segunda-feira, 15 de março de 2010

Desafio XII - Resposta

"A bondade consiste em estimar e amar os outros para além do que eles merecem."
Joseph Joubert


Ele brincava nervoso com a aliança que trazia no dedo anelar esquerdo. Não era raro mexer-lhe, embora nos últimos tempos o fizesse de mais em mais frequentemente. Tinha à sua frente, naquele velho restaurante escondido da cidade de Lisboa, um copo de um qualquer aperitivo esbranquiçado que ia sorvendo de quando em vez. Na mesa estavam postos dois couverts; era evidente que esperava alguém.

Enquanto o fazia, olhou em volta. O restaurante estava quase igual à última vez em que lá tinha estado, havia mais de vinte anos. “Vinte anos”, pensou carregadamente, suspirando. “Uma vida inteira”. A decoração tinha mudado bastante, assim como os empregados. Reconheceu, mal entrou no restaurante, o patriarca daquela casa, que se movia lentamente pela sala, garantindo que tudo estava bem com os seus clientes. Os seus provavelmente oitenta anos pesavam-lhe muito mais que da última vez, quando corria por todos os lados, fazendo voar pratos pelas mesas de forma que nenhum cliente ficasse atrasado da sua curta hora de almoço, no entanto apreciando sempre boa comida.

Foi lá, enfim, que pediu a sua namorada em casamento, depois de mais de dez anos de namoro. Ela tinha sido o seu primeiro amor; a sua namoradinha de infância; a sua miúda da adolescência; a sua companhia de universidade; a sua namorada, a sua mulher. E não podia deixar de admirar o seu pequeno toque de ironia ao convidá-la naquele dia, de entre todos, para almoçar ali.

Quando ela entrou no restaurante, vinha despenteada e um pouco perdida. Trazia na mão alguns papéis, e o casaco mal arranjado.

- “Desculpa o atraso, mas tive de fazer uns telefonemas importantes antes de sair.”

- “Não… não faz mal…” – Foi naquele momento que ele percebeu que ia custar mais que todos os planos que tinha feito à noite para si próprio. Era um facto que o casamento não corria bem, e que a culpa era muito dela, que sempre quis mais para si que para eles os dois. Foi ela que não quis ter filhos para não perturbar a sua ascensão galopante na empresa, para que ele não se visse obrigado a ter de os educar sozinho. E ele tinha estado sempre ao lado dela, tinha-a sempre motivado e apoiado, tinha-a levantado nos momentos difíceis e tinha festejado à sua sombra as vitórias dela. Ele tinha estado sempre lá. Sempre.

Mas hoje acabava. Tinha sido demais. As desconfianças de algumas histórias mal contadas, com o acumular de tantos anos de frustrações tinham atingido o limite. Não podia mais. Queria poder passar o resto da sua vida a pensar em si, em aproveitar a quão magnífica era a sua própria vida. Queria conhecer mais pessoas, queria usar e abusar do seu tempo, queria ir onde nunca tinha ido e ver o que nunca tinha visto. Acabava ali.

- “Tenho uma coisa para te dizer.” – começou, ganhando fôlego.

Ela olhou-o, notando uma reverência pouco habitual nele. E quando se tentou concentrar no que ele lhe queria dizer, vieram-lhe de repente todas as memórias dos últimos dias: a clínica, os exames, a biopsia, os resultados. Ele não podia saber. Ela não queria saber. Não era justo, não agora que ela tinha todo o seu tempo planeado para atingir o posto mais elevado da sua empresa. Agora que os apoios apareciam à esquerda e à direita. Não, não podia ser. E até àquele momento tinha vivido tudo de uma forma racional. De alguma forma aquele espaço, aquele homem à sua frente, e a reverência com que a olhava devolveram-lhe a fragilidade. Por um momento. Por um pequeno momento. O bastante.

Poucos segundos depois de começar a olhar para ele, começou a chorar. Grossas lágrimas caíam da sua face em direcção à mesa, e ela soluçava descontroladamente num restaurante onde toda a calma tinha desaparecido.

“Mas eu ainda não disse nada! Será que ela já sabia?”, pensou para si. Ele não tinha falado com ninguém de nada. Era impossível era saber. Perguntou o que se passava, e ela simplesmente passou-lhe os papéis que trazia na mão para as suas mãos. Um tumor maligno em fase avançada. Foi descoberto muito tarde. Tarde demais. Em resumo, não havia nada a fazer. O papel assinava gravemente a sua sentença de morte: 1 ano, não mais.

E num só momento tudo se desvaneceu. O mundo parou e rodou ao contrário por um pequeno instante. Desapareceram as frustrações, as semanas a pensar e a decidir dar finalmente o grande passo. As casas que procurou para alugar. Tudo. À sua frente estava, simples e frágil como há vinte anos, a sua mulher, o amor da sua vida, a única pessoa que tinha despertado nele tudo o que havia de melhor. A única pessoa que realmente amara, e que agora estava a morrer. Que agora via a vida a passar-lhe por entre os dedos como finos grãos de areia.

Tentou dizer-lhe nesse ano o quanto a amava como se de dez anos se tratassem. A sua saúde piorou rapidamente, e passado pouco tempo ele passou a viver para ela, e ela largou finalmente o seu trabalho. Os tratamentos mantinham-na um pouco melhor, mas a sua própria desmotivação não ajudava. Um ano depois daquele almoço, ela repousava na cama do hospital, num coma induzido para minimizar as dores, enquanto lentamente morria por dentro. Enquanto o tempo amargamente e cruelmente fazia o seu trabalho, como sempre fazia. E ele dormia ao seu lado, num sofá improvisado, onde os médicos simplesmente não conseguiram recusar a sua estada prolongada.

Dez anos depois daquele almoço, ele voltou ao restaurante. O patriarca tinha já morrido, assim como a sua mulher. Ele vivia agora num pequeno apartamento, e refizera a sua vida, a pouco e pouco. Não teve mais ninguém, e arrependia-se do dia em que chegou a pôr essa hipótese. Um dia pediria desculpa à sua mulher. Naquele dia, pediu o mesmo aperitivo que tinha pedido dez anos antes. Depois deixou-se ali ficar, em silêncio, olhando o mundo indiferente à sua dor. Queria apenas silêncio, queria apenas um sítio acolhedor onde as memórias boas pudessem aquecê-lo um pouco de novo. Olhando à volta, bebendo da vida das outras pessoas que iam entrando e saindo, foi-se deixando ficar. Estavam dois couverts na mesa. E ele brincava ainda nervoso com a aliança.

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