quinta-feira, 25 de março de 2010

Desafio XIV - Resposta

Numa sinfonia compassada, roía a tampa azul da caneta ao ritmo do pé agitando-se por baixo da mesa, impecavelmente em sintonia com o ponteiro dos segundos do relógio da parede. Na mente, começaram a ser enfiladas palavras sinónimos de tédio. Aborrecimento, enfado, fastio. Trabalho.

"Peço desculpa, mas eu não concordo que precisemos de mais paquetes."

A sala inteira revirou os olhos. Porque não poderia ele deixar aquele pormenor quieto, pensavam em silêncio. O relógio faria o seu trabalho, e estariam todos em casa a tempo do boxe político na televisão.

"Estou velho para estas discussões. Mas pronto, vamos a isso, rapaz."

Com a dolência de uma contrariedade, o seu opositor retirava o casaco e dobrava as mangas da camisa branca. A idade, o peso, o cabelo que faltava no topo da cabeça, o extenso bigode de fios brancos e cinzentos, não permitiam mais rapidez nos dedos. Sentou-se em frente a ele, na alongada mesa em U, configurada a prever o duelo. As palmas das mãos direitas encostaram-se. Ele, jovem e confiante, encostado na cadeira. O seu opositor, enrugado e renitente, completamente dobrado para a frente, de mão esquerda apoiando o cotovelo. Começou. O ponteiro dos segundos não caminhou mais do que uma dezena de passos sem que as costas da mão do seu opositor idoso batessem sonoramente contra a mesa.

"Está decidido. Não há contratação do paquete. Dou por encerrada a reunião."

De volta ao gabinete, começava a reunir os papéis vagabundos, sempre viajando de casa para o trabalho sem nunca servirem nenhum propósito, por forma a metê-los na mala, quando de fora eclodiu um amontoado de vozes estridente como se alguém estivesse em guerra de palavras.

"Malditos terroristas, com as suas manifestações, deviam ser todos presos e mandados para longe."

"Não concordo. Acho que os terroristas devem ter o direito de usar da violência verbal para lutarem por aquilo em que acreditam."

"Queres mesmo entrar por aí? Queres mesmo defender os terroristas que andam aí a gritar argumentos em sítios públicos, sem se importarem de quem ouve?"

"Para te calar, quero."

Eram ambos jovens e promissores na empresa. Este oponente não era como o sénior na reunião, nem isto era uma decisão de negócios, que se resolve com um braço-de-ferro. Isto era uma opinião pessoal. Manda o Código Civil que as opiniões pessoais sejam decididas com uma luta corpo-a-corpo; apenas podem ser usados os punhos e os cotovelos, sem armas, golpes baixos ou a utilização de qualquer parte do corpo abaixo do ventre, e sem possibilidade de ajuda de terceiros; a razão é dada por desistência. Retiraram as gravatas e os casacos com o mesmo vigor, olhando-se e debatendo-se com os botões sempre tão pouco colaborantes. Saídas as camisas, saíram para o corredor, onde alguns curiosos paravam aguardando saber quem tinha razão. Os torsos semelhantes uniram-se e os primeiros murros contornaram-lhe a cabeça e acertaram-lhe na nuca. Caiu redondo para a frente, sobre a cara, e os primeiros vestígios de sangue acertaram na alcatifa. Levantou-se, e de uma assentada pregou dois murros no estômago bem delineado do seu oponente, seguido de uma cotovelada no topo da cabeça encolhida, e de um golpe de mão aberta no pescoço.

"Desisto. Bolas, com esse punho, devias ter ido para político ou advogado, não para consultor."

Manda a lei que o vencedor retorne à sua posição anterior à discussão. Porém, teve que seguir directo para a casa de banho para estancar o sangue que ainda lhe saía do nariz. Reparou numa rapariga numa esquina do corredor da empresa, com aquele aspecto característico de corredor de hotel, de solo alcatifado e portas de madeira. De ar furtivo, óculos na cara, parou quando se deparou com ele. Ia começar a gritar quando, num gesto dilacerante, a agarrou e tapou-lhe a boca com a palma da mão ainda suada. Estranhamente, isso acalmou-a o suficiente para a conseguir, lentamente, soltar.

"Vejam só... isso, mete as mãos em cima de mim. Por todo o país, mulheres inocentes estão a ser atiradas para a prisão por violência psicológica. E entretanto, é perfeitamente aceitável bater-se por tudo e por nada. Gastam-se milhões com acções movidas por homens que se sentem ofendidos por comentários das namoradas ou das colegas de trabalho. Abaixo a violência física! Viva a argumentação verbal!"

"Rapariga, eu acabei de defender que tu deves poder falar, mas não cá dentro da empresa. Fala baixo se não queres ser apanhada pelo segurança. Aí sim, vais ver o que é violência física. Sabes o que fazem a terroristas?"

"Terrorista é quem mata! Que Mundo é este onde já se chama terrorista a quem só quer falar? Só falando e discutindo os assuntos racionalmente é que se pode chegar a alguma verdade! Em que é que dar murros ou brincar ao braço-de-ferro implica ter razão? É o maior brutamontes quem sabe mais?"

"E em que é que falar ajuda? Oh, por favor, as vossas conversas tiveram o seu tempo. E as pessoas eram tão fechadas nos seus preconceitos, que por muito bons que fossem os argumentos, e os factos apontados, e por muita sabedoria que se tivesse, ninguém o reconhecia. As pessoas não trocavam opiniões, expunham preconceitos. E o vencedor da discussão era sempre quem estava numa posição hierárquica superior, ou quem se cansasse mais tarde. Rapariga, ganhar uma discussão não é o mesmo que ter razão. E em sequências infinitas de argumentos e contra-argumentos, em sofismas, em palavras, não se atinge nada de verdadeiro sobre o Mundo. Mais vale ser honesto, aceitá-lo, e usar os punhos."

"Acreditas mesmo nisso? É que isso pareceu-me uma argumentação verbal e racional. O que acabaste de fazer é um crime."

"Sim, mas acabo de vir de uma luta. E só estou aqui a usar palavras contigo porque os terroristas como tu se destroem a si mesmos. Se as palavras são assim tão importantes, vocês deviam ser capazes de explicar porque é que devemos usá-las. Já as usámos, e isso não nos levou a lado nenhum. Dá uma hipótese à expressão física."

Estendendo um dedo, mostrou-lhe a saída, como que dizendo sem palavras, só com um gesto, por onde fugir sem ser detectada pela segurança. Antes de seguir, com o mesmo ar furtivo com o qual tinha entrado, voltou-se para trás e murmurou-lhe.

"Diz o que quiseres. Mas não é com conflitos e aos murros que vais provar a ninguém que tens razão. Pensa nisso. Fight the fight."

"Ter razão? Eu sei quando tenho razão. Eu não preciso de lutar, nem de argumentar, para ter razão."

"Mas então porque é que passas a vida a lutar?"

"Because it's so... much... fucking... fun! Porque pior do que não ter razão é estar entediado. Seja com os teus argumentos ou com a minha força, mas não há nada mais divertido do que a luta."

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