domingo, 7 de março de 2010

Desafio XI - Resposta

A primeira vez em que a saudade o dominou o suficiente para deixar marca foi com a fotografia da sua avó portuguesa na mão. Roupa preta pesada de luto, o cabelo apanhado, brincos em argola e fios de ouro, um olhar grave e um padrão de núvens do estúdio do fotógrafo. Tudo na fotografia a preto e branco da época era assim: um conjunto de pormenores desgarrados, e uma sensação global de austeridade.

"So you say you want to study Portugal?"

"Not Portugal. Just one word. This 'saudade' word. I got it from my parents. They say it's unique. The media claims it cannot be translated. It's actually a feeling, a very Portuguese feeling. My late grandmother was Portuguese, and I think I can get that 'saudade' just from looking at an old picture of her. I believe there's something there."

"Humm. I don't really see the point… Even if there is no other single word to translate it, how can there be a feeling that can only be felt for Portuguese-related issues?”

“That’s just not it. You don’t understand.”

“Look, I can see that you’re very interested in this. So I’ll tell you what. You go to Portugal, see what you can find. If we come to the conclusion that the so-called ‘saudade’ feeling is rubbish, then you come back and we'll find you another PhD. thesis on national language specificities, or something like that."

A segunda vez em que a saudade o dominou foi ao ser confrontado pelo orientador com a necessidade de regressar a Portugal. Recordava-se do Verão em que, ainda menino, voou de New Jersey até Lisboa com os pais. Recordava-se dos jardins de Belém, dos símbolos dos Descobrimentos, de uma feira onde andara na montanha russa e no comboio fantasma. Recordava-se de um sítio lindo onde nem tudo eram prédios e avenidas, onde o Sol brilhava e as pessoas eram afáveis e interessadas. Recordava-se de uma felicidade sem nome. Talvez os portugueses tivessem nome para ela também.

Portanto meteu-se no primeiro avião que conseguiu reservar e rumou a Lisboa, para casa de amigos dos pais. Foi por eles que iniciou a sua diligência. Repetiu-lhes as suas dúvidas. Repetiu-lhes o discurso do seu orientador. A resposta era sempre a mesma, castradora e anti-esclarecedora.

“You just don’t understand. That’s not it.”

Os amigos dos pais recomendaram-lhe que falasse com linguistas. Perguntou-lhes tudo o que lhe passou pela cabeça.

“So, this ‘saudade’ that I keep hearing about... Is it like missing something or someone? Like, really wanting something that is no longer there? Is it the application of the ‘je ne sais quoi’ of the French to the past? Is it just a positive impression of something we lost?”

A todas as formulações que lhe ocorriam, a todas as definições que conjurava, não tinha senão respostas vagas. Qualquer ideia, por mais que lhe parecesse correcta, não lhes agradava. A resposta era sempre a mesma, castradora e anti-esclarecedora.

“That’s just not it. You don’t understand.”

E os linguistas recomendaram-lhe que falasse com historiadores. E os historiadores levaram-no a Belém. Explicaram-lhe a História portuguesa nos monumentos, nos símbolos dos Descobrimentos. Ensinaram-lhe que a Torre, o Padrão, o Mosteiro, todos, na sua imponência, são uma bandeira que recordará para sempre que Portugal que foi forte, aventureiro, e motivo de orgulho. Mas aquele Belém já não lhe parecia ser o Belém da sua infância. Na infância, eram só coisas bonitas. Assim descritos, aqueles edifícios pareciam chamá-lo e dizer-lhe “deixa-nos contar-te um segredo: Portugal descobriu um Mundo novo só para depois se ajoelhar a rezar”. E ainda está na mesma posição. Enquanto outros construíram caminhos de ferro, revolucionaram as Artes, inventaram o cinema, em Portugal construíram-se igrejas. Não admira que este povo tenha saudades do passado. Só que o próprio passado de que sente falta já não é real. A realidade já o ultrapassou. A tudo isto obteve a mesma resposta, castradora e anti-esclarecedora.

“You just don’t understand. That’s not it.”

E os historiadores recomendaram-lhe que falasse com moradores da zona antiga de Lisboa. E os moradores levaram-no a contemplar os prédios, de traçado único no Mundo, as ruas sinuosas, inclinadas e curvas, derrapantes e sombrias. Mas tudo o que viu foi sujidade e parcas condições de vida. Presenciou a ruralidade urbana, viu pessoas a cuspir no chão, viu casas a cair. Viu prédios fechados a cadeado, viu porta sim, porta não emparedada. Viu janelas e vidros quebrados, animais sujos e doentes que se arrastam nas janelas. Viu flores mortas nas varandas minúsculas. Viu idosos desprezados em pijama nas janelas. E apeteceu-lhe fugir dali sem mais respostas.

“That’s just not it. You don’t understand.”

E os moradores recomendaram-lhe que falasse com fadistas. E os fadistas levaram-no a ouvir fado, a música nacional, a melhor expressão da alma portuguesa. Mas o fado era uma canção monotónica e repetitiva, quase irritante no seu marasmo emocional evocativo de um passado que nunca foi tão bom que mereça tamanha monotonia perante o presente. O monocronismo dos cantores, o tradicionalismo das guitarras constantes, competentes mas sem imaginação, deram-lhe sono. No pequeno restaurante encardido de Alfama, levantou as suas questões, e foi insultado e expulso.

“You just don’t understand. That’s not it. We give up. You are just one dumb American who will never understand the true value of History and culture. Go back to your plastic culture. We are better than you.”

Mas entendia. Ainda viajou de carro. Foi ao Porto, foi a Évora, foi ao Algarve; foi à montanha, ao campo e à praia. Tomou café a olhar para o mar e adormeceu na areia. Leu Eça em aldeias de pedras estranhas e gastas, onde as luzes se apagam ao entardecer e os cães pulguentos e sarnentos espantam o futuro para bem longe. Passou um mês em Portugal. Descobriu um país lindo para visitar. Mas pavoroso para morar.

Em um mês entendeu perfeitamente o significado daquela palavra empolada na sua importância e distorcida no seu sentido. ‘Saudade’ significa ficar amorfamente a inventar uma delirante história feliz para aquele que foi um passado triste. 'Saudade' significa camuflar as vistas curtas e a falta de horizontes com mitos sobre um passado que toda a gente sabe que nunca foi presente. É por isso que até os poetas e escritores desta pátria não têm pejo em afirmar que o passado que cantam é uma ilusão. Aquilo que lhes interessa é a ideia do passado, e não o passado em si. De nenhuma outra forma, que não a auto-ilusão, poderiam sentir-se justificados. Os pobres desgraçados, os Eças e os Saramagos, que tentam acordar Portugal do marasmo da 'saudade', puxar o país pelo braço do altar beato onde reza há séculos, são exilados pela pior lei de todas – o decreto do discrédito.

E ele, pessoalmente, desistiu naquele momento de fazer uma tese sobre Portugal. Ele não sabia o que queria para a sua vida – mas essa inutilidade estilística não queria, de certeza. Em Portugal há muita História, mas não há nenhuma história.

E, por isso, a terceira vez em que a saudade o dominou foi perante a falta que New York lhe fazia, com os seus prédios e avenidas, a sua escolha, a sua diferença. Portanto meteu-se no primeiro avião que conseguiu reservar e rumou a Nova Iorque; guardou as malas num cacifo e caminhou pelas ruas, sem vontade de regressar à casa dos pais em New Jersey. E por uma vez a saudade que sentiu correspondeu ao que via. E por uma vez algo que via, e não uma memória de infância, geraram uma felicidade sem nome dentro de si. Por nenhum momento se iludiu – soube reconhecer os problemas e a podridão daquela cidade. Mas pelo menos as luzes e os carros, os ladões, os violadores e os assassinos, eram todos símbolos de uma História viva que se move connosco, que presenciamos e que ainda importa, e que só lá se encontra, naquele grande monstro que se ergue na vertical. Sentiu-se afortunado por ter entendido a tempo que as fabulações sobre o passado não trazem mais do que angústias e perspectivas distorcidas do real. E bloqueiam um futuro melhor. E condensou este princípio numa frase só.

"’Saudade’ is bullshit.”

Quando uma vontade imensa de comida chinesa o invadiu, já nem sequer lhe chamou saudade. E satisfez essa vontade, sentado na mesa de toalha xadrez vermelho e verde. Pediu a conta, e recebeu o seu fortune cookie. Sorriu, pensou parvamente que talvez naquele biscoito pudesse achar o novo tema para a sua tese. Algo vivo, actual, com relevância para o Mundo. E mesmo que o que ele procura não fosse tão simples que se possa achar na frase do papel no interior, ela foi pelo menos o corolário de uma viagem que lhe valeu uma lição de vida.

"Treasure the past that never was, and all you get is the future that will never be."

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