ter ido para político ou advogado, não para consultor."

Manda a lei que o vencedor retorne à sua posição anterior à discussão. Porém, teve que seguir directo para a casa de banho para estancar o sangue que ainda lhe saía do nariz. Reparou numa rapariga numa esquina do corredor da empresa, com aquele aspecto característico de corredor de hotel, de solo alcatifado e portas de madeira. De ar furtivo, óculos na cara, parou quando se deparou com ele. Ia começar a gritar quando, num gesto dilacerante, a agarrou e tapou-lhe a boca com a palma da mão ainda suada. Estranhamente, isso acalmou-a o suficiente para a conseguir, lentamente, soltar.

"Vejam só... isso, mete as mãos em cima de mim. Por todo o país, mulheres inocentes estão a ser atiradas para a prisão por violência psicológica. E entretanto, é perfeitamente aceitável bater-se por tudo e por nada. Gastam-se milhões com acções movidas por homens que se sentem ofendidos por comentários das namoradas ou das colegas de trabalho. Abaixo a violência física! Viva a argumentação verbal!"

"Rapariga, eu acabei de defender que tu deves poder falar, mas não cá dentro da empresa. Fala baixo se não queres ser apanhada pelo segurança. Aí sim, vais ver o que é violência física. Sabes o que fazem a terroristas?"

"Terrorista é quem mata! Que Mundo é este onde já se chama terrorista a quem só quer falar? Só falando e discutindo os assuntos racionalmente é que se pode chegar a alguma verdade! Em que é que dar murros ou brincar ao braço-de-ferro implica ter razão? É o maior brutamontes quem sabe mais?"

"E em que é que falar ajuda? Oh, por favor, as vossas conversas tiveram o seu tempo. E as pessoas eram tão fechadas nos seus preconceitos, que por muito bons que fossem os argumentos, e os factos apontados, e por muita sabedoria que se tivesse, ninguém o reconhecia. As pessoas não trocavam opiniões, expunham preconceitos. E o vencedor da discussão era sempre quem estava numa posição hierárquica superior, ou quem se cansasse mais tarde. Rapariga, ganhar uma discussão não é o mesmo que ter razão. E em sequências infinitas de argumentos e contra-argumentos, em sofismas, em palavras, não se atinge nada de verdadeiro sobre o Mundo. Mais vale ser honesto, aceitá-lo, e usar os punhos."

"Acreditas mesmo nisso? É que isso pareceu-me uma argumentação verbal e racional. O que acabaste de fazer é um crime."

"Sim, mas acabo de vir de uma luta. E só estou aqui a usar palavras contigo porque os terroristas como tu se destroem a si mesmos. Se as palavras são assim tão importantes, vocês deviam ser capazes de explicar porque é que devemos usá-las. Já as usámos, e isso não nos levou a lado nenhum. Dá uma hipótese à expressão física."

Estendendo um dedo, mostrou-lhe a saída, como que dizendo sem palavras, só com um gesto, por onde fugir sem ser detectada pela segurança. Antes de seguir, com o mesmo ar furtivo com o qual tinha entrado, voltou-se para trás e murmurou-lhe.

"Diz o que quiseres. Mas não é com conflitos e aos murros que vais provar a ninguém que tens razão. Pensa nisso. Fight the fight."

"Ter razão? Eu sei quando tenho razão. Eu não preciso de lutar, nem de argumentar, para ter razão."

"Mas então porque é que passas a vida a lutar?"

"Because it's so... much... fucking... fun! Porque pior do que não ter razão é estar entediado. Seja com os teus argumentos ou com a minha força, mas não há nada mais divertido do que a luta."

quarta-feira, 24 de março de 2010

Desafio XIV

Tiago para Blue Storm:

Escrito num livro abandonado em viagem

Venho dos lados de Beja.
Vou para o meio de Lisboa.
Não trago nada e não acharei nada.
Tenho o cansaço antecipado do que não acharei,
E a saudade que sinto não é nem no passado nem no futuro.
Deixo escrita neste livro a imagem do meu desígnio morto:
Fui, como ervas, e não me arrancaram.

Álvaro de Campos

Wings para Ricardo:

I don't need to fight
To prove I'm right
I don't need to be forgiven

"Baba O'Riley", The Who


Blue Storm para Alice in Wonderland:

"O riso é a mais útil forma da crítica, porque é a mais acessível à multidão. O riso dirige-se não ao letrado e ao filósofo, mas à massa, ao imenso público anónimo."

Eça de Queirós

Alice in Wonderland para Wings:


"Só as pessoas fúteis não julgam pela aparência"

Oscar Wilde


Ricardo para Tiago:

"Oh! Se eu soubesse que o Inferno
não era como os padres mo diziam:
uma fornalha de nunca se morrer...
mas sim um Jardim da Europa
à beira-mar plantado...
Eu teria tido certamente mais juízo,
teria sido até o mártir São Sebastião!
E inda há quem faça propaganda disto:
a pátria onde Camões morreu de fome
e onde todos enchem a barriga de Camões!
Se ao menos isto tudo se passasse
numa Terra de mulheres bonitas!
Mas as mulheres portuguesas
são a minha impotência!"

Almada Negreiros, Cena do Ódio

Desafio XIII - Resposta

"Põe quanto és no mínimo que fazes"
Ricardo Reis

Chamam-me um “pateta alegre”. Não será, acredito, com má intenção, mas algo na forma como o dizem mexe-me com as entranhas.

Sinto que tive uma boa dose de sorte ao longo da minha vida. Sinto que tive quem me educasse, e quem me ajudasse, e quem me acompanhasse. Não o sinto, na verdade, sei-o. Sei que nunca estive sozinho, mesmo que bem lá no fundo sentisse a mais desesperante solidão. Sei que tive e que tenho quem me ampare na queda, e quem me ajude a levantar de novo, sempre.

Serei fraco?

A questão ecoa nas paredes da minha casa. Serei fraco porque não sofri? Serei fraco porque decidi voltar, serei fraco porque tive sorte ao longo da vida e portanto nunca precisei de realmente lutar?

Muito bem, assumamos que sou fraco.

Silêncio.

Lá está, nada mudou. Ainda há um nada era pateta, e agora passei a fraco. Se continuarmos esta conversa passarei a inútil, e depois a dispensável. Passarei a um simples consumidor de um já raro oxigénio.

E no entanto, continuo aqui. E no entanto sorrio ao ver o que sou, onde estou, e o que consegui. Sozinho ou acompanhado. Revejo-me em mim próprio. Arrependo-me da minha quota-parte de situações, e dou graças por um outro conjunto de situações que fortuitamente aconteceram.

Um momento de silêncio, por favor.

Sim, sou fraco. Sim, tenho dificuldades em dizer que não. Sim, tremo quando sei que tenho razão mas não ma dão, ao ponto de querer explodir sem no entanto o fazer, sabendo que se o fizesse perderia a razão. Sim, prefiro evitar os problemas a enfrentá-los (“Confront your enemies, avoid them when you can”). Sim, tenho dificuldades em engolir situações novas, por medo de perder o conforto em que me instalei nas antigas.

E no entanto, sou íntegro. Sou aquele que tenta apaziguar, mesmo que não consiga sempre evitar cair na simplicidade do “dizer mal”. Sou aquele que faz o que pensa, e que faz aquilo em que acredita, habitualmente.

No entanto, sou aquele que vive feliz consigo próprio. Aquele que dorme bem à noite, aquele que não sabe onde vai chegar e que se preocupa com isso. Aquele que prefere o mapa à aventura, e que acha o próprio mapa uma grande aventura.

Sou aquele que pára o carro no trânsito matinal para tirar uma fotografia ao nascer do sol. Sou aquele que sorri como resposta a um simples sorriso. Aquele que se alegra com as alegrias dos outros.

Sou pateta? Fraco? Simplório? Talvez. Mas sem nenhuma dúvida sei quem sou. Sou eu, e sou eu quem decide a minha vida. Mesmo que essa decisão seja de fazer o que as outras pessoas esperam que faça, ou o que me pedem para fazer. Sou sempre eu. Às vezes não pareço. No fundo, sou sempre eu.

terça-feira, 23 de março de 2010

Desafio XII - Resposta

- Terei de recusar. Não desejo pertencer a nenhum clube que me aceite como membro.

- Desculpe perguntar, mas qual é a razão?

- Eu sei quem e o que sou. Sei que aos olhos da sociedade não sou uma boa pessoa, não segundo os seus padrões. Não sigo as regras se não concordar com elas, digo a verdade quer queiram quer não. Critico qualquer pormenor que sinta que não está bem, e mesmo assim nem sempre me sinto satisfeito. Se não for feito à minha exclusiva maneira há-de estar incompleto, ou pelo menos poderia ter ficado melhor. Não tenho nenhum senso de solidariedade, nem sequer de companheirismo. Para mim o mundo gira à minha volta, e este meu mundo vai contra a corrente de todos os outros. Agora imagine se fossemos todos assim. Não posso aceitar juntar-me a um clube que aceite este comportamento porque seria insustentável.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Desafio XIII - Resposta

"The whole difference between construction and creation is exactly this: that a thing constructed can only be loved after it is constructed; but a thing created is loved before it exists. "
Charles Dickens



Posso dar-te o mundo.
Posso dar-te o meu Mundo.
Eis o meu mundo:
Quatro estações do ano. Bem definidas e limitadas por dias em que tudo muda. Um caleidoscópio do tamanho dos meus olhos.
O cheiro a mar.
No meu Mundo a praia é um cenário de perto. O fundo são os borrões de pessoas. Viajantes ocasionais que cheiram a futuro.
Deixam búzios na praia. E nós vamos apanhando e ouvindo o marulhar do Mar dos outros mundos.
E a verdade é um tempo que nunca faz parar o relógio.
Deixo-te o meu Mundo, no meu testamento.
É tudo o que tenho.

Deixo-o para ti. O amor que o suporta criou-lhe a existência.

domingo, 21 de março de 2010

Desafio XIII- Resposta

Pedes-me para te explicar. Para te descrever. Mas tu não compreendes? Música é uma droga saudavel. É um vicio que não e vicio. O amor e um vicio. Mas abanas a cabeça, dizes que o amor é a maior das leis humanas. É isso mesmo, o amor é um vicio. E o amor à música é um vicio ainda melhor. É uma lei que não é lei. É abandonares-te e encontrares-te. É deixares de ser tu para seres verdadeiramente tu. Música é encontrares-te depois de te perderes. Oh, sim, estamos sempre perdido de nos proprios...
Música são todos os silencios apaziguadores numa tarde quente e amena de Verão. São todos os dias de Inverno em que o Sol incide numa arvore que perde um pouco da tristeza castanha. Música não é este mundo, é o outro. Música não é sentires-te invadido por uma noite fresca. É sentares-te à beira-mar e ouvires a melodia da Orion enquanto observas a infinidade do céu. Sim, música é isso. Deixares o saber cientifico das estrelas para as encontrares esplenderosamente belas na simplicidade com que te maravilham. Te transcedem.
Música é simples porque é uma questao sensorial. Música é tudo o que o teu cerebro não consegue explicar mas a tua pele sente e reage.
Não! Não. Música não e religiao. Musica é um lugar sagrado onde a restrição é saber sentir. É conseguir sentir e transmitir. Música é o teu lugar sagrado, o teu lugar secreto , seguro. Música é um lugar sagrado . Música não é religiao. A religiao é que tem uma pequena vertente de musica.
Música está muito acima de qualquer Deus que possas imaginar. Porque não ha nada de racional na forma como amas a Música. Por isso é que nunca vais compreender .
A não ser que tambem ames. Que tenhas este vicio que não é vicio. Este chamamento silencioso. Música não é algo deste Universo .

quinta-feira, 18 de março de 2010

Desafio XIII - Resposta

Isso é tudo o que tens para me dizer?

Misery loves company.

E por causa disso vais-te embora? E deixas-me sozinho com as memórias de tudo o que fomos? E porquê? Por causa da minha reclusão? Por causa da minha solidão? Por causa da minha auto e hetero-crítica constante? Por causa desse meu alegado mau feitio, sempre a ver preto no que efectivmente é preto, em vez de fingir que é cor-de-rosa? Por não reconhecer talento e valor no que é ordinário? Por não ceder e não me abnegar à tua banalidade de festas inúteis e tardes em cafés ridículos? Por não achar que em qualquer pessoa está um amigo? Por não me prestar a sorrir a quem odeio? Por recusar a hipocrisia e tentar dar-te uma vida efectivamente diferente e feliz? Então ser consciente e realista é pior do que ser auto-iludido e mentiroso? És capaz de negar que a minha postura me trouxe a capacidade de reconhecer a felicidade onde ela é justa e merecida? És pelo menos capaz de me justificar porque é que essa "miséria" tem que arrastar mais miséria? Consegues efectivamente dizer-me porque é que uma miséria acompanhada, mas consciente e proactiva, é pior do que o teu culto por uma constante alegria tonta, pateta, e cheia de frases feitas? Para além dessa suposta crítica da minha capacidade crítica, sabes mostrar-me algum Mundo interior teu que não seja banal, rotineiro e desinteressante? Sabes dizer alguma coisa que não seja um cliché? Sabes sequer o que esse cliché quer dizer? Tens alguma ideia sequer do que estás a falar? Jesus Cristo, porque estou a perder o meu tempo contigo? Porque é que eu perdi tanto tempo contigo?!

Sinceramente, "misery loves company"?

Is that the best you've got?

Well, sure, at least that may be true.

But company loves misery back.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Desafio XIII

Tiago para Wings:

"You know what music is? God's little reminder that there's something else besides us in this universe, a harmonic connection between all living beings, every where, even the stars."

Wizard, in August Rush

Wings para Blue Storm:


"Um tolo instruído é mais tolo que um tolo ignorante."

Molière

Ricardo para Alice in Wonderland:

"The whole difference between construction and creation is exactly this: that a thing constructed can only be loved after it is constructed; but a thing created is loved before it exists. "
Charles Dickens


Alice in Wonderland para Tiago:

"Põe quanto és no mínimo que fazes"


Ricardo Reis


Blue Storm para Ricardo:

Misery loves company.


Provérbio




Desafio XII - Resposta

Eu não sabia o que me esperava quando pousei o pé no embarque. Só aí começou o entusiasmo do meu companheiro de viagem, que me lembrou o êxtase de uma criança a quem inocentemente será dado um prazer de adultos. O aeroporto transformou um jovem adulto, responsável, recatado, beato e tímido, num excesso de agitação, no "vai ser lindo!", no "mal posso esperar", no "vai ser tudo o que as portuguesas não fazem", no "vai ser logo na primeira noite". Algures a meio do voo, pegou na cruz que exibia pendente do pescoço, e que tanto escárnio da minha parte havia já merecido ao longo dos anos, beijou-a, e disse "lamento, mas o que vai acontecer nesta cidade não é para os teus olhos verem". Quando pus o pé no desembarque, já sabia muito bem o que me esperava.

"São cinquenta Euros por vinte minutos. É caro! Mas vou tentar negociar." E regressou à janela. Andámos mais de meia hora, olhando de janela em janela, despindo com o olhar a roupa que restava aos corpos plásticos humanos que tentavam provocar-nos. A princípio, fiquei fascinado. Era isto que eu procurava nesta cidade: a liberdade, o à-vontade com o corpo, com o mundano, a recusa da moral obsoleta e de tradicionalismos com cheiro a mofo. Tudo isso pareceu-me colado ao vidro das inúmeras janelas.

O menu estava todo ali à escolha. Mas um único prato lhe agradava. Loura, olhos azuis, face demasiado redonda, e roupa interior azul e preta. Dois homens tinham acabado de sair juntos. Mais três esperavam a sua vez. E ali, sorrindo enquanto se tentava expressar num inglês ordinário, o meu companheiro esqueceu-me. Ia entrando, a passos minúsculos, como que vertendo o seu corpo para o interior, até que a cortina roxa se fechou e nada escapava pelos lados senão alguma luz enferma.

Olhei para o relógio. Cinco minutos.

Esperei cinco minutos junto à janela, empurrado acima e abaixo da margem do canal pela multidão oscilante, em correntes intermitentes. Depois, preso pelo deboche mercantil, saturado pelos perfumes ostensivos, perdi-me pelas ruas perpendiculares ao canal, e encontrei assento na porta de uma Igreja antiga e redonda. Rodando o olhar em torno da minha posição, luzes vermelhas escapavam-se por detrás de figuras negras corpulentas em montras improvisadas de jaulas-janelas, insinuando-se e tocando-se da mesma forma mecânica e plástica com que os apetrechos e adereços sexuais se mostram nas lojas de recordações, desavergonhadamente exibidos mas timidamente descontextualizados.

Dez minutos.

Ali, preso no degrau que rejeito, portas meias com o prazer, senti-me rodeado por aquela que deveria ser a minha gente: as prostitutas, os boémios, os devassos, os drogados, os bêbados, e toda a demais escória do Mundo. E, no entanto, olhando-os nos olhos, senti-os tão mercantis como marinheiros em terra pilhada. Os olhos do lado de cá e do lado de lá da montra, quando se encontram, tornam difícil entender quem compra a quem, e se é o corpo ou a ilusão que se transacciona. E eu, traído pelo meu romantismo de vão de escada, vim procurar liberdade e encontrei uma outra espécie de prisão voluntária.

Quinze minutos.

Portas meias com uma catedral do etéreo, a catedral do mundano. De mãos dadas na paisagem, quase se diria que é aqui onde o céu e o inferno se tocam. Amsterdão é onde Deus vem divertir-se e o Diabo arrepender-se. Amsterdão é o sítio de onde tudo o que é humano emana. E longe, na terra onde nasci, febril por fervores ateus, maldigo esta união, bendigo o que é ordinário e renego todos os dias a Deus e à virtude. E lá, acho-me irmão desta multidão recorrendo ao carnal que corre em fileiras paralelas ao canal. Mas aqui olho a multidão e não me reconheço em ninguém. Poderia correr pelas ruas, olhando nos olhos e beijando na boca cada um deles. Não importaria. Não haveria alma onde me reconhecesse nem saliva que me saciasse. Eu estou no meio, e sentirei sempre esta revolta contra o local que cale metade do que sou, seja essa metade sagrada ou profana. Eu não sou irmão do Homem. Mas também não sou filho de Deus. Eu sou pai de mim mesmo. Eu sou um produto da minha própria imaginação.

Subitamente, sem grande capacidade de me deter, o degrau onde me sentava rodou e tornou-se num oratório. Vi-me ajoelhado, de olhar elevado para a figura numa cruz pendurada no topo da porta, para sempre tendo prazer no seu calvário. Cristo sado-masoquista, exibido numa igreja de rua de sexo. E, pela primeira vez desde que eu próprio era criança e ficava em êxtase quando era levado ao Mundo dos adultos, rezei. Traí tudo aquilo em que acredito, rezando.

Vinte minutos. Hora de voltar.

Encontrei-me com ele junto à mesma janela que se tinha coberto por uma cortina suspeita, reveladora na sua opacidade. "E pronto, já está", disse-me, mesmo perante a minha total indiferença e desinteresse. "Mas isto... só vinte minutos não dá para nada", insistiu, interessado em puxar-me para dentro da sua experiência. "E o pior é que ela nem quis fazer o que eu lhe pedi", acrescentava enquanto retomávamos o caminho. "E depois perde-se imenso tempo com conversa... e nem dá para chegar ao fim." Acelerei o passo. "Vinte minutos não dá para nada." Silêncio. "Mas tens que experimentar!" Silêncio.

"E tu, que fizeste entretanto?" Surpreendeu-me a minha incapacidade para lhe dizer a verdade. "Estive só ali à tua espera." Afinal, vinte minutos, para mim, deram para muito. Deram para descobrir um Mundo quase obsceno, de tão nú e pessoal, que me envergonha e do qual não quero falar. What happens in Amsterdam, stays in Amsterdam. E sempre pensei que ao dizer isto me estivesse a referir a sexo. Mas Amsterdão ensinou-me que há coisas bem mais vergonhosas do que foder.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Desafio XII - Resposta

"A bondade consiste em estimar e amar os outros para além do que eles merecem."
Joseph Joubert


Ele brincava nervoso com a aliança que trazia no dedo anelar esquerdo. Não era raro mexer-lhe, embora nos últimos tempos o fizesse de mais em mais frequentemente. Tinha à sua frente, naquele velho restaurante escondido da cidade de Lisboa, um copo de um qualquer aperitivo esbranquiçado que ia sorvendo de quando em vez. Na mesa estavam postos dois couverts; era evidente que esperava alguém.

Enquanto o fazia, olhou em volta. O restaurante estava quase igual à última vez em que lá tinha estado, havia mais de vinte anos. “Vinte anos”, pensou carregadamente, suspirando. “Uma vida inteira”. A decoração tinha mudado bastante, assim como os empregados. Reconheceu, mal entrou no restaurante, o patriarca daquela casa, que se movia lentamente pela sala, garantindo que tudo estava bem com os seus clientes. Os seus provavelmente oitenta anos pesavam-lhe muito mais que da última vez, quando corria por todos os lados, fazendo voar pratos pelas mesas de forma que nenhum cliente ficasse atrasado da sua curta hora de almoço, no entanto apreciando sempre boa comida.

Foi lá, enfim, que pediu a sua namorada em casamento, depois de mais de dez anos de namoro. Ela tinha sido o seu primeiro amor; a sua namoradinha de infância; a sua miúda da adolescência; a sua companhia de universidade; a sua namorada, a sua mulher. E não podia deixar de admirar o seu pequeno toque de ironia ao convidá-la naquele dia, de entre todos, para almoçar ali.

Quando ela entrou no restaurante, vinha despenteada e um pouco perdida. Trazia na mão alguns papéis, e o casaco mal arranjado.

- “Desculpa o atraso, mas tive de fazer uns telefonemas importantes antes de sair.”

- “Não… não faz mal…” – Foi naquele momento que ele percebeu que ia custar mais que todos os planos que tinha feito à noite para si próprio. Era um facto que o casamento não corria bem, e que a culpa era muito dela, que sempre quis mais para si que para eles os dois. Foi ela que não quis ter filhos para não perturbar a sua ascensão galopante na empresa, para que ele não se visse obrigado a ter de os educar sozinho. E ele tinha estado sempre ao lado dela, tinha-a sempre motivado e apoiado, tinha-a levantado nos momentos difíceis e tinha festejado à sua sombra as vitórias dela. Ele tinha estado sempre lá. Sempre.

Mas hoje acabava. Tinha sido demais. As desconfianças de algumas histórias mal contadas, com o acumular de tantos anos de frustrações tinham atingido o limite. Não podia mais. Queria poder passar o resto da sua vida a pensar em si, em aproveitar a quão magnífica era a sua própria vida. Queria conhecer mais pessoas, queria usar e abusar do seu tempo, queria ir onde nunca tinha ido e ver o que nunca tinha visto. Acabava ali.

- “Tenho uma coisa para te dizer.” – começou, ganhando fôlego.

Ela olhou-o, notando uma reverência pouco habitual nele. E quando se tentou concentrar no que ele lhe queria dizer, vieram-lhe de repente todas as memórias dos últimos dias: a clínica, os exames, a biopsia, os resultados. Ele não podia saber. Ela não queria saber. Não era justo, não agora que ela tinha todo o seu tempo planeado para atingir o posto mais elevado da sua empresa. Agora que os apoios apareciam à esquerda e à direita. Não, não podia ser. E até àquele momento tinha vivido tudo de uma forma racional. De alguma forma aquele espaço, aquele homem à sua frente, e a reverência com que a olhava devolveram-lhe a fragilidade. Por um momento. Por um pequeno momento. O bastante.

Poucos segundos depois de começar a olhar para ele, começou a chorar. Grossas lágrimas caíam da sua face em direcção à mesa, e ela soluçava descontroladamente num restaurante onde toda a calma tinha desaparecido.

“Mas eu ainda não disse nada! Será que ela já sabia?”, pensou para si. Ele não tinha falado com ninguém de nada. Era impossível era saber. Perguntou o que se passava, e ela simplesmente passou-lhe os papéis que trazia na mão para as suas mãos. Um tumor maligno em fase avançada. Foi descoberto muito tarde. Tarde demais. Em resumo, não havia nada a fazer. O papel assinava gravemente a sua sentença de morte: 1 ano, não mais.

E num só momento tudo se desvaneceu. O mundo parou e rodou ao contrário por um pequeno instante. Desapareceram as frustrações, as semanas a pensar e a decidir dar finalmente o grande passo. As casas que procurou para alugar. Tudo. À sua frente estava, simples e frágil como há vinte anos, a sua mulher, o amor da sua vida, a única pessoa que tinha despertado nele tudo o que havia de melhor. A única pessoa que realmente amara, e que agora estava a morrer. Que agora via a vida a passar-lhe por entre os dedos como finos grãos de areia.

Tentou dizer-lhe nesse ano o quanto a amava como se de dez anos se tratassem. A sua saúde piorou rapidamente, e passado pouco tempo ele passou a viver para ela, e ela largou finalmente o seu trabalho. Os tratamentos mantinham-na um pouco melhor, mas a sua própria desmotivação não ajudava. Um ano depois daquele almoço, ela repousava na cama do hospital, num coma induzido para minimizar as dores, enquanto lentamente morria por dentro. Enquanto o tempo amargamente e cruelmente fazia o seu trabalho, como sempre fazia. E ele dormia ao seu lado, num sofá improvisado, onde os médicos simplesmente não conseguiram recusar a sua estada prolongada.

Dez anos depois daquele almoço, ele voltou ao restaurante. O patriarca tinha já morrido, assim como a sua mulher. Ele vivia agora num pequeno apartamento, e refizera a sua vida, a pouco e pouco. Não teve mais ninguém, e arrependia-se do dia em que chegou a pôr essa hipótese. Um dia pediria desculpa à sua mulher. Naquele dia, pediu o mesmo aperitivo que tinha pedido dez anos antes. Depois deixou-se ali ficar, em silêncio, olhando o mundo indiferente à sua dor. Queria apenas silêncio, queria apenas um sítio acolhedor onde as memórias boas pudessem aquecê-lo um pouco de novo. Olhando à volta, bebendo da vida das outras pessoas que iam entrando e saindo, foi-se deixando ficar. Estavam dois couverts na mesa. E ele brincava ainda nervoso com a aliança.

Desafio XI - Resposta

"Porque quem ama nunca sabe o que amaNem sabe por que ama, nem o que é amar"

Não me canso de perguntar: o que é o amor?

Desde pequena que o vejo por todo o lado, no mais simples olhar, num abrço, num gesto. Uns dizem-me que é algo bom e maravilhoso, outros que é algo amargo e que nos faz sofrer. Está bem. Mas que me diz isso da essência do sentimento? Podem-me dizer que o quadro tem vermelho e azul, mas fico sem saber o que é.

Tantos são infelizes por falta deste amor. Talvez perceba. Mas porquê? O que nos faz amar alguém? A sua aparência, personalidade, o seu cheiro? E porque se ama alguém se nunca o vamos conhecer completamente?

Não estou a duvidar do valor de amar. Como iria desvalorizar algo que move rios e montanhas, que mata e vida dá? Apenas penso que se o compreendesse, se soubesse o que é e o pudesse descascar até ao amâgo, poderia... talvez aproveitar melhor. Não sei, não sei nada.

Talvez um dia perceba. Ou talvez não. Se calhar é essa mesma a beleza de amar: o mistério de nunca ao certo se saber como e porquê. Uma aventura. Talvez, talvez...

quinta-feira, 11 de março de 2010

Desafio XII - Resposta

Procuraste-me com esse medo descontraido nos olhos. Mas procuraste-me para, discretamente, me pedires essa protecçao peculiar de quem tem como amigo um louco que é mais lucido que todos os conscientes deste universo.
Com um sorriso confessaste-me o terror que te ia profudnamente na alma. O ponto de crueldade a que eles chegam. A facilidade com que rasgam uma vida inocente como se fosse um papel já gasto e antigo. A frieza suja que ves quando os olhas nos olhos. A certeza de que poderás ser um alvo fragil, a certeza de que qualquer um é. Porque eles nao tem qualquer amor-proprio, nenhum tipo de auto-valorizaçao . La no fundo, eles odeiam-se estridentemente. E isso é deveras perigoso.
Mas só para eles. Tens medo do que? Esta ideia de que devemos temer quem não tem sentimentos enerva muiito para alem de ser um lugar-comum. É uma falacia. Nunca podes ter medo deles porque tu tens o que eles matam para ter. A tua pessoa, um reflexo suave e bonito no espelho. A tua dignidade, intacta. O teu amor-proprio a garantir uma boa tarde de Verao a brilhar no espelho dos teus olhos. Não tenhas medo, toda a crueldade de que poderás ser alvo é uma ilusao.
Procuraste-me. Por saberes que eles temem alguem meio louco. Por teres visto a sua fragilidade ridicula e patetica perante alguem como eu. Alguem como eu, compreende, deverá receber toda a tua atenção receosa por estar em perfeito estado interior. Por vence-los através do calcanhar que se esquceram de proteger. Esquecem-se sempre, veem-se sempre melhor e maior do que são. Olha para ti e cobre as tuas fragilidades.
E abandonas esse medo lógico da tua mente. Quando proteges o calcanhar alcanças uma certa loucura, sim. A de te teres a ti como companhia.

Desafio XII - Resposta

"Youth is a wonderful thing. What a crime to waste it on children."

Devagar muito devagar, primeiro na mente, depois nas mãos, executou a tarefa meticulosa de identificar e isolar aquele perfume. Procurava-o há anos, tornou-se ele na própria obsessão daquele cheiro, como se fosse perseguido a toda a hora por memórias tão duras que lhe construíam o presente.
Aquele cheiro de liberdade, onde as manhãs eram iguais às tardes, o riso desenfreado quando perseguia borboletas livres. Era o cheiro do não-futuro, da eternidade do segundo, renovada em cada golfada de ar respirada.
E esse era um cheio de morangos silvestres desenhados nas janelas, de castanhas quentes comidas com cascas. Era um cheiro da chuva de manhã, quando saltava por cima das poças de água nos caminhos enlameados. Ou um cheiro do calor de Junho, da cola e do papel de lustro. Um cheiro longo dos vestidos que usava nas peças de teatro (e esse era o único passado permitido).
Sabe também que cheirava à madeira do cesto de vime onde estava a comida. Ao chocolate misturado com nozes que partilhava. Às aventuras dos seus sonhos quando era um explorador.
Quando conseguia cheirar tudo isto. E não ter consciência de nada.
Mas agora, finalmente conseguira recolher meticulosamente todos estes pequenos cheiros. Demorara anos a reuni-los, a conseguir a proporção correcta. Aquela essência era agora sua. Outra vez.
Que desperdício gastar toda aquela pureza nas crianças.
E foi por isso que quando, na sua pequena sala, abriu finalmente o frasco para libertar uma gota daquela essência, o cheiro libertado foi o de umas flores banais. Afinal, era a essência dele que devia ter permanecido.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Desafio XII

Tiago para Alice in Wonderland:

"Youth is a wonderful thing. What a crime to waste it on children."

George Bernard Shaw

Alice in Wonderland para Ricardo:

"Have you ever been at someplace
Recognizing everybody's face
Until you realized that there was no one there you knew"

Have you ever - Offspring



Ricardo para Blue Storm:

Não desejo pertencer a nenhum clube que me aceite como membro.
Groucho Marx


Blue Storm para Wings

" (...)
Realize we spend our lives living in a culture of fear
Stand to salute, say thanks to the man of the year
(...)"



Sum 41, We're All to Blame



Wings para Tiago:


"A bondade consiste em estimar e amar os outros para além do que eles merecem."


Joseph Joubert

terça-feira, 9 de março de 2010

Desafio XI - Resposta

And the road becomes my bride
I have stripped of all but pride
So in her I do confide
And she keeps me satisfied
Gives me all I need

Talvez tenhas uma casa.
Talvez.
Dou-te essa dúvida, como te podia dar qualquer coisa. Esgotas a minha paciência com a tua necessidade de isolamento. Mas eu dou-te essa e não te dou mais nenhuma. Porque na verdade, tu não sabes nada.
Achas que tens uma casa porque vives numa. Tal como céu é azul.
Disseram-te isso um dia e tu registaste e catalogaste, como tantas outras informações que tens armazenadas no compêndio do teu cérebro. Um cérebro gigante, que foi crescendo de factos esporádicos e hoje é tão oco quanto o de um puro ignorante. Com a diferença que o ignorante não me esgota a paciência como tu, não me obriga a usar dúvidas.
Não, tu não tens uma casa. Tu tens uma mobília encarniçada com uma cama onde dormes enrolada no conforto que elaboras todas as manhãs. Tens uma varanda solarenta onde estendes a roupa e onde colocas algumas plantas que regas com a tua própria existência.
Abres os olhos de manhã, vês o mesmo ângulo sentes-te em casa. O coração não se mexe, é a tua casa. Olhas pela janela ensonada de ti mesma e sentes compaixão por quem anda aí, sozinho. Pela estrada.
É nesta altura, nesta precisa altura em que sentes esta compaixão pormenorizada, que toda a minha paciência para a tua existência se esgota.
Porque tu nunca serás como ele. E a tua existência é miserável como uma onda banal, umas seis que chega à praia. Porque nunca serás independente com coragem para seres um nómada que caminha no Mundo colhendo os seus frutos suculentos: o mistério do Mundo não está em lado nenhum. Nunca serás um nómada permanentemente confortado com as suas pegadas. Que está sempre quente. Que está sempre aconchegado. Porque ainda que esteja na rua, ele tem junto a si, ele próprio.
E tu? Tu fechas-te em casa, dás várias voltas à chave e ligas o aquecedor. Não para estares em casa. Não para teres uma casa. Mas para mascarares o pesadelo diário que é conviveres contigo.
A estrada é o orgulho dele. Porque ele efectivamente caminha.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Desafio XI- Resposta

Quem te não avaliar correctamente sentirá um medo corrosivo se olhar directamente para o poço dos teus olhos. Podem ser feitos de aço, sim, os teus olhos são a tua mais destrutiva arma. Desfazes qualquer um com esse punhal que tens implicito no olhar critico. Critico construtivo, é preciso conhecer-te para reconhecer que não és insensivel.
Tomaste uma direcçao algo única. E como todas as opções inovadoras são, ate certo ponto, questoes socialmente clandestinas , tiveste de te endurecer. Disciplinar o coraçao. Quem não for suficientemente forte, honesto ou resistente olhará para ti e temerá o fim. Porque quando tu entras numa sala fazes-te acompanhar por toda a energetica mudança que está no teu espirito. E é ai que se inicia a rotina natural da evolução. Ou acreditam na manutenção do conceito de melhor ou na insistencia em defender o que é estavel . Unicamente por ser seguro. E tu és a representaçao da morte, daquela que é saudavelmente selectiva. Sim, até a tua voz encantadora tem o som do fim. Os teus olhos são um poço, duro como o aço. Eles são tao fracos, tao sedentos de estabilidade e de qualquer felicidade. Tao frágeis. Tao dobraveis. Que quando se debruçam nas tuas aguas de aço vem o reflexo da mediocridade que são.
Às vezes, na calma de uma noite quente, desejas quebrar essa inovaçao, esse sobrevivente belico que existe em ti. Amoleceres um pouco, perderes a tua boa forma. Mas basta-te entrares numa sala. Olha-los. Observá-los. Eles são tao pequenos, são anoes num mundo de gigantes. E a sua ignorancia e tao grande que se veem como gigantes num mundo de anoes...
Mas basta-te entrar numa sala. Escolheste a direcçao única. O teu coraçao está disciplinado. O aço que brilha nos teus olhos é a força de existir que sustenta o teu espirito. Preferes esse poder, de auto-dominio. Preferes esse dom, de seres um poço.
És o vento que transporta a inovaçao. Os teus olhos são criticos construtivos. Não destrois. Simplesmente, o aço que tens em ti é uma arma poderosa contra a virtude suja que há no mundo. O aço que tens em ti é uma arma tão poderosa que a evolução és tu.

Fizeste a escolha certa. A estabilidade inócua so os tornou vulneraveis à sua propria consciencia de falhanço. Mas o teu aço é extraordinariamente humano.

Desafio XI - Resposta

"The future is something which everyone reaches at the rate of 60 minutes an hour, whatever he does, whoever he is."
C. S. Lewis

Não olhes para mim com essa cara!

Enganas-te se pensas que só por eu estar aqui sentado e tu aí a trabalhar, o teu futuro vai chegar mais depressa do que o meu... Enganas-te se pensas que me conheces. Não fazes senão perder o teu tempo se tens pena de mim quando por mim passas. E desprezo-te amargamente quando pões o teu ar superior e me debitas um qualquer cliché que outro pensou e que a ti te daria muito trabalho, mesmo que lá pudesses um dia chegar.

Mas não chegas, nem chegarias, e sabes porquê? Porque te manténs aí sentado, com esse fato que me poderia ter alimentado mais de um mês, com essa camisa que outros te lavaram e engomaram, com esses sapatos que outros, iguais a mim, te engraxaram. Preferes vê-los aos teus pés, bem sei. É isso que te permite o poder a que te permites, bem sei. Nunca serás nada.

Eu? Também não, mas sabes o que nos difere? Eu tenho um filho. Não, não abras sequer a boca para dizer essas palavras. O que tu tens não são filhos, são seres humanos com quem partilhas a casa e preferes ver pelas costas. Porque isso é trabalho para as amas, que estão certificadíssimas para as educarem na nobreza e nos bons costumes. Sim, eu admito. Se soubesse o que sei hoje não teria sido pai. Mas o meu filho foi apenas fruto do amor, enquanto o teu foi a rota habitual da conveniência. Depois a minha mulher morreu, e hoje vejo-me obrigado a usar o meu único rendimento para pagar um vão de escada, a comida do meu filho, e a poupança que faço para ele. Porque ele será alguém na vida ao contrário do pai, e enquanto eu cá estiver para ver, ele nunca será como tu, deus assim o permita.

Está na minha hora de me levantar. Pensavas que vivia de esmolas, era? Enganas-te. Por ironia, és tu quem me dá trabalho. Tu e todos os que atiram lixo para o chão no dia-a-dia, porque os caixotes do lixo são simplesmente sujos demais para te aproximares.

Pensas que te odeio? Que te desdenho, que falo mal de ti a todo o momento? Pensas que penso em ti mais que o tempo que perdi a desabafar nestas linhas? Pensas que tudo gira à tua volta, como todos os outros. Enganas-te. Quando acabar de escrever, tu vais ser apenas mais uma pessoa nessa fila de trânsito. Que veículo tão potente que conduzes, se não fazes mais que gastar a embraiagem.

Desculpa-me, tenho de ir trabalhar. Depois à noite vou ao teatro com o meu filho. Tenho bilhetes que me ofereceram por ter um part-time a limpar a sala de teatro antes das sessões.

O teu futuro não é assim tão risonho. Tu apenas o pintas para que assim pareça. No fundo, o teu futuro vai sempre andar a par do meu. E no fim ao menos eu sentirei que fiz tudo ao meu alcance para conseguir ter uma vida melhor. Para ti terá sido tudo simplesmente fácil demais.

domingo, 7 de março de 2010

Desafio XI - Resposta

A primeira vez em que a saudade o dominou o suficiente para deixar marca foi com a fotografia da sua avó portuguesa na mão. Roupa preta pesada de luto, o cabelo apanhado, brincos em argola e fios de ouro, um olhar grave e um padrão de núvens do estúdio do fotógrafo. Tudo na fotografia a preto e branco da época era assim: um conjunto de pormenores desgarrados, e uma sensação global de austeridade.

"So you say you want to study Portugal?"

"Not Portugal. Just one word. This 'saudade' word. I got it from my parents. They say it's unique. The media claims it cannot be translated. It's actually a feeling, a very Portuguese feeling. My late grandmother was Portuguese, and I think I can get that 'saudade' just from looking at an old picture of her. I believe there's something there."

"Humm. I don't really see the point… Even if there is no other single word to translate it, how can there be a feeling that can only be felt for Portuguese-related issues?”

“That’s just not it. You don’t understand.”

“Look, I can see that you’re very interested in this. So I’ll tell you what. You go to Portugal, see what you can find. If we come to the conclusion that the so-called ‘saudade’ feeling is rubbish, then you come back and we'll find you another PhD. thesis on national language specificities, or something like that."

A segunda vez em que a saudade o dominou foi ao ser confrontado pelo orientador com a necessidade de regressar a Portugal. Recordava-se do Verão em que, ainda menino, voou de New Jersey até Lisboa com os pais. Recordava-se dos jardins de Belém, dos símbolos dos Descobrimentos, de uma feira onde andara na montanha russa e no comboio fantasma. Recordava-se de um sítio lindo onde nem tudo eram prédios e avenidas, onde o Sol brilhava e as pessoas eram afáveis e interessadas. Recordava-se de uma felicidade sem nome. Talvez os portugueses tivessem nome para ela também.

Portanto meteu-se no primeiro avião que conseguiu reservar e rumou a Lisboa, para casa de amigos dos pais. Foi por eles que iniciou a sua diligência. Repetiu-lhes as suas dúvidas. Repetiu-lhes o discurso do seu orientador. A resposta era sempre a mesma, castradora e anti-esclarecedora.

“You just don’t understand. That’s not it.”

Os amigos dos pais recomendaram-lhe que falasse com linguistas. Perguntou-lhes tudo o que lhe passou pela cabeça.

“So, this ‘saudade’ that I keep hearing about... Is it like missing something or someone? Like, really wanting something that is no longer there? Is it the application of the ‘je ne sais quoi’ of the French to the past? Is it just a positive impression of something we lost?”

A todas as formulações que lhe ocorriam, a todas as definições que conjurava, não tinha senão respostas vagas. Qualquer ideia, por mais que lhe parecesse correcta, não lhes agradava. A resposta era sempre a mesma, castradora e anti-esclarecedora.

“That’s just not it. You don’t understand.”

E os linguistas recomendaram-lhe que falasse com historiadores. E os historiadores levaram-no a Belém. Explicaram-lhe a História portuguesa nos monumentos, nos símbolos dos Descobrimentos. Ensinaram-lhe que a Torre, o Padrão, o Mosteiro, todos, na sua imponência, são uma bandeira que recordará para sempre que Portugal que foi forte, aventureiro, e motivo de orgulho. Mas aquele Belém já não lhe parecia ser o Belém da sua infância. Na infância, eram só coisas bonitas. Assim descritos, aqueles edifícios pareciam chamá-lo e dizer-lhe “deixa-nos contar-te um segredo: Portugal descobriu um Mundo novo só para depois se ajoelhar a rezar”. E ainda está na mesma posição. Enquanto outros construíram caminhos de ferro, revolucionaram as Artes, inventaram o cinema, em Portugal construíram-se igrejas. Não admira que este povo tenha saudades do passado. Só que o próprio passado de que sente falta já não é real. A realidade já o ultrapassou. A tudo isto obteve a mesma resposta, castradora e anti-esclarecedora.

“You just don’t understand. That’s not it.”

E os historiadores recomendaram-lhe que falasse com moradores da zona antiga de Lisboa. E os moradores levaram-no a contemplar os prédios, de traçado único no Mundo, as ruas sinuosas, inclinadas e curvas, derrapantes e sombrias. Mas tudo o que viu foi sujidade e parcas condições de vida. Presenciou a ruralidade urbana, viu pessoas a cuspir no chão, viu casas a cair. Viu prédios fechados a cadeado, viu porta sim, porta não emparedada. Viu janelas e vidros quebrados, animais sujos e doentes que se arrastam nas janelas. Viu flores mortas nas varandas minúsculas. Viu idosos desprezados em pijama nas janelas. E apeteceu-lhe fugir dali sem mais respostas.

“That’s just not it. You don’t understand.”

E os moradores recomendaram-lhe que falasse com fadistas. E os fadistas levaram-no a ouvir fado, a música nacional, a melhor expressão da alma portuguesa. Mas o fado era uma canção monotónica e repetitiva, quase irritante no seu marasmo emocional evocativo de um passado que nunca foi tão bom que mereça tamanha monotonia perante o presente. O monocronismo dos cantores, o tradicionalismo das guitarras constantes, competentes mas sem imaginação, deram-lhe sono. No pequeno restaurante encardido de Alfama, levantou as suas questões, e foi insultado e expulso.

“You just don’t understand. That’s not it. We give up. You are just one dumb American who will never understand the true value of History and culture. Go back to your plastic culture. We are better than you.”

Mas entendia. Ainda viajou de carro. Foi ao Porto, foi a Évora, foi ao Algarve; foi à montanha, ao campo e à praia. Tomou café a olhar para o mar e adormeceu na areia. Leu Eça em aldeias de pedras estranhas e gastas, onde as luzes se apagam ao entardecer e os cães pulguentos e sarnentos espantam o futuro para bem longe. Passou um mês em Portugal. Descobriu um país lindo para visitar. Mas pavoroso para morar.

Em um mês entendeu perfeitamente o significado daquela palavra empolada na sua importância e distorcida no seu sentido. ‘Saudade’ significa ficar amorfamente a inventar uma delirante história feliz para aquele que foi um passado triste. 'Saudade' significa camuflar as vistas curtas e a falta de horizontes com mitos sobre um passado que toda a gente sabe que nunca foi presente. É por isso que até os poetas e escritores desta pátria não têm pejo em afirmar que o passado que cantam é uma ilusão. Aquilo que lhes interessa é a ideia do passado, e não o passado em si. De nenhuma outra forma, que não a auto-ilusão, poderiam sentir-se justificados. Os pobres desgraçados, os Eças e os Saramagos, que tentam acordar Portugal do marasmo da 'saudade', puxar o país pelo braço do altar beato onde reza há séculos, são exilados pela pior lei de todas – o decreto do discrédito.

E ele, pessoalmente, desistiu naquele momento de fazer uma tese sobre Portugal. Ele não sabia o que queria para a sua vida – mas essa inutilidade estilística não queria, de certeza. Em Portugal há muita História, mas não há nenhuma história.

E, por isso, a terceira vez em que a saudade o dominou foi perante a falta que New York lhe fazia, com os seus prédios e avenidas, a sua escolha, a sua diferença. Portanto meteu-se no primeiro avião que conseguiu reservar e rumou a Nova Iorque; guardou as malas num cacifo e caminhou pelas ruas, sem vontade de regressar à casa dos pais em New Jersey. E por uma vez a saudade que sentiu correspondeu ao que via. E por uma vez algo que via, e não uma memória de infância, geraram uma felicidade sem nome dentro de si. Por nenhum momento se iludiu – soube reconhecer os problemas e a podridão daquela cidade. Mas pelo menos as luzes e os carros, os ladões, os violadores e os assassinos, eram todos símbolos de uma História viva que se move connosco, que presenciamos e que ainda importa, e que só lá se encontra, naquele grande monstro que se ergue na vertical. Sentiu-se afortunado por ter entendido a tempo que as fabulações sobre o passado não trazem mais do que angústias e perspectivas distorcidas do real. E bloqueiam um futuro melhor. E condensou este princípio numa frase só.

"’Saudade’ is bullshit.”

Quando uma vontade imensa de comida chinesa o invadiu, já nem sequer lhe chamou saudade. E satisfez essa vontade, sentado na mesa de toalha xadrez vermelho e verde. Pediu a conta, e recebeu o seu fortune cookie. Sorriu, pensou parvamente que talvez naquele biscoito pudesse achar o novo tema para a sua tese. Algo vivo, actual, com relevância para o Mundo. E mesmo que o que ele procura não fosse tão simples que se possa achar na frase do papel no interior, ela foi pelo menos o corolário de uma viagem que lhe valeu uma lição de vida.

"Treasure the past that never was, and all you get is the future that will never be."

terça-feira, 2 de março de 2010

Desafio XI

Tiago para Ricardo:

O que me seduz no passado não é o presente que foi - é o presente que não é nunca. O que sonho nestes cânticos não é a paz do passado: o que sonho é o sonho."

Virgílio Ferreira, em Aparição




Ricardo para Wings:

"Steel?
We have no butter,
But I ask you
Would you rather have butter or guns?
Shall we import lard or steel?
Let me tell you
Prepardness makes us powerful,
Butter merely makes us fat.
"

(The Prodigy, booklet de "The Fat of the Land")


Wings para Alice in Wonderland:
And the road becomes my bride
I have stripped of all but pride
So in her I do confide
And she keeps me satisfied
Gives me all I need

And with dust in throat I crave
Only knowledge will I save
To the game you stay a slave

Roamer, wanderer
Nomad, vagabond
Call me what you will

But I'll take my time anywhere
Free to speak my mind anywhere
And I'll redefine anywhere

Anywhere I roam
Where I lay my head is home

(Metallica, Wherever I may roam, Black Album)




Alice in Wonderland para Blue Storm:



"Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar"



Alberto Caeeiro


Blue Storm para Tiago:

"The future is something which everyone reaches at the rate of 60 minutes an hour, whatever he does, whoever he is."
C. S. Lewis

Desafio X - Resposta

“I don't believe in an afterlife, so I don't have to spend my whole life fearing hell, or fearing heaven even more. For whatever the tortures of hell, I think the boredom of heaven would be even worse.”
Isaac Asimov

O que os tornava tão especiais era o quão eram diferentes. Naquela tarde de Inverno, embrulhados numa manta grossa de lã, bebiam chá enquanto viam o pôr-do-sol ao fundo da rua. O prédio onde moravam era igual a tantos outros naquela velha cidade europeia. Como tantas. Como muitas.

Embora fosse um ritual tão repetido nas tardes de sexta-feira – ver o pôr-do-sol de forma a apreciar o início do fim-de-semana e beberem um chá como todos os habitantes naquela cidade – ele não podia deixar de se sentir desconfortável. Já perdia a conta ao tempo a que faziam aquilo, no entanto sentia ainda os olhos dos transeuntes e dos vizinhos sobre eles quando passavam, entrava ou saíam do prédio. Ela, por seu lado, sentia-se completamente à vontade, e acima de tudo feliz. Na verdade aquele era para ela dos poucos rituais que fazia com prazer; todos os outros eram feitos como compensação do seu companheiro embarcar muitas vezes contrafeito nas aventuras dela. E era exactamente aquele dicotomia que os tornava especiais. Porque o amor que sentiam um pelo outro ia muito além dos rituais e tradições dele, ou da sede de aventura e inconstância dela. Era algo muito mais profundo e inexplicável. Era um sentimento de pura completude, como se a partir de um momento um não pudesse existir sem o outro, como se a loucura dela não pudesse viver sem a calmaria dele.

- “Já pensaste como será o céu?” – Foi ele quem quebrou o silêncio. E conforme abriu a boca, uma nuvem de vapor saiu e juntou-se à que saía da chávena de chá com que aquecia as mãos.

- “Ou o Inferno? Não sei, não acredito especialmente nessas coisas.”

- “Porquê o Inferno? Fizeste alguma coisa de mal?”

- “Pequei contra a sociedade.”

- “Que tola… só se pecaste por escolher tomar a tua vida nas mãos, ao contrário de todos os outros que se deixam ir.”

- “… Como tu?”

- “Eu deixei-me ir por ti. Não sei, achas que mereço o Inferno?”

- “Eu acho que merecemos os dois ir para o Inferno.” – A cara dela continuava séria.

- “E lá se vai o meu desejo de eterno repouso.”

- “O eterno repouso é uma seca!”

- “E eu para Inferno já bem me basta o meu dia-a-dia.”

- “Vamos fugir?”

A pergunta ficou no ar. Ele lembrou-se imediatamente daquele dia de Fevereiro. Chovia a potes quando aterraram no seu destino, o céu estava negro para um dia que ainda mal começara, e nem sabiam muito bem o que haveriam de fazer. Decidiram fugir, não no sentido rápido da fuga, visto que foi algo planeado e pensado, mas fugiram na mesma. Das famílias, e dos amigos, e do país e de todas as coisas que deixaram para trás. Com eles apenas duas malas e duas mochilas. Os olhos dela irradiavam luz. Os dele transpareciam medo.

- “Já fugimos que chegue. Vamos assentar. Vamos para o céu.”

- “Que piada teria isso, assentar?... Que sentido faria tal coisa? Como pôr um ponto final na nossa vida, e não passarmos de mais dois escravos da sociedade?” – Ela sorveu um pouco do seu chá, depois olhou-o nos olhos pela primeira vez. – “Tu gostavas de assentar?”

Ele bebeu também um pouco de chá. Depois olhou o pôr-do-sol um pouco, reflectindo sobre a pergunta dela. Ele próprio já se tinha questionado várias vezes sobre isso. Depois olhou-a de novo nos olhos.

- “Um dia, talvez… Mas senão também vou contigo para o Inferno.”

Desafio X - Resposta

Lucy. A simplicidade de um nome inglês suspirado num trago. Sem interrupções, sem pausas nem descanso. Lucy, e a sua mão agitando-se ao mesmo tempo dos ombros, palma acima e palma abaixo, dançando como uma onda ao ritmo das luzes e dos sons descontrolados e chiado por uma má aparelhagem. Lucy dançando, Lucy cantando. Habituei-me a ler nos lábios dela o que a música alta não deixa ouvir. Ela só me aparece entre muitos, quando alguma banda vinha à cidade ou quando éramos nós a descer à cidade à sexta-feira à noite. Habituei-me a escutá-la por entre o barulho, a saciar-me com os gestos, com o cabelo solto comprido a oscilar, com um toque no ombro e um sorriso que dizia "trás-me mais uma bebida". Lucy. A simplicidade de um sonho de algum dia a sua voz ser a única onda a escutar.

Ela saltou do nosso grupo de amigos para a minha vida numa despedia de solteiro. No jantar não éramos muitos, uns dez talvez. Dez, como as horas em que saímos precocemente do restaurante. Chegámos ao clube de strip ainda nem eram onze. Onze, e chegou ela. Com a sua camisola de Verão de mangas largas, uma t-shirt de alças por cima, e calças à boca de sino. A minha Lucy fora de sítio, fora do contexto, fora da década. Imaginei aqueles cabelos lisos ondulando no pó de Woodstock, de olhar saltitante, apressado enquanto muda o semblante onde se fixa brevemente, como um pardal pulando de ramo em ramo. Imagino-a sempre como naquela primeira noite. A única mulher entre homens, dez, eu um deles. Eu, de longe. Eu, observando dolorosamente enquanto ela ri, enquanto ela se senta ao colo de um, enquanto coloca uma perna em cima de outro. O corpo, ela usava-o com as strippers que dançavam, parecia que muito longe. O corpo dela era permitido até certo ponto. A fronteira do privado estava demasiado adiantada. Entendi naquele banco de clube, enquanto outra má aparelhagem incitava uma mulher a despir-se, que a minha Lucy nunca seria só minha.

A minha Lucy sentada na estrada à porta do clube, com cinco ou seis resistentes que ainda esperavam quebrar essa fronteira do permitido. Música! Onde quer que esteja a Lucy, há música. Alguém ligou um rádio de um carro. Uma outra má aparelhagem ainda quebra a noite em mil estilhaços que ao cair cobrem a voz de Lucy. Lucy, de mãos viajantes entre as costas de um e o cabelo de outro. Lucy, sempre dando-se e retraindo-se ao mesmo tempo, sempre agitando-se, sempre amante da música.

Apoderei-me do banco do condutor do carro, e mudei a rádio. Alguém por entre as colunas traseiras, vibrando desde o porta-bagagens aberto, cantava

"Lucy in the sky with diamonds".

Lucy deitada no banco de trás do carro. Pela primeira vez. De cabeça encostada no banco, de pernas semi-flectidas apoiadas no vidro do outro lado, olhava pelo pouco que o vidro da frente a deixava descobrir do céu, e sorria. Mexia os lábios, mas eu não a escutava. Ainda não os sabia ler. E as colunas vibravam furiosamente, repetiam freneticamente

"Lucy in the sky with diamonds".

E ela apontou para o céu. Apontou para uma estrela, a única forte o suficiente para rasgar a poluição luminosa da cidade e a sujidade do vidro, e chegar até nós. Quem me dera tê-la ouvido só daquela vez, só falando sobre aquela estrela. Quem me dera que este momento fosse uma fotografia legendada. Apaixonei-me e entristeci-me ao mesmo tempo. E ela foi embora.

O casamento a que fomos, esse, já acabou há muito tempo. Mas a nossa estrela sobreviveu-lhe. A Lucy continua a ser a legenda para o diamante no meu céu. E nele guardo a vontade de um dia vir a ser a única estrela no céu dela.

E apesar de não lhe conhecer a voz, de nem lhe conhecer o nome, sei que ela será para sempre a minha Lucy.

"Lucy in the sky with diamonds".

segunda-feira, 1 de março de 2010

Desafio X - Resposta

"If I had a world of my own, everything would be nonsense. Nothing would be what it is, because everything would be what it isn't. And contrary wise, what is, it wouldn't be. And what it wouldn't be, it would. You see?"

Abriu a porta e fechou-a.
Aquele mundo nunca lhe fez sentido. Na maior parte dos dias, vagueava entre as outras pessoas de forma estranha. Como se precisasse de andar para se manter no mesmo sítio.
Sentou-se. Fechou os olhos e sentiu as viagens nas pálpebras. Sim, para sair dali, teria de permanecer quieta entre a multidão.
Aquele mundo nunca lhe fez sentido. Por isso nunca se tornou real.
E ela manteve-se num estado latente de quem espera acordar de um sonho. Tinha aquela fina persistência no olhar de quem não dá relevância a flores que não falam.
Ás vezes via borboletas no ar. Outras, pensava em torradas. Visualizava ambas com a mesma intensidade morna. Nada lhe era tão estranho, com a própria estranheza húmida que escorria dos habitantes daquele mundo.
Quem lhe dera acordar daquele sonho. O pior é que eles sonhavam com ela. E por vezes aquela realidade translúcida, onde ela não sabia quem era, era só isso, o sonho deles. Que ela penosamente vivia.
Por várias vezes sentiu-se tentada a acordá-los. Mas teve medo da reacção catastrófica: e se afinal ela não fosse mais nada para alem daquele sonho?
Até que um dia, a libertação deu-se: ao virar da esquina pareceu-lhe conhecer as costas que o seu ângulo via. O que viu na verdade foi um propósito suculento. Uma ambição curiosa de descobrir um enigma.
Correu atrás daquelas costas, primeiro devagar depois mais depressa. De repente deu consigo a cruzar a cidade axadrezada. As pessoas pareciam-lhe todas peças de xadrez, umas com mais inteligência do que outras para não serem peões
As costas familiares iam desaparecendo no meio daquele enevoado de sonho. Ela corria, corria, e surgiram no ar as palavras “Quem és tu?” Mas ela não sabia, e não queria olhar para o céu. Queria encontrar aquelas costas, mais do que queria entrar amanhã no autocarro, ir trabalhar, ganhar dinheiro, casar-se e ter filhos. Queria agarrar aquela pessoa como não queria nada e sentia a o coração a percorrer-lhe o corpo.
Fazia-lhe sentido.
E foi sem espanto que viu as costas que espreitava do seu ângulo, entrarem em sua casa. Abrir e fechar a porta. Ela seguiu-as. E quando chegou à sala, viu o espelho enorme e gigante que tinha comprado para ocupar toda a parede. Do lado de lá, ouviu a rapariga que perseguira dizer: “Olá Alice”. Então seguiu em frente, atravessou o espelho e nunca mais voltou.