sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Desafio XLVIII - Resposta

There's little in taking or giving,
There's little in water or wine;
This living, this living, this living
Was never a project of mine.
Oh, hard is the struggle, and sparse is
The gain of the one at the top,
For art is a form of catharsis,
And love is a permanent flop,
And work is the province of cattle,
And rest's for a clam in a shell,

So I'm thinking of throwing the battle
Would you kindly direct me to hell?


Estavam os dois sentados no café. Passados tantos anos, reencontraram-se. Tinham sido irmaos em tempos. Longiquos, longiquos tempos em que a vida era simples e as responsabilidades caiam sobre o tipo de ego que se não quer ter. Longos e ténues tempos em que eles eram irmaos, em que eram iguais.
O homem loiro acendeu o cigarro e , discretamente, olhou para o seu amigo de infancia, para o seu irmao de sangue. Ainda hoje sentia a culpa inocente de ter sido bem sucessido, de ter um ego bélico, de ter conseguido quebrar todas as convenções ridiculas que o estrangulavam. Que estrangularam os dois. Ainda hoje sente culpa por o não ter conseguido libertar , o seu irmao de sangue. O seu único irmao neste mundo tao cru.
O outro, calmo, tranquilo e alegre tentou introduzir um topico de conversa mas eles já não eram nada um ao outro. E o homem moreno sabia-o. Mas gostava tanto do seu irmao naquele dia chuvoso como gostava quando eram crianças. Tinha um orgulho no irmao, por ter sobrevivido, por ter conseguido reunir um grito mudo e ter-se libertado. Lá no fundo sabia que nasceu a ser um caso perdido e que a fé que o irmao tinha nele era inutil. Ele nasceu condenado e ia morrer condenado. Acendeu tambem o seu cigarro e fumou-o como se fosse o ultimo e esticou uma folha de papel ao irmao. Ficou espantado e sempre fora perspicaz , penteou o cabelo loiro como demonstraçao de nervosismo. E medo. Ninguem connhecia o seu irmao melhor que ele. Leu o papel e disse-lhe “Não. Não o farei”. O outro perdeu o sorriso. Ele tinha de aceitar era a sua única hipotese de conquistar alguma paz. Tentou convence-lo:
“Esta vida, esta forma de vida, ah nunca foi uma ideia minha. Nunca quis ser isto mas é preciso cobardia para rejeitar o que sempre fui.Sempre fui isto, um pouco isto. Há um pouco disto em todo o lado, na àgua, no fogo. Há uma parte moribunda em cada canto do mundo. Ate em ti. Mas sempre foste melhor que isso, quem me dera ser como tu!
O outro continuou a dizer um Não definitivo e assustado. O não ia fazer. E disse-lhe que eles sempre foram iguais, ele simplesmente tinha tido sorte porque Deus já morreu há muito. E outro, na sua alegria triste existencialista, deu-lhe um sorriso triste e continuou:
“Entende, o amor é simplesmente um continuo suceder de fracassos se não achares que existe algum proposito no mundo e eu sinto-me condenado a ser isto. Sinto-me vendado e encurralado por mim. Por todos os que me querem bem. So me magoaram mais com um amor que me tinham . Sempre foram incapazes de me compreender, sempre me desejaram o melhor que , ao não se adequar a mim, me foi assassinando aos poucos.”
“Eu sempre te compreendi . E não faço isto. Nem pensar.”Nos seus olhos tao duros, tao resistentes e tao estrategos , o azul ganhava uma lágrima de espelho. Não ia fazer aquilo que o seu irmao lhe pedia.
“Por favor, so te peço que garantas que vá para o Inferno. Sempre me condenaram ao paraiso e a uma vida longa cheia de um sucesso vazio que nunca se adequou a mim. E perdi o contacto contigo, meu irmao. E vi-te a seres tu e a brilhares enquanto eras orgulhosamente tu. Vi o reflexo de quem desejava ser mas nunca poderia. Concede-me uma boa morte, concede-me um fim digno e honravel: está lá, no penhasco que dá para o mar. Porque vou morrer de qualquer forma porque já estou morto há muito. Esta la por mim. Por favor.”
O homem loiro olhou o irmao nos olhos. A tristeza era tao violenta que perdeu a única lagrima que tinha. O outro voltou a insistir: por favor, é a maior prenda que me podes dar. Garantir que por uma vez vou para o sitio que quero ir. Ambos sabemos que o Paraiso e bastante aborrecido.

Saiu do penhasco com o seu sobretudo negro a esvoaçar, tenebrosamente, em unissono com o seu longo cabelo loiro. Não conseguiu olhar para baixo e ver o seu irmao desfeito. Mas o que o mais incomodava era a quebra da metáfora horrivel que definia o seu irmao de sangue. Finalmente o corpo estava tao desfeito quanto o ser dele, finalmente tinha um sitio para ir chorar a catastrofe que a sua vida tinha sido, que a sua curta vida tinha sido. Finalmente, podia ir chora-lo aquele penhasco. Pelo seu irmao de sangue e por si. Afinal, tambem morreu qualquer coisa dele naquele dia.
Nunca mais foi o mesmo homem. Perdera o seu irmao de sangue, o seu irmao num mundo cru e torturoso. E era injusto, ambos eram inocentes, por isso é que queriam ir, gentilmente, directos para o Inferno.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Desafio XLVII- Resposta

"Nada do que se sonha é tao estranho como aquilo que se vê"

Quando se sentou naquele café com ele soube que nada seria igual ao que tinha sido. Conhecia-o vagamente de vista, eram vizinhos, viam-se frequentemente mas tornaram-se amigos (primeiro) numa festa qualquer. Aconteceu tudo de uma forma tao estranha e genuina que não lembrava nenhum livro cheio de um romance dramatico. Por isso é que o sorriso dele a encantava. Não tinha visto nenhum sorriso como o dele, como aquele meio sorriso fundo cheio de desafio, amor e timidez. E profundidade. Uma profundidade que o cabelo desalinhado dele não preve a não ser que se repare nos peculiares pormenores dele que demonstram uma genialidade lucida que a loucura encobre.
Ela tremeu levemente quando olhou para os olhos azuis dele e ele sorriu, deu-lhe aquele meio-sorriso que so ele tinha. As conversas que tinham eram leves e, inesperadamente profundas. A voz dele era sempre de seda quando falava com ela e as maos enormes ganhavam uma suavidade que a fazia querer acariciar a pele branca. Mas nada do que fazia era convencional, não , muito pelo contrário. Tudo o que conquistou dela conquistou por não ser convencional, por ter sido sempre honesto, por ter sido sempre ele. E, ela sempre pensou, que so se apaixonaria por um monstro, um monstro reflexo dela. Alguem cruamente perspicaz, alguem cheio de uma beleza dificil de se aceitar por ser muito maior que este Universo. Ela sempre amou monstros e ele era um monstro com uma textura diferente. Era simplesmente louco, ele. A imaginaçao voava com frequencia, a realidade facilmente perdia lugar a uma ideia para a proxima banda-desenhada que criaria. E era muito grande, muito bruto, muito pouco romantico. Menos quando falava com ela, quando era com ela ele ganhava uma qualquer sensibilidade que o tornava encantador sem o tornar minimamente comum. Ninguem era igual a ele, nada era comparavel ao longo, vermelho e eternamente despenteado cabelo dele. Nada se comparava a agressividade que ele demonstrava quando um principe , cheio daquelas caracteristicas baratas que encantam as meninas nas historias de encantar, se aproximava dela. E era entao que ela se apercebia que havia um pouco de monstro nele. como havia nela.
Nunca pensou ama-lo. Ela gostava de monstros, talvez por se identificar com eles, talvez por conseguir salva-los da melancolia existencial ao quebrar uma solidao que se instala quando se cresce a parte da sociedade. Mas nunca sonhou que amaria um louco, um louco como ele era. Nem no seu sonho mais excentrico alguma vez pensou que um louco, um sonhador acordado como ele era, podia ter tantas ideias lucidas em comum com ela. Nunca sonhou que o rapaz que morava no predio em frente que ouvia as suas musicas preferidas e passava a vida a imaginar situaçoes de banda desenhada podia ser a pessoa, no mundo inteiro, que mais semelhanças tinha com ela. E amava-o. Não, nunca imaginou isso ela.
Ele acariciou-lhe a mao. A dela era tao mais pequena que a dele, perdia-se inteiramente na enorme branquidao da mao dele. Afinal, ela era o monstro, sempre fora o monstro.
Sempre comentara que o vizinho doido que morava em frente a ela era dono de uma beleza diferente das outras. Mas nunca imaginou ficar presa a algo tao diferente, tao excentrico, tao anti-social. Mas viu isso acontecer e o meio sorriso dele afastou-lhe todos os pensamentos. Nunca ela pensou nisto, nesta realidade em que é ela o monstro. Sonhou tantas vezes, tantas cenas excentricas, tantos cenarios diferentes mas nenhum onde ela fosse o monstro e a bela fosse louca. Loucamente lucida . Mas nada do que se sonha é tao estranho como aquilo que se ve, as vezes.

Desafio XLIX - Resposta

"C'est par la musique qu' a commencé l'indiscipline"


A verdade é que ela sempre fora louca. Mas não com uma loucura daquelas que são geniais e, na intimidade, quase insuportaveis. Nem daquelas loucuras sociais que abraçam novas amizades facilmente. Não, ela sempre teve uma loucura diferente. Pacata, tranquila. Defini-a, a loucura dela. Como se em algum momento alcançasse um extremo e o mundo tornava-se invertido. Era uma loucura lucida e logica que quando era activada a transpunha para outro mundo.
Era um dia de Outono profundo, um dia perfeito para se ver o Mar no seu horizonte azul e frio. Combinaram encontrarem-se na praia sombria longiqua da cidade, ela e os amigos. Fora uma tarde agradavel e ela tinha tido uma conduta perfeitamente anormal. Nunca respondia claramente às perguntas que lhe faziam mas não deixava de responder. Tinha sempre uma ideia que era levemente descontextualizada, mas não estranha o suficiente para causar o sentimento de choque. Adoravam-na os amigos, era um genio discreto e tranquilo, carinhoso e cheio de uma compaixao que não viam em mais ninguem. Ela é que os não adorava a eles, tinham sempre a sensação que não lhe chegavam, que ela precisava de algo mais. Gostava dela desde a primeira vez que a vira com a sua beleza excentrica e funda, com o seu rosto vindo do futuro, Luis sempre gostara dela e ela parecia nem nunca ter reparado nisso. So se importava com música ela, so lhe interessava a musica. As bochechas ficam vermelhas da excitaçao, os gestos tornavam-se rapidos e confusos, os olhos ganhavam um brilho exímio que a presença dele nunca lhe causava. E ele não podia competir com a música embora gostasse muito de vencer essa batalha. E, se ele vencesse, ela nunca mais ficaria assim a ouvir musica, afinal metade dela era igual a ele.
Mas o amor revela-se como essencia da arte nos momentos mais estranhos e desconexos. A camioneta que os levaria de volta para a cidade nunca apareceu e entraram em panico, o grupo de jovens. A praia sombria, no final do mundo, a duas horas a pé da cidade. Entraram todos em pânico menos Luis que esperou que o seu amor entrasse em panico para, convencionalmente, a confortar. Mas , como sempre, a música chegou primeiro. Quando todos se entregaram ao desespero, ela pegou no mp3 e começou a ouvir musica. Estavam todos a discutir o que iriam fazer e ela olhava para o mar e repetia que o mar era lindo e que adorava jazz. Perguntavas-lhe, repetidamente, se já alguma vez tinham ouvido jazz. Ninguem queria saber, tudo o que eles queriam era chegar a casa, a salvo, aquecerem-se do frio gélido que se tinha instalado nos ossos, entre os fios de medo que nascia no espirito de quem considera que está bastante perdido.
E foi ela que resolveu o problema. Disse-lhes para irem a pé. Disseram-lhe que era perigoso e ela respondeu que jazz era fabuloso, sentia a alma a encher-lhe o coraçao com uma coisa qualquer. Esperança, talvez? Optimismo. Amor estava intimamente a uma visao aberta que se focava nos pormenores que nunca antes tinham sido vistos. Amor era optimismo. Iam a pé e era escusado chorar nada mais havia a fazer. Foi a resposta dela e depois foi o silencio dela. Continuou a ouvir musica, a cantar a melodia que estava a ouvir e a perguntares-lhe de tempos em tempos, se já tinham ouvido jazz. Mandaram-na calar muitas vezes e ela parecia não se importar minimamente. Parecia não querer saber deles para nada. Luis chamou-lhe doida, a rejeiçao em pessoas que se dedicam a estabilidade, resulta sempre em insultos detestaveis e crueis. Mas ela so se importava com a musica e respondeu-lhe: so agora é que descobriste? Já ouviste jazz? Ah, este ritmo é fantastico. É duro mas é melodico, como esta situaçao. Ele afastou-se dela e ela sorriu-lhe. Afinal sempre soube, sempre soube tudo, simplesmente nunca gostou dele. O coraçao tinha uma melodia que ele não podia compreender. O amor não se podia ajeitar.
Chegaram a casa todos em perfeito estado. Todos surpreendidos com ela, a rapariga cheia de uma beleza excentrica e diferente que , durante duas horas terriveis e sombrias, so falou de jazz. Mas eles já deviam saber, a musica é o começo da indisciplina. E ela sempre fora louca, sincopadamente louca. Por isso é que gostavam tanto dela.
E, desde aquela tarde, em que ela descobriu o quanto amava a musica que se tornou verdadeiramente indisciplinada. Passou a fazer unicamente aquilo que a fazia ser ela propria. É a maior indisciplina de todas, quebrar a convençao da miseria de uma estabilidade vazia.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Desafio XLVII - Resposta

"An artist has no home in Europe except in Paris."
Friedrich Nietzsche


Se uma partícula encontrar a sua anti-partícula, é certo que ambas se destroem.

E esta história, era uma história igual a tantas outras, exceptuando que durante o tempo em que foi contada parecia diferente.
Ela era muito nova quando começou a fugir de casa e a encontrar o amor em camas vazias ou caixotes do lixo. Perdeu a virgindade antes de ter perdido a cabeça, pensava ela que era assim que se debatia dos males do mundo e deixava a loucura consumir-lhe o cérebro.
Soube argutamente, escolher os homens da sua vida, era neles que confeccionava a sua estranheza detalhada e era neles que encontrava a sua inspiração. Dizia ela que escrever assim, era melhor, primeiro sentia o horror da vida e depois, quando se fartava de vaguear voltava para a secretária e escrevia sobre a sua vida. Por isso, tentava albergar dentro do seu tenro corpo todos os amores e ódios e mudava de tema e de coração como quem muda de roupa para ver qual lhe assenta melhor.
E na verdade, foi assim que foi tendo sucesso, na sombra das pessoas que escutavam a sua história e a achavam diferente e ousada, sem consultarem no livro o tamanho da aldrabice dela ou o tamanho da sua própria mediocridade.
Um dia, convenceu o seu amante a levá-la a Paris, pois sabia desde criança que era lá que os artistas se fixavam e ela queria agora escrever na capital francesa, pisar todos os pontos obrigatórios para se ser artista – e julgava ela que aquela vida pensada ao pormenor de originalidade era tudo o que o era preciso.


Como eu fui parar a Paris, foi um acaso da sorte. Em nova, perdi lá um amor e nunca pensei lá voltar. Paris ecoava-me a solidão nas ruas, como se eu estivesse permanentemente a percorrer aqueles corredores de escola vazios em fim de tarde em que todas as crianças já tinham ido para casa menos eu, caída no esquecimento.
Por isso, ao contrário dos artistas, concentrei-me em curar as minhas feridas com álcool que me anestesiasse e que afastasse aquela dor física que eu sentia. E por isso, ao contrário dos artistas afastei-me de Paris.
Em ambientes hostis de aborrecimento, estendi as garras da minha existência, exigindo um direito às lágrimas e à minha tristeza tão ácida que me corroía mais o fígado do que o álcool.
E bebia e fumava sozinha, na escuridão dum quarto. Permanecia por descobrir, atrás de uma cortina negra que me separava da rua - enquanto esperava que aquela dor passasse.
E como nunca engoli os comprimidos de resignação que me deixavam todas as noites em cima da mesa-de-cabeceira com o copo de água para a minha ressaca permanente, fui-me rebelando contra os relógios de parede, contra as portas abertas e os exames obrigatórios. Cheguei a um ponto em que já nem suportava os horários dos autocarros e nesse dia, dei por oficial a minha doença.
Como para me curar dum mal que ninguém sabia qual era, sugeriram-me que viajasse, que apanhasse outros ares. E lá me levantei dum sofá como se o tempo, ele próprio me, tivesse criado artrite nos pensamentos.
Arranjaram-me um emprego em Paris, por ironia. E de malas pouco cheias, voltei àquela cidade de solidão, onde o meu amor ainda andava perdido. E a primeira coisa que fiz, foi percorrer os túneis do metro, à procura dele. Encontrei pedaços dele nas frestas das paredes e nos lugares vazios. Mas voltei para casa, nesse dia, sem o ter encontrado. Nos dias seguintes, fugir à ausência dele tornou-se no meu vício, a única heroína que acalmava o meu espírito.
Até um dia. Era Inverno e chovia muito e eu estava cansada daquela viagem e de todas as outras que nunca fizera. Percorria o metro uma vez mais, e na multidão desenfreada não havia qualquer sinal dele, como sempre. As cabeças mexiam-se como numa dança ondulante e eu imaginei os campos de searas frescos a ondularem ao sabor daquele vento. Quem me dera o céu azul, o vento na minha cara, o chão fresco da terra. Mas só havia a chuva violenta de Paris, os semáforos a gritar com os carros, e a multidão apressada em esconder-me o meu amor. Então, devagar deixei-me escorregar pela parede, enquanto de olhos fechados comecei a cantar. Era uma canção antiga, que me veio à cabeça, falava da multidão e dum amor de braços abertos que se perde. E eu não encontrava o meu. Fui cantando enquanto o frio me consumia: minha voz aquecia-me. Quando abri os olhos, as minhas mãos estavam como congeladas e à minha frente, havia um generoso balde de moedas. Alguém passou e disse de forma comovida, que eu cantava aquela música como a Edith.
E lá do fundo, uma rapariga que me fitava enregelou-se com este comentário. Parecia-se estranhamente comigo, tinha o mesmo cabelo apesar de parecer ser muito mais nova e na sua mão estava pousado um livro e uma agenda como se estivesse estado a escrever.
Olhei para ela de baixo para cima e vi quem eu poderia ter sido. Vi de forma clara a razão pela qual eu nunca encontraria o meu amor perdido. E fechei novamente os olhos.

Mas a rapariga não prosseguiu mais, porque chegou a casa e deixou de escrever.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Desafio XLVIII - Resposta



É belo, seja qual for o ângulo por que se olhe. O olhar mais distraído é imediatamente captado pela profusão de cores nos pés dele. Cores que se articulam sem se misturar, que são florais sendo sóbrias. Cores que parecem solidificar uma base de apoio flutuante, um caminhar nas núvens seguro, um voo em terra. E depressa o olhar é conduzido pelo caminho ascendente de um manto hirto, no topo do qual nasce um pescoço e um rosto. O rosto adivinha-se masculino, mas está voltado, misterioso. Como se o homem que ama necessitasse de largar o Mundo e focar-se na mulher de tez pálida e olhos fechados que se entrega a um abraço e a um beijo ténue. O cabelo dele é crespo, e adivinham-se algumas folhas pontuando os caracóis. Destoa, individualizado, do cabelo escorrido e claro dela, onde as flores formam uma coroa. Pelo cuidado dele, ela é uma rainha. Uma rainha abandonada, ajoelhada, num acto quase sagrado de amor. Enquanto todo ele são rectângulos, nela tudo é circular e floral. E, ao seu redor, há uma atmosfera dourada, solene. Uma atmosfera que os separa do Mundo. Os dourados resplandescentes dão-lhe perspectiva, vagueiam na luz incidente e tornam-no diferente consoante o ângulo por que olha. Mas sempre belo.

“Gostas desse?”, perguntou-me ela ao entrar na sala. “Naturalmente”, porque afinal foi pelo Klimt que vim a Viena. “Eu não”, foi a confissão orgulhosa que ela me fez. Inaceitável para mim. E por isso fiz-lhe o roteiro do quadro, de baixo para cima. Expliquei-lhe as figuras, as ambiências, e até a técnica. Ela mantinha um olhar estupidamente fixo enquanto eu falava. Não parecia seguir com os olhos as minhas indicações, não parecia muito interessada nas ténues variações de cor e material. Ela já se tinha decidido.

“Pois, tudo isso pode ser verdade. Mas isto é muito pretencioso. Isto está pintado com ouro verdadeiro? Já viste bem o tamanho disto? Quanto ouro é que ele para aqui meteu? Não suporto estas coisas tão burguesas. E como se não bastasse, está aqui enfiado numa caixa de vidro, como se fosse superior aos outros quadros. E afinal, são só duas pessoas a beijar-se.” Ela terminou o seu discurso, e afastou-se calmamente, convencida de ter rematado a conversa e ficado com a última palavra. Porque afinal, palavras e argumentos seriam curtos para lhe responder. E então caminhou lentamente à volta da sala, fixando outras obras expostas.

Desviei o olhar do quadro e mantive-o fechado nela. Até então, a nossa viagem tinha sido perfeita. Até então, a nossa vida tinha sido boa. Mas tudo em nós gritava diferença. Eu, encerrado num monocromatismo de camisa, calças de bombazine e sapatos, parecia dez anos mais velho. Ela, expelia luz pelo arraial colorido da sua camisola de alças vermelha, calças largas com riscas verticais castanhas e laranja e sandálias. Juntos, eramos imiscíveis. Dir-se-ia que eu era feito de quadrados e ela de círculos.

Mas foi também naquele museu de Viena que a compreendi o velho Klimt. Aprendi que o belo chavão de extremos que se complementam não passa de uma frase feita. Não há complementariedade nenhuma. A beleza é feita da tensão e do choque. Os quadrados e os círculos juntam-se, tocam-se, mas nunca se misturam.

E aquela mulher, que agora se preparava para voltar as costas ao Klimt e deixar a sala, é bela, seja qual for o ângulo por que se olhe. Naquele instante, desejei-a muito. E a luxúria é o ouro do amor. Eu e ela, nós somos belos, seja qual for o ângulo por que se olhe.

Por isso, movi-me rapidamente na sua direcção, antes que o seu pé esquerdo tocasse o chão semelhante da sala seguinte. Os olhares voltaram-se para mim, como se eu fosse a nova atracção, a obra viva. Aproximei-me dela lateralmente, e, num gesto seco, coloquei-lhe o braço esquerdo por cima dos ombros. Apoiei ambas as mãos no seu rosto e voltei-me para, com a subtileza prolongada que apenas a intimidade traz, lhe beijar o rosto, junto ao canto do lábio que ela voltara para mim. Naquele beijo, eu coloquei toda a electricidade que a presença dela me provoca e que a ausência dela me faz doer. E prolonguei aquele contacto suave dos meus lábios com a pele dela. E por entre a luz amarelada de dois ou três flashes das máquinas fotográficas de turistas japoneses, ela abandonou a sua mão esquerda no meu peito, e envolveu o meu pescoço com o seu braço direito magro.

E a última coisa que vi antes de cerrar os olhos e sentir a tontura do momento cair sobre mim, foi também os olhos dela a fecharem-se, e o canto da boca dela a ser trazido mais para junto da minha por um sorriso. E eu juro que, naquele momento, os joelhos dela enfraqueceram e dobraram-se um pouco. O nosso amor, assim posto, valia todo o ouro do Mundo. Era belo, seja qual for o ângulo por que se olhe.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Desafio XLIV -Resposta

http://www.youtube.com/watch?v=Ek4D7Rrq144

Ela disse-te, o amor por si só vale menos do que se convencionou que valeria. E não importa que a tivesses amado (ou que a ames ainda) se nunca compreendeste a genialidade da essencia do ser dela. Que importa que lhe tenhas oferecido a conquista do mundo como presente se tudo o que ela desejava era a excentricidade de uma liberdade aberta nos pequenos pormenores do quotidiano? Tudo o que ela desejava era ser livre, ser livre aqui onde ninguem é. Tudo o que ela desejava era ser ela, exponencialmente ela. Tudo o que lhe ofereceste consistiu naquilo que gostavas que ela desejasse mas o amor não se sustenta com isso.
Aínda hoje lamentas a ida sem volta dela, para longe de ti, para longe dessa realidade onde viviam os dois. E ainda hoje lamentas a felicidade dela , o alivio dela. Porque, de facto, a amaste e ela amou-te mas o amor não aguenta isso. Que importa que a amasses mais do que alguma vez amaste a realidade onde estavas preso, que importa que a amasses mais do que amaste a tua vida seria e adulta? Nada. Porque ela era discretamente genial, a forma como se ria e do que se ria era genial, era peculiar.Nunca percebeste porque é que se ria das desgraças, nunca viste que não se ria de uma qualquer desgraça. Oh não, nada disso. Ela ria daqueles momentos em que alguem anulava o pessimismo , que o tornava em pouco. Isso garantia-lhe toda a força bélica e resistente que tinha no peito e pela qual sempre a admiraste. Era porque se ria das desgraças, ela. Tornava-as pouco, explorava-as e dissecavas ate se tornarem um pormenor quotidiano como outro qualquer. Por isso é que era tao resistente, tao forte. A vida era uma aventura e se tudo for bom é um caminho vazio. A arte reside no que fazes com as adversidades que te aparecem. E ela ria-se, criticava , ironizava e ria-se. Por isso é que conseguiu deixar-te deixa-la quando a tornaste infeliz por a não deixares rir-se.
Mas tu nunca entendeste e ela sempre te disse que o amor, por maior que seja, não aguenta girar no sentido contrario do mundo. Sempre te disse que a tua vida não tinha desgraças, era perfeita, e por isso mesmo, vazia. Sempre te disse que te não sabias rir porque a vida, a tua vida, era demasiado seria e adulta e economica. Sempre te disse que “A vida é demasiado curta para ser levada a serio” e tu nunca esboçaste um sorriso pela ironia veridica nesta frase. Não, tu nunca entendeste porque é que ela idolatrava o Oscar Wilde.
E, naquele dia cheio de Sol, em que ela correu para ficar quieta a olhar fixamente para o tumulo dele, tu nunca entendeste a protecçao que ela sentia. So por estar la, no tumulo dele, sob o olhar dele. Nunca entendeste Oscar Wilde, nunca compreendeste o que a maravilhava nele.Nunca entendeste nada.
E, nesse dia, ela deixou-te , perspicazmente, deixa-la. Porque sempre foi mais estratega do que tu alguma vez foste. A vida dela não era seria, a imaginaçao que lhe escorria e cada pensamento tornou-a resistente e forte. A tua vida era demasiado seria para não ser insignificante.
Hoje, passas por ela, e magoa-te tanto como te magoou naquele dia. A felicidade dela, a iluminaçao do ser dela e o teu, cinzento baço, distorcido e tenue. Moribundo. Porque nunca entendeste que o riso é um dos teus bens mais preciosos. O optimismo verdadeiro consiste em ver a alternativa, nem que seja a mais ridicula. Não, nunca entendeste que “estamos todos na lama, mas alguns conseguem ver as estrelas.” E ela nasceu a saber isto, o Oscar Wilde resumiu um pensamento confuso dela numa frase simples.

Desafio XLV- Resposta

“Face the facts of being what you are, for that is what changes what you are.”

É filosofia pura, meu amigo. É um exercicio de filosofia que te salva a essencia. Todas as pessoas compadecem dessa tua vergonha, desse teu medo. Ate eu. Mas não deixa de ser filosofia, meu amigo, se aguentares a dúbia existencia de Deus, o existencialismo ou o quanto es ainda igual aos animais, aguentas isto.
Porque, no final, és apenas o que és e nada mais do que isso. No final , chegas a casa relaxas a cabeça na almofada e tudo o que tens és tu. Nada mais do que isso. É o que todos nos temos, so temos o que somos. Ser é ter, não invertas, não te favorece. É por isso que és infeliz e eternamente insatisfeito, para ti ter é ser. Alimentas uma ambiçao em ti que nunca vais satisfazer .
Por isso, meu amigo, faz o que te digo. Experimenta ser em vez de ter. Senta-te em frente ao espelho e repara em todos os pormenores do teu rosto. Conhece quem és porque, de todas as pessoas que te rodeiam, é a tua propria essencia que desconheces mais. Descobre quem te olha do outro lado do espelho, desenha essa realidade alternativa onde os ses moram para saber que mundo paralelo é que tornaste verdade. Descobre o que te fez escolher o que escolheste. Investiga as subtilezas do teu ser, procura os teus pequenos segredos recalcados pela tua ignorancia. Nosce te ipsum, é a tua única forma de seres feliz. Se não sabes quem és, se não aguentas ser o que és , desconheces o que verdadeiramente alimenta o teu espirito e te torna mais tu.
Tens de saber porque é que escolheste ser o que és porque o escolheste inconsciente mas intencionalmente. E tens de querer ser melhor do que isso, do que tudo o que és. Tens de ter uma utopia a viver em ti, a encher-te o peito de novas ideias. Tens de querer ser mais e melhor ( do que tu) para conquistares o direito de viver em vez de existir.
Tens de acreditar que tu és tu para te tornares num argumento válido desta realidade. E, só assim, vais conseguir introduzir alguma mudança em ti. Se não sabes o que és, como é que podes modificar alguma coisa em ti? Vais-te dedicar a fazer promessas vazias cheias de uma honesta bom intençao. Vais-te tornar em mais um parasita ignorante deste mundo, meu amigo.
Compreendo o teu medo e a tua vergonha. Saber o que és é um caminho solitário e ,por vezes, inglorio. Mas a recompensa é muito maior do que alguma vez imaginaste. Podes mudar quem és mantendo o que és.E isto é uma utopia que podes tornar realidade.
Por isso, meu amigo, Nosce te ipsum”. Conhece-te a ti mesmo.

Desafio XLVI - Resposta

"Love never dies a natural death. It dies because we don't know how to replenish it's source. It dies of blindness and errors and betrayals. It dies of illness and wounds; it dies of weariness, of witherings, of tarnishings."

Sentou-se naquela esplanada com vista para o mar onde o fazias sentir-se mais humano. Quando deixaste de o tornar mais efemero ele sentiu-se mais fragil e o amor perdeu o sentido. Houve um momento em que escolheste a realidade que o descredibilizava, anulava e aniquilava. E ele é um brilhante estratego de guerra, mesmo que tivesse escolhido uma morte cheia de romance e amor com o sentido de permancer contigo, não seria possivel. Escolheu não morrer facilmente há muito, mas muito mais tempo.
Olhou o mar de Inverno. O cenário tenebroso fazia-o sentir-se mais em casa. O cabelo negro oscilou ao sabor do vento , o beijo que recebeu foi frio. O amor que te tinha congelou, congelou o amor que lhe entregavas pelo vento. E é tao logico não estares lá com ele, como uma vez foi estares, o amor nunca morre de uma acidental causa natural. Nunca é infundamentado, nem no inicio nem no fim e tudo é sustentado por uma explicaçao quer a conheças ou não. Foste perdendo-o aos poucos, no arrastar de um quotidiano fixo. A estática que lhe ofereceste deixou que as diferenças se instalassem e ele lembrou-se que desejava ser livre e ser o ícaro. E cair como ele. Inumeras vezes. Quando o prendeste a ti para evitares que ele fizesse essa viagem louca em busca da concretizaçao da utopia foi uma traiçao para ele. Não podia escolher entre o amor que te tinha e o amor que tinha por ele proprio, pelas suas utopias, pelos seus sonhos. Foi uma traiçao. Deixaste que a duvida que sempre existiu nele lhe conquistasse o coraçao e ele foi-se afastando. Sentiu a necessidade de explorar outros mundos inconscientemente. Porque é um sobrevivente, instintivamente, procura salvar-se sempre. E, à medida que ia vendo o amor morrer em pequenos suspiros, em pequenos acidentes quotidianos tao naturais e lógicos, o seu espirito nómada iniciava o estalar do esquecimento.
Porque o amor nunca morre de causas naturais. Apesar de tudo ser fundamentado o amor morre quando o aborrecimento se instala e os espelhos revelam a verdadeira essêencia de cada um. E ele era um monstro que tu nunca conseguiste saber como amar, apenas se foi embora antes que percebesses isso. O amor morre em pequenos erros que nunca viste que cometias.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Desafio XLVI - Resposta




“Custa acreditar que não lutas pelo homem que amas”


Que frase tão banal, pensara. Era tão má, que de facto, custava a acreditar. Não saberia ela que também o amor está condenado à morte?
E fora o amor que morrera.
Fora o seu amor que morrera, e jazia agora enterrado em dois corações desconhecidos. E ela nem respeitava a sua dor imensa.
“Não se ama um monstro. E agora, eu sou um monstro” - Ocorreu-lhe dizer.
Mas para ela era como se tivesse desistido, como se tivesse deixado de correr e não desejasse suficientemente a meta. Era como se a culpa fosse sua, como se metade da morte tivesse saído da sua espingarda.
E os seus olhos olhavam-na como culpada – e era-o: culpada de não perpetuar uma mentira.
Por fim, suspirou-lhe para cima:

“Nunca viste o filme? Até a Bela se apaixonou pelo Monstro…”

Que forma tão oca de se estropiar o Amor. Aquilo era uma violação. E como uma vítima sufocada pelo desejo frenético e egoísta, afastou-a com um levantar de boca: o mais parecido com um sorriso que o seu corpo conseguia simular.
Chegou a casa e tomou um banho para secar o esperma do seu corpo. Doía-lhe ainda mais a perda do seu Amor e custou-lhe ainda mais olhar-se ao espelho: um monstro consumido e usado.
Antes de se deitar, porém manteve-se ciente da Morte.
A Bela nunca viu Monstro algum.

Desafio XLIV - Resposta

Wait until the war is over
And we're both a little older
The unknown soldier

Breakfast where the news is read
Television children fed
Unborn living, living, dead
Bullet strikes the helmet's head

And it's all over
For the unknown soldier
It's all over
For the unknown soldier
(...)

Make a grave for the unknown soldier
Nestled in your hollow shoulder
The unknown soldier

Breakfast where the news is read
Television children fed
Bullet strikes the helmet's head

The Unknown Soldier, The Doors



Breve Carta de Suicídio

O meu nome é essa pessoa anónima. Não sabem o meu nome, vocês. E há força de não o saberem, também eu o esqueci.
Vivemos intermitentemente neste jogo de convenções: vocês convencionaram que eu não era importante, eu desconvenci-me disso e estabeleci-me no limite da vida, na borda consciente das não-etiquetas.
Porém, é a mim que me dói a sombra por estar permanentemente nesta guerra oculta. E é a mim que os cabelos embranquecem por estar fora de tempo.
Porém, neste leilão, sou eu que perco.
E nunca achei que a minha vida fosse um pedaço de carne. Por isso, despeço-me com a arrogância de um soldado anónimo que estoirou os miolos, na derradeira tentativa de combater por si - e é essa a única guerra válida.
E é natural que não compreendam esta carta. E que não reconheçam o rosto da guerra: é exactamente por isso que ela nunca se vence.

sábado, 13 de novembro de 2010

Desafio XLIII- Resposta

Sometimes I feel
Like I don't have a partner
Sometimes I feel
Like mt only friend
Is the city I live in
The city of Angels
Lonely as I am
Together we cry


Under the Bridge- Red Hot Chili Peppers


Caminhava com o seu sobretudo negro devagar e compassado. Para que ter pressa se não tinha destino algum que desejasse alcançar? Estava triste, estava melancolico . O seu ser arrastastava-se melodicamente por Lisboa. O seu ser arrastava-se melodicamente pelos predios e pela calçada e pelas fontes que já viram a História mudar a mentalidade de uma sociedade e essa sociedade arruinar-se em pequenas luxurias infundamentadas e inuteis.
Caminhava lentamente como se Lisboa fosse algo que nunca tivesse visto , procurava curiosidades em todas as ruas estreitas e calorosas. Deixava-se encantar pelos pormenores simples que tornavam Lisboa bela . O castelo lá no alto dava-lhe uma sensação medieval de protecçao. Estava em casa e Lisboa nunca fora casa alguma. Não que não gostasse simplesmente nunca fora a sua cidade, o seu lugar do mundo. Limitava-se a ser apenas o sitio que o tinha visto nascer.
Mas não hoje, hoje só Lisboa lhe fazia companhia. Encontrava o seu estado de espirito miseravel e diluido num negro de veludo em cada ruela. Cada estatua parecia tenebrosa e sombria. A pequenez de Lisboa era tao claustrofobica como o aperto mudo que tinha no peito. Perdia-se nos cruzamentos de ruas sombrias que nunca vira mas encontrava-se depois, procurava algo familiar e chegava a uma rua maior e conhecida. Lisboa era demasiado pequena ate para alguem se perder. Como o coraçao dele, como o espirito dele. As vezes so desejava perder-se e deixar-se lá estar , nesse bosque denso e escuro muito maior que ele . Nesse bosque nordico que nunca existiu em Lisboa e que era a casa dele. Não a que o tinha visto crescer ou tornar-se num homem adulto e integro mas a casa que ele tinha escolhido porque reflectia o que desejava ser.
Caminhava com o seu sobretudo negro a contrastar com o cabelo loiro e a pele demasiado branca. Mesmo fisicamente, nunca se enquadrou em Lisboa. Demasiado alto, demasiado magro, demasiado branco, demasiado estrangeiro na sua cidade natal. Mas não hoje, hoje Lisboa era a única a fazer-lhe companhia. Ouvia em certas esquinas o seu lamento, o choro pelas mortes a que assistiu ou o riso emocionado e orgulhoso pelas vitorias heroicas que presenciou. Hoje só Lisboa lhe fazia companhia, so Lisboa o confortava tristemente. Chegou ao Cais das Colunas e sentou-se a ver o Tejo azul profundo . Ouviu a cançao surda que encantava aquele lugar, viu os barcos fantasmas que se afundaram anonimamente e viu os que inovaram o mundo. Viu corpos de homens inocentes que procuraram no Rio um abrigo e foram mortos por isso mesmo; viu a revolta que o tornou num homem livre, anos depois. Viu isso tudo, ouviu isso tudo. Lisboa, so Lisboa lhe fez companhia. E era tao triste, continuava a não ser a sua casa, o lugar quente e aconchegador depois do frio Invernal.
Amava Lisboa, Lisboa fazia-lhe companhia. Mas ele era triste, era desfasado.Estava condenado a isso. Lisboa era a única que lhe fazia companhia e era o único sitio onde não podia ficar.Amava Lisboa mas amava ainda mais a casa que tinha escolhido como sua.

Os estrangeiros, vindos do norte da Europa ,que passavam encontraram um cenario digno de um quadro impressionista. Um homem muito loiro, muito alto sentado naquela uniao perfeita entre o mar e a terra, o passado e o futuro , com o cabelo loiro a ondular ao sabor do vento em conjunto com o negro do seu casaco. Uma uniao estranha e logica. Mas o mais impressionante era a postura dele, a tristeza impenetravel do rosto dele. Distante e proximo, triste e resistente. Tao intimo com Lisboa e, ao mesmo tempo, tao diferente fisicamente , tao igual a eles, estrangeiros vindos do Norte da Europa.
Era um condenado e naquele momento so Lisboa lhe fazia companhia.

Desafio XLII- Resposta

“Great spirits have always found violent opposition from mediocrities. The latter cannot understand it when a man does not thoughtlessly submit to hereditary prejudices but honestly and courageously uses his intelligence.”
(Albert Einstein)


A tua arte é o dom da manipulação dissumalda enbelezada com o que denominas romance. Mas não é romance, é uma forma de viver tao triste quanto qualquer outra. Não não é romance, é a mais triste forma de se viver porque, se vires bem, nem tu acreditas profundamente na tua mentira que não passa de uma ilusao faminta .
Por isso o nunca compreenderás. Para ele a vida é romance, viver é sentir o Amor brilhar-lhe nos olhos; viver é a propria definiçao do ego dele. Porque ele é estratego e é genial na forma como vive, como encara o acto de viver. Como saboreia o vento a beijar-lhe o rosto ou o mar violento no final da tarde de Inverno. Ah sim ele é inteligente, é iluminado e tu não. Enfeita as pequenas artes da vida com ornamentos simples e profundos, nada para ele é linear sem deixar de ser, implicitamente, simples.
Mas para ti o romance é o vazio que tens no teu peito, a tua mediocridade está tao colada ao coraçao num abraço de simbiose que és esse ser negro, aparentemente fragil. Aparentemente doce. Aparentemente só aparentemente. Porque a tua arte, a tua única arte, é o dom da manipulaçao dissmulada, o dom de conseguires inverter a simplicidade dele em algo banal. O teu dom é denominares os crimes existenciais que praticas romance porque são em nome de um ideal ( o teu ideal) que é fantasma, que é inocuo e infertil. Um ideal antigo e gasto, corrompido pelas crueis certezas da vida.
Mas não ele. Descodifica as pequenas intrigas da realidade segundo padroes, observa os pormenores e interpreta-os segundo as leis da matematica, da fisica e da filosofia. Procura a uniao perfeita. Vive segundo o momento tornando-o imortal ao assumir a efemeridade de tudo o que existe.
E tudo o que sabes fazer, tudo o que procuras fazer, é rompe-lo, rasga-lo. Porque o não compreendeste o nunca compreenderás. Ele é um génio, um artista, um ser iluminado pela junçao do raciocinio com a maxima sensibilidade humana e tu és esse ser antagonico ao dele. És uma fraude com um ego demasiado mediocre para conseguires aguentar viver sem te alimentares da ruína que lhe causas.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Desafio XLIII - Resposta

Em cada cem pessoas:
Sabendo tudo mais que os outros:
⁃ cinquenta e duas,
inseguras de cada passo:
⁃ quase todas as outras,
prontas a ajudar desde que isso não lhes tome muito tempo:
⁃ quarenta e nove, o que já não é mau,
sempre boas porque incapazes de ser outro modo:
⁃ quatro; enfim, talvez cinco,
prontas a admirar sem inveja:
⁃ dezoito,
induzidas em erro por uma juventude, afinal tão efémera:
⁃ mais ou menos sessenta,
com quem não se brinca:
⁃ quarenta e quatro,
vivendo sempre angustiadas em relação a alguém ou a qualquer coisa:
⁃ setenta e sete,
dotadas para serem felizes:
⁃ no máximo vinte e tal,
inofensivas quando sozinhas, mas selvagens quando em multidão:
⁃ isso, o melhor é não tentar saber mesmo aproximadamente,
prudentes depois do mal estar feito:
⁃ não mais do que antes,
não pedindo nada da vida excepto coisas:
⁃ trinta, mas preferia estar enganado,
encurvadas, sofridas, sem um lanterna que lhes ilumine as trevas:
⁃ mais tarde ou mais cedo, oitenta e três,
justas:
⁃ pelo menos trinta e cinco, o que já não é mau,
mas se a isso juntarmos o esforço de compreender:
⁃ três,
dignas de compaixão:
⁃ noventa e nove,
mortais:
⁃ cem por cento, número que, de momento, não é possível mudar.
(Wislawa Szymborska)



O meu irmão nasceu grande demais. A minha mãe deu por si na casa de banho a impedi-lo de nascer, ou pelo menos a atrasá-lo entre as dores atrozes que sentia como fios de facas nas pernas.
O resultado foi uma massa disforme e uma mulher pequena esvaída em sangue, distribuídos pelos azulejos brancos.

Como um pronuncio de tragédia atravessada pelas vidas, o meu irmão foi sempre grande demais para os sítios e carregava com ele um inevitável coro de desgraças. Tudo nele cheirava a uma tragédia eminente, como se estivesse marcado com tatuagens ancestrais, anteriores a Deus, que o condenavam a uma desgraça de vida, pior do que a morte.

E era tudo tão paradoxalmente triste, que quando ele sorria eu fixava as covinhas que lhe apareciam nas pontas das suas bochechas. Porque era de mim que ele gostava mais do que tudo.
Em pequenos, fomos estrategicamente separados e nunca andamos sequer na mesma escola. E enquanto eu era aparentemente calma, o meu irmão atravessava o seu corpo desgraçado pela vida e voltava todos os dias com problemas para os meus pais. Era demasiado influenciável e desinteressado. Era demasiado. Sempre.
Mas não comigo.
Era como se eu fosse a única coisa viva da vida dele.

Um dia os meus pais descobriram que ele se drogava, era pouco mais do que um adolescente.
Fiquei fechada no meu quarto, com a cabeça encostada à porta, enquanto eles gritavam com ele e lhe chamavam inútil apesar do tamanho que tinha, como se pelo facto de ele ser assim tão grande devesse mais à Humanidade.
As minhas mãos tremiam agarradas à porta e conseguia sentir as lágrimas invisíveis que lhe saltavam dos olhos. Conseguia ver o rosto lavado daquela tristeza tão entranhada que nenhum dos meus pais, entalados numa vida comum conseguiam descortinar.

Depois desse dia fecharam-no em casa e proibiram-no de se encontrar com os seus amigos, cientes de que eram as más influências que lhe traziam a droga. Sem nunca entenderem que a drogar estava ali em casa e que eram eles que lha davam, quando estipulavam horas para ele ler e ver televisão, acabaram por condená-lo à morte.
E não que ele se tenha resignado. Um dia quando cheguei da escola, ele tinha aberto as janelas e espalhava música para um quintal de prédios todos iguais a não perder de vista da sua prisão.
Porque o meu irmão não era deste mundo. Era grande demais.

No dia em que entrei na faculdade e me preparava para deixar a minha casa, os meus pais foram buscá-lo à rua onde passara mais uma noite, enroscado nas mantas esburacadas que o aqueciam. Ele entrou no meu quarto, afastou a mala meio desfeita e sentou-se no meio da minha cama a observar o tecto onde eu tinha colado o sistema solar fluorescente que brilhava no escuro.
Eu queria dizer-lhe que sabia exactamente o que ele sentia, mas não disse nada. Entre nós a vida sempre fora silenciosamente simples.
Então de repente, beijei-o. Os seus olhos encontraram os meus e não houve nenhum laivo de surpresa. Passamos a noite debaixo dum céu estrelado.
Afinal, a drogada era eu.

sábado, 30 de outubro de 2010

Desafio XLIII - Resposta

Não sabendo que era ímpossivel, foi la e fez.
Jean Cocteau


Nasci menino e cresci rapaz. Engordaram-me, como se gordura fosse formosura, saúde ou estatuto. Inchei com doces, crenças em deuses e expectativas de família e bondade. Tudo isso era tão balofo como eu mesmo. E, por isso, ainda dava os primeiros passos fora da meninice e já tinha rapidamente desinsuflado como um balão furado. Só que a pele estica, e molda-se, e depois para voltar ao sítio é um caso sério. E por isso, menino e rapaz, secaram-me as peles ocas que ficaram badalando-me no peito. E fiz-me homem com mamas.

Mas escondi-as sempre, evitei piscinas e balneários. Quando jogava à bola, era na equipa que jogava de camisola contra a que jogava em tronco nu. Ocultei o peito do sol, e cultivei uma pele enferma. Distraí meio Mundo com a minha cabeça porque sempre achei o meu corpo uma via-rápida para o embaraço e para o riso. O problema era que, secretamente, tive sempre o desejo de ser apenas um corpo. Sempre soube que à superficie à mais conteúdo do que em profundidade, e que a cabeça é pouco mais do que fonte de vaidades. De pé em museus, por entre estátuas de gregos perfeitos, chorei.

A multidão cercou-me, aplaudindo as minhas virtudes e inteligências e pedindo mais e mais daquele encanto que para mim era máscara e para o Mundo era alma e espírito santo. A multidão aproximou-se mais e mais, fez-me correr e saltar barreiras que não coloquei a mim mesmo, fez-me julgar mais do que entender, e fazer mais do que reflectir. Não podia durar, e um dia, já homem cansado, fui exposto como uma fraude. De olhos pesarosos e simpáticos, a multidão descobriu que debaixo da camisola havia um peito masculino com mamas. Ainda assim, espantado, vi a multidão dar-me receitas. Contra as mamas, o exercício, a cirurgia, a aceitação. A aceitação de que eu sou o que sou e não o que quero ser. E o que sou define-se com mamas. Escapar-lhes é impossível.

Tornei-me pois em mamas de homem. Esqueci o jogo de enganos que alimentava, e mostrei-me como aquilo que há de humano em mim me fez. Gritei histericamente contra a multidão e afastei os seus rostos egoístas, e para os mais resistentes quebrei todos os mandamentos. Ri-me na cara dos deus e arrastei o seu nome na lama. Fiz de todos os dias um longo sábado de desemprego, e no sábado trabalhei incansavelmente. Desonrei o meu pai e a minha mãe largando-os na beira da estrada da vida e deixando-os guiarem-se sozinhos. Desonrei o meu próprio corpo com tabaco e álcool e todos os venenos que consegui fazer correr no meu sangue. Fiz da castidade uma piada, e incentivei outros a fazerem o mesmo. Menti e acusei falsamente quem por outros motivos merecia ser acusado, e roubei-lhes as mulheres que cobiçava. Mulheres essas a quem roubei tempo e dedicação mesmo não me interessando. Só não matei, mas mesmo aí estive perto. Porque suponho que matar-me a mim mesmo também conta.

E quando a multidão me cercou de novo, desta vez pasmada perante a minha vileza, munida de paus e pedras para me quebrar com justiça, arranquei todos os botões da camisa para orgulhosamente exibir às armas e aos dedos acusatórios o meu peito com mamas.

E quem diria? As mamas desapareceram.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Desafio XLI - Resposta

“We don't read and write poetry because it's cute. We read and write poetry because we are members of the human race. And the human race is filled with passion. And medicine, law, business, engineering, these are noble pursuits and necessary to sustain life. But poetry, beauty, romance, love, these are what we stay alive for.”

 
“Bom dia, o meu nome é Lúcia e tenho 27 anos. Sou Engenheira.” Foi assim que me apresentei naquele estranho grupo. Parecíamos alcoólicos anónimos, sentados numa roda em cadeiras desconfortáveis. Quando levantei a cabeça, vi-os a olhar para mim sem muito interesse. Afinal, ninguém percebera qual era o meu problema.


Foi logo aí que eu senti que nada ia mudar.

A psicóloga olhou para mim com um ar condescendente. Fora ela que me trouxera ali. Ela sabia qual era o meu problema, depois de eu lhe ter explicado várias vezes, depois de lhe ter falado de filmes e de músicas que me inspiravam. Depois de lhe ter lido alguns dos meus poemas, ela começou a aceitar. Mas demorou muito tempo. E como toda a gente, nunca entendeu.

Quando todos tínhamos terminado, senti uma vontade incontrolável de voltar para o meu quarto e enterrar a minha cabeça na almofada mais profunda. Todas aquelas pessoas estavam cheias de cicatrizes, de horrores de infância, de maus tratos. E eu voltei a sentir que o horror era meu, que eu carregava o próprio problema, como um filho que estava permanentemente em gestação mas que nunca nascia para seguir o seu caminho.

E entendi a sua mensagem: o meu problema não existia perante o Mundo. Que audácia era a minha de sofrer perante aquela amálgama de cortes nos pulsos, de mortes nas veias e vidas estripadas por pais?

Entendi a mensagem, porque já a tinha ouvido muitas vezes.
Era sempre assim.

E dei por mim a vasculhar horrores na minha vida, vestígios e sobras de alguma coisa que me pusesse em pé de igualdade com aquela gente mutilada com razões para acabar com a vida.
Aparentemente o suicídio deve ser acompanhado de uma explicação. E dei por mim a sorrir com a ironia da situação, porque foi justamente por nunca conseguir escrever uma carta a explicar coisa alguma que a morte me seduzia tanto.

Foi quando passei a porta que uma rapariga veio ter comigo e abruptamente me disse que gostava de me falar. Tinha um ar carrancudo.
“Se alguém te mandou falar comigo, para me convencer que devia seguir a minha vida ordinária, podes ir embora”, disse-lhe eu de mau humor. “Não acho que devias viver a tua vida ordinária”. Mas eu continuei “Se alguém te disse que devia arranjar um escape, um fetiche, uma vida dupla, uma máscara, por favor poupa-me a esse discurso. Já o ouvi tantas vezes que sou capaz de vomitar aqui”. Ela pareceu surpreendida, “vamos beber alguma coisa então, não quero que fiques maldisposta”.
E assim começou a nossa amizade.

Entramos num café e eu disse-lhe de rompante que as pessoas que só pensam em pagar os seus impostos e a segurança social me deixam nervosa. Ela riu-se e pediu dois martínis.
Com o descer do álcool pela minha garganta lisa fui ficando mais lúcida e comecei a achar que tinha sido ridícula: há ainda uma altura em que suponho que dramatizo demais um problema que não existe.
"Desculpa, estou irascível hoje. Aqueles encontros de grupo arrasam-me”.
Depois olhei para ela e vi que era incrivelmente bonita. Mas havia algo de estranho na sua beleza, como se a roupa estivesse mal pendurada num cabide.
“ Eu ando naquele grupo de acompanhamento e resolvi deixá-lo hoje.”
Senti um terreno deliciosamente frágil, como uma porção de areia lisa e virgem na madrugada em que o pisamos.
Não voltamos a falar daquilo, mas também não regressamos ao grupo e eu deixei de atender a minha psicóloga a partir dessa tarde.

Não demorei muito a descobrir porque é que ela frequentava aquele grupo de anónimos. Disse-me frontalmente que queria mudar de sexo.
E eu sobretudo, sabia o que era viver num corpo errado.

Um dia contou-me que já tivera muitos namorados e que o sexo nunca a satisfazia porque ela sentia-se um homem, pensava como um há já muito tempo. E era engraçado ver que era verdade. Quando comecei a sair com ela, a ir ao cinema, a partilhar cafés apercebi-me que era um homem quem ali estava. Um homem retraído e esquisito debaixo de um corpo voluptuoso cheio de curvas.
Não me admirei, portanto, que quando fosse pequena se tivesse achado estranha ao espelho. Inatamente, a sua mente era masculina e isso transparecia nos seus gestos e expressões. E por isso tinha também deixado o mesmo acompanhamento em que eu estava, quando um dos psicólogos lhe disse que ela não era homem nenhum, se nem de futebol gostava.

Passamos muitas horas a conversar. Às vezes ela encontrava-me à saída do meu trabalho, onde me enfiava em números e jogos de bolsa que atiravam a Arte a originalidade pela janela.
Um dia ela perguntou-me como é que eu me tinha metido nesta vida. “Sei lá, disse-lhe”. Nessa altura bebia todas as noites e àquela hora a minha boca já estava pastosa. “Quando era pequena disseram-me que eu tinha jeito para os números e eu acreditei. A mentira tornou-se verdade.”
Ela sorriu-me. “E se agora acreditares no contrário, não podes construir a tua nova verdade?”
“É difícil” e foi a primeira vez em muito tempo que respondia a estas perguntas. “Já construi demasiada vida baseada em Ciência. É a minha aptidão para estas coisas que me paga a renda de casa ou me faz viajar. O meu sucesso é a falta de pressão e de paixão no que faço. Eu sou científica para com a própria Ciência. E é isso que eu odeio em mim, a Ciência está no meu cérebro em cada momento.”
“Não podes usar o teu sucesso para viver a tua criatividade? Adoro quando vais sair do trabalho e passas pelo centro comercial para trocares de roupa. Adoro quando vives essa tua pele em êxtase. És tu. Tu és a pessoa que se veste formal de manhã e se transforma à noite.”
Olhei-a longamente através da noite. Aquilo era diferente. Aquilo não era uma vida dupla para mim. Aquilo era eu, eu era uma vida dupla.

“Porque não amas uma mulher?”

“Quem te diz que não amo?”


Não voltamos a falar por uma semana. Instalou-se entre nós um silêncio desconfortável e comprometedor, que me abafava de medo e ao mesmo tempo me electrizava o corpo. Nessa semana não consegui pegar no baixo, nem tive paciência para a minha habitual mudança de roupa antes de seguir para a escola de música. A janela apanhou-me desprevenida a olhar para um computador onde os números desfocados faziam um efeito engraçado nos meus olhos. Também não consegui escrever e os dias pareceram-me ainda mais tristes do que costumavam ser, fechados entre quatro paredes, durante oito horas. O Inverno também não ajudava com dias curtos preenchidos por trabalho produtivo, nobre e necessário. E também seco, encarquilhado e sem romance.

Por isso liguei-lhe e encontramo-nos debaixo de uma chuva torrencial. Às sete estava escuro como se fosse noite cerrada.
Assim que me viu, agarrou-me num longo beijo. As poucas pessoas que passavam na rua pararam para olhar.

“Estava à porta da tua casa, quando me ligaste”

Voltamos para minha casa de mãos dadas. Eu não sabia se estava apaixonada por uma mulher, ou por um homem que vivia num corpo de mulher. Mas também não queria saber, a vida nunca me parecera tão autêntica.
Enquanto nos despíamos das roupas molhadas coladas ao corpo, ela passava as mãos pela minha pele. Nunca nenhum homem me tinha desejado daquela forma. E eu senti o romance e a unicidade da vida que ela me passava. A verdade é que também nunca tinha desejado alguém daquela forma.

“És a poesia da minha vida”

“És o homem da minha vida”

De manhã, quando acordamos, foi um Novo Mundo que acordou em nós.







segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Desafio XLII - Resposta

Conduzes a vida com um sonho na algibeira. E sonhas que algum dia esse sonho te faça inchar os bolsos e rebente com as calças do fato feito à medida da tua perna, e finalmente vás trabalhar vestido de ti. Tu mesmo, vestido apenas da tua pele última e verdadeira.

E gastas metade dos teus dias no inferno, suando num fato, e enchendo os bolsos de moedas, a cabeça de números e a boca de simpatias. Aguentas mais uma conversa sem rumo e alimentas mais um sorriso fácil, porque te palpita um coração no bolso que é maior do que a tua vida e do que a vida dos outros. Esse coração tomará um dia conta de ti. És como um chocolate, escritor por dentro e engenheiro por fora. Crias bibliotecas na cabeça, e um dia vais virar-te do avesso e todos os livros te cairão ao chão, e só terás que apanhá-los e atirá-los ao Mundo.

Porque sim, tu és mais do que a tua condição de escravo de carreira, a forma moderna de controlar a mente e congelar o sangue rumo a uma morte lenta. Porque sim, tu és capaz de te erguer do chão. Porque sim, o teu sonho é real e tem um corpo. É só esperar, e ele um dia vai tomar conta de ti.

Movido por essa esperança, o dia chega em que tu despes o fato. O Mundo é mais verde e o céu mais azul, e tu vais escrevê-lo com as mesmas cores vivas. Abandonas o inferno onde és estrangeiro, e à tua frente não há senão estradas e caminhos e possibilidades inúmeras, tantas quantas as combinações de palavras. Sentes a liberdade como uma brisa a passar-te pelo rosto, e prossegues a fazer do teu impossível o teu quotidiano.

E nada te sai. E descobres que as frases e as personagens que outrora se escreviam na tua mente eram apenas ecos e sombras de sombras. E quando se vive entre sombras, nunca se chega a ser concreto. Ficas imóvel, incapaz de arrancares uma linha para uma folha. Há uma mão a tolher a tua mão.

E aí o Mundo arde e o céu fecha-se em tempestade permanente. Achavas que dentro do fato vivias o inferno. Mas não. Conheces o inferno quando descobres que não chegaste sequer a viver teu o sonho tão querido e tão próximo, uma vez que nunca se perde o que nunca existiu. O inferno é o sítio onde não tens nada teu.

Os teus bolsos estiveram sempre vazios.

Desafio XL - Resposta


É quanto dura a memória. Um quarto de tempo escorrido que nem água,
e desapareci.

A tua memória de mim cristalizou-se nas palavras que escrevia todos os dias.
E como um Narciso espelhado nelas, foste o viajante que prendi nos meus poemas
recitados à distância.

E cada vez que o relógio batia a nossa hora, mais um poema desabrochava nas minhas páginas, para que ávido, pudesses ler quem foste.

E engana-se quem julga que o fulgor da memória se esfumava com o bater
das nossas horas.

A cada martelada no tempo, renasciam breves e fugazes os meus poemas, marcando
o ritmo da tua ausência.

Mas no dia em que te perdoei, o relógio voltou à hora que era nossa e ficou confuso.
E como não parou como dantes, perdeu-se o tempo de vasculhar
Dentro mim.

Foi assim que me esqueceste.
Um quarto de perdão. É quanto dura a memória.

domingo, 24 de outubro de 2010

Desafio XLI- Resposta

http://www.youtube.com/watch?v=_mVW8tgGY_w

Oh tu não entendes e sinceramente não me considero capaz de te explicar. Porque a liberdade , quando a sinto no peito, uma tranquilidade diferente nasce-me no ego. E é melódica e é harmoniosa e é perfeita. Perfeita. A liberdade é perfeita. Tens de a ouvir, tens de a sentir. A liberdade é azul mas tens a visão do teu espirito enclausurada para as cores do mundo, se não ves te não posso explicar.
Chamas-me louco. Porque não valorizo a minha vida? Oh não. Não. Quero ser livre. Não. Sou livre. Não me podes tirar aquilo que é meu, aquilo que me orientava neste mundo surdo e cinzento antes de eu definir quem era. A minha vida é liberdade, nasci livre, morrerei livre. Viverei livre. Ouvirás o meu ser elevar-se numa força resistente e calma, numa tranquilidade de ferro impenetravel. Porque sou livre. Porque me podes torturar, podes fazer-me desejar uma morte rápida. Mas nunca me tirarás a liberdade, se morrer morro livre. Sou livre. Tens razao , é um destino triste. Porque morro. Mas sem liberdade já morri. Sem liberdade era como tu, um morto a passear-se pelos vivos a fingir que o sopro da vida não se esgotou no teu peito por seres apático e fraco.
Não existe vida sem liberdade, sem sentires a benção de estares vivo. Mas te não consigo explicar. Seguia-o sim, seguia o Herói até à morte e para alem dela. Porque ele era livre, porque inovou a propria liberdade. Seguia-o até a minha morte e para além dela porque tambem sou livre, livre de escolher uma morte digna.
Oh tu não entendes. É a liberdade que existe em ti e que tu não entendes. Que tu desprezas. Queres essa vida calma e estavel, sem terrores ou pesadelos. Mas a não escolheste, foste ceifado pela tua propria fraqueza. E um dia arrepender-te-ás. Porque não escolheste a liberdade, faltou-te coragem para morreres por aquilo que é teu. A tua liberdade.
Oh sim eu sigo-o. Sigo o Herói até à morte e para alem dela. Não ha nada como sentir a liberdade a romper, suavemente, da pele. Senti-la a aquecer o meu coração, a consolar o meu espirito. A arrepiar-me cada pedaço de pele e de alma. A oferecer-me uma nova força, uma brutalidade bélica crua mas não inocuamente violenta. A oferecer-me a força estrondosa e invencivel de ser livre. Porque poder-me-ás matar, ah, é tao facil o meu sangue é igual ao teu. Mas morro como homem livre, o meu espirito é livre (e o teu não).
Ah te não consigo explicar porque largas a tua liberdade no lixo como se não fosse importante. Um dia arrepender-te-ás porque sem liberdade tu não existes, não tens reflexo.
Sinto-a agora a correr-me nas veias. Os olhos fechados sentem o som melódio e harmonioso. Perfeito, a liberdade é perfeita. Divina. Ah, é um chamamento. É uma honra. Sigo-O até à morte e para alem dela. Porque sou livre. Porque o Herói sempre o foi, mesmo quando o não era.

Desafio XL- Resposta

O tédio. O tédio é o ínicio de todos os graves pecados do mundo. Não? Experimenta ocupar a tua mente e o teu espirito com uma ideia em movimento, experimenta alimentar continuamente o apetite de descobrires e explorares novas coisas, novas realidades e diz-me se alguma vez te aborreceste. E, depois, diz-me se alguma vez cometeste alguma extravagancia mal fundamentada e desvairada. Porque isso é o tédio, uma experiencia que termina em grande plano mas sem um bom sustento para o teu ego.
É um ciclo. Cometerás erros se desejares conhecer novos mundos, novas perspectivas. E falhas, claro, se preencheres sempre a tua curiosidade sobre a novidade , falharás algures. Mas não serão pecados, todas essas situações nascidas de uma ideia extenuante e cheia de uma periogosa adrenalina inovadora têm uma percentagem de uma moral que não deixa de ser curiosa. Porque és tu, és tu a elevares-te no pior ou no melhor mas és tu. Sabes o que fazes . Mais. Sabes porque é que fazes. Queres alimentar a tua visao do mundo, queres ser maior. Necessitas de saciar essa vontade de sentir toda a existencia do mundo num pedaço de pele.
Mas as ideias que nascem do tédio não são assim. A tua mente fica em branco, o espirito torna-se pouco nítido. Estás a entrar no domínio onde nada existe e como o nada não é possível acordas. Abres bem os olhos e esticas os musculos mas o teu espirito continua desfocado. Por isso é que os maiores pecados nasceram do tédio. Depois de não se ter ideia alguma só uma péssima ideia poderia surgir. E a seguir a isso, logico, um péssimo acto com ausencia de uma qualquer moral. De qualquer justificação bem fundamentada.
Não te deixes envolver pelo tédio. Corroi-te o corpo, corroi-te mente, corroi-te o coraçao. Deixas de ser tu e ideias mal compassadas e estáticas surgem-te para que não morras de tédio, perdendo a consciencia humana cheia de uma moral curiosa que te torna homem.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Desafio XLII - Resposta



“Tens que ouvir a música” Foi o que eu lhe disse. Estávamos os dois cá fora, o parque prometia um Outono que custava a sair das folhas e do cheiro das castanhas assadas.
“Ouve a música”. E foi assim que o deixei naquele jardim, de mãos dadas com a minha ausência. E as minhas costas tornaram-se num pequeno rectângulo negro recortado no quadro impressionista.



Conhecia-o há pouco tempo, tão pouco que na verdade não o conhecia. Ele foi um corpo pronto a acomodar a minha vontade de imaginar personalidades. E enquanto não fui sabendo quem ele era, ele foi sendo toda a gente.
Quando fomos àquele concerto, naquela primeira noite, estava ainda despejado sobre ele aquele perfume encantador do mistério de não se saber quem se encontrou. Como uma prenda que se guarda na mala e que ainda não se abriu.
Mas quando entrámos na sala, a primeira coisa que vi foi o piano de cauda iluminado por uma luz tépida que contrastava com o escuro dominante do público. Um piano solitário e desprotegido que aguardava que alguém o habitasse.
Foi logo ali que ele passou de ser toda a gente para ser Ele. E comecei a sentir a excitação e o desânimo alternados de começar a pegar na prenda e finalmente abri-la.
Ele olhava simultaneamente para mim e para o piano criando uma linha que me entristeceu. Como se o piano e eu tivéssemos algo em comum.

Sentei-me e ouvi a rapariga tocar. Gostei logo dela, com um amor fácil como o que cultivo pelas nuvens de trovoada. Mais tarde percebi que gostei dela porque ela habitava o piano e não o deixava sozinho.

Durante todo o concerto senti que aquela linha que ele criara se intensificava e comecei a sentir um formigueiro instável. A minha impaciência tornou-se gélida quando após as últimas palmas, a rapariga se levantou e disse que queria convidar uma pessoa do público para tocar um pouco. E imobilizei-me quando ela disse o meu nome.
Finalmente percebia a razão de tudo aquilo. Porque tudo tem um propósito e todas as prendas acabam por ser abertas.

Levantei-me e sai da sala. O coração doía-me dolorosamente e sentia o corpo a encher-se de raiva. Com passos curtos e determinados dirigi-me à saída. Lá, ele estava à minha espera como se tivesse ultrapassado o tempo. Parecia assustado e arrependido e isso só me enfureceu mais.
“Só queria que tivesses a oportunidade de tocar num piano!”

Lembro-me que olhei para ele como se fosse uma formiga, um bicho indesejável que viajara comigo preso ao meu casaco. Ele já não era toda a gente. Ele era Ele. E era Dele que eu não gostava.
“Eu não toco em pianos” e afastei-o da minha frente, para finalmente entrar na noite húmida.

No dia seguinte ele ligou-me e de todas as vezes eu desliguei o telefone, adiando-o. Todo aquele mistério que ele carregara desaparecera instantaneamente. Sem mistério, ele era só um rapaz que tentava fazer-me feliz.

Mas eu nunca seria feliz ao piano.
A professora de música da escola convencera os meus pais de que eu tinha um talento especial para a música. E com pouco mais de cinco anos as minhas tardes de terça-feira eram passadas numa sala minúscula com um piano incrustado na parede e um cheiro a mofo das pautas que eu endireitava com as minhas pequenas mãos.
Já naquela altura eu era demasiado irrequieta. Quando me sentava ao piano ficava de costas para a janela e era constantemente repreendida. A música saltava-me do coração para a vida e eu corria a recolhê-la. Porque o piano exigia-me as escalas e a rapidez das mãos enquanto a professora batia com a caneta no tampo. Já nessa altura eu dava mais atenção ao ritmo da caneta do que à melodia do piano. Dava mais atenção aos ténis do que às sabrinas. Era mais agressiva do que suave.
E quando produzia melodias no piano, sentia que era ele que estava apaixonado por mim.

Um dia deixei-o sem razão aparente. Não expliquei o meu divórcio, mas mantive-o sagrado, longe da incompreensão dos que me convenciam a voltar para aquele que diziam ser “o meu instrumento”.
Troquei-o mais tarde por uma bateria, quando a violência que eu sentia dentro de mim se tornou insuportável. E apaixonadamente, sendo eu em cada centímetro de pele, criei ritmos e solos. Aprendi pautas a quatro membros, rompi preconceitos e cansei os tornozelos numa algazarra confusa e barulhenta.

Ocasionalmente, a minha solidão espreitava-me e abanava-me a cabeça quando à noite estava à janela. “És teimosa”, dizia-me ela. “O piano foi feito para ti, é solitário como tu”.
E eu sentia saudades. De levantar a tampa preta e de conversarmos. Sentia saudades do amor que ele me dava. Que só ele me dava. Que só ele me tinha.

Porque o ritmo nunca existiu isolado. E a minha agressividade só fazia sentido enquadrada com as guitarras. Mas as guitarras nunca chegaram.

Hoje eu sei que elas nunca vão chegar. E sei que esta minha insistência em ser o ritmo de uma banda não é mais do que um profundo sonho que acalento desde pequena que é o de não estar só.

E o piano sabia.



terça-feira, 19 de outubro de 2010

Desafio XLII

Wings para Alice in Wonderland:

http://www.youtube.com/watch?v=_mVW8tgGY_w


Alice in Wonderland para Ricardo:

"Imagine if you suddenly learned that the people, the places, the moments most important to you were not gone, not dead, but worse, had never been. What kind of hell would that be? "

from A Beautiful Mind




Ricardo para Wings:

“Great spirits have always found violent opposition from mediocrities. The latter cannot understand it when a man does not thoughtlessly submit to hereditary prejudices but honestly and courageously uses his intelligence.”
(Albert Einstein)

domingo, 17 de outubro de 2010

Desafio XLI - Resposta

Passam hoje cinco anos e ainda não consigo cortar a barba. Apará-la com uma tesoura é fácil, e sempre controla o maior influxo de pelos que tentacularmente me cobrem a face. O sangue não deixa de me subir à cabeça ao sentir o frio reflectido nas faces das lâminas. Mas com a tesoura sinto-me como um explorador submarino, caçando em alto mar um polvo e cortando-lhe os tentáculos, um pelo de cada vez. O mar acalma-me. Aprendi esse truque com o primeiro psicólogo que me assistiu no aeroporto. E também foi ele quem me ensinou a usar sons do mar para adormecer. É curioso como o mar não me assusta. Isto porque estávamos a sobrevoar o Atlântico quando aconteceu. Não havia senão aquela grande massa de água debaixo dos nossos pés. Água espessa como o pânico em que nos afogámos dentro do avião. Água, que em pequenas quantidades ainda é o meu fantasma. Por vezes, quando me servem um copo, vejo-o tingir-se de vermelho, e esfrego longamente os olhos para repor a sanidade. E de novo penso nele. O passageiro 15A.

Eu era o passageiro 15B. Já revivi a cena nos meus pesadelos conturbados centenas de vezes. Lá estou eu, ordeiramente na fila para o check-in. Lá estou eu, finalmente a chegar ao balcão de check-in, e lá estão a perguntar-me se tenho preferência no lugar. E eu a responder que não. Quando se acumulam voos no historial, as cadeiras de avião tornam-se semelhantes, e começa a ser indiferente estar mais à frente ou mais atrás. E por isso respondi-lhe que não tinha preferência. Tinha sido tão fácil quanto dizer à senhora do check-in para me colocar mais à frente ou mais atrás. E talvez hoje esta barba não tivesse que permanecer no meu rosto como uma cicatriz, uma amputação ao contrário.

As máscaras de oxigénio caíram sem nada que o anunciasse. A turbulência só começou depois. A tripulação saltou dos seus lugares e pediu-nos que permanecessemos calmos. Pediu-nos que colocassemos as máscaras. Mas ele recusou-se. O passageiro 15A. Não tinha nem reparado nele nos vinte minutos anteriores desde a descolagem. Ele levantou-se do lugar, passou por cima de mim sem pedir permissão. E levantou os braços e levantou a voz.

“Que momento maravilhoso! Vocês nunca mais se vão sentir assim tão vivos. Não fiquem aí atrás de máscaras, usem-no para fazerem o que sempre quiseram! Beijem o passageiro do lado, liguem os telemóveis e digam a alguém aquilo que sempre quiseram dizer e nunca tiveram coragem! Não entendem como isto é o melhor que já vos aconteceu?”

Os braços foram-lhe violentamente baixados por duas hospedeiras-homem. O seu corpo ténue foi facilmente subjugado por forças superiores à sua. Parecia possuído, e só parou de gritar quando recebeu um punho fechado no estômago e um punhado de saliva lhe saltou da boca, juntamente com um uivo grave. Por essa altura, o avião já era um poço da morte. Levantei-me para o colocarem na cadeira ao meu lado. Estava fraco, ligado à vida pelo tubo que lhe bombeava ar concentrado para os pulmões, e apertado por um cinto que lhe amplificaria por certo a dor proveniente do estômago violentado. Estavamos todos assim. Surpreendidos e amedrontados pela forma como o avião nos sacudia como um cão com pulgas. Projectávamos a nossa esperança por um tubo que nos dava um ar relaxante. Acho que nenhum de nós se apercebeu bem das palavras loucas do passageiro 15A.

O avião parecia cada vez mais irado. E o passageiro 15A retirou a máscara. E, sorvendo longamente o ar rarefeito da cabina, expelia a custo um riso ofegante. Eu ainda acordo a meio da noite com aquele riso a cortar os sons de maresia no meu quarto. E ainda julgo escutá-lo tantas vezes durante o dia a discursar, gritando uma palavra de cada vez.

“O que esperam? Estão todos aí parados, a marcar lugar na fila para a morte? Eu cá não espero por ninguém. Sempre me quis demitir. Demitir do meu emprego. Demitir da minha namorada que me aborrece. Demitir-me de viver. Mas acho que andava à espera do momento certo. Este é o momento!”

Bastaram segundos. Um minuto, no máximo, e o passageiro 15A deixou de se mexer. A tripulação correu a cobri-lo com uma manta para que mais ninguém reparasse. Tudo para evitar o pânico. Estranho como o sacrifício do passageiro 15A fez o avião parar imediatamente de tentar matar-nos. Já tivera o seu sangue, o seu sacrifício humano. Os deuses estavam calmos. Fez-me pensar, em choque, se as tribos primitivas não estariam correctas.

Em terra, disse-se que o passageiro 15A perecera ao retirar a máscara. Disse-se que sofria de problemas psiquiátricos sérios. E todos aceitam que esses são os indivíduos que morrem primeiro: os que se recusam a jogar a vida com as regras todas.

O avião ia lotado, e eu fui o único passageiro a saber a verdade. Eu, o passageiro 15B. Eu, que fui recebido no aeroporto por um psicólogo e um papel para assinar em como nunca revelaria a verdade. Em troca, recebi informação. Eu sei que houve inquéritos. Pessoas foram demitidas. Eu sei que ninguém conseguiu explicar como ele violou tão obviamente o controlo de segurança. Talvez não o tivessem revistado com cuidado, ou talvez as máquinas estivessem avariadas. Bastava que lhe tivessem apalpado o bolso pequeno das calças de ganga, aquele bolso que ninguém sabe para que serve, e talvez hoje o passageiro 15A estivesse vivo. O bolso pequeno foi onde ele procurou, com gestos moles, aquela coisa. Lâmina. De barbear. Ainda me custa a dizer o nome. Acho que nunca mais conseguirei tocar numa.

Foi neste mesmo dia, há cinco anos atrás. Eu aprendi muito com o passageiro 15A. Aprendi que o seu sangue jorrar enquanto a pressão for suficiente. Aprendi que depois goteja e mancha terrificamente o chão. Aprendi que a barba crescida não contribui em nada para o charme de um homem. Aprendi que dormir pode ser mais complicado do que passar uma noite em claro. Depois de muitas sessões com o psicólogo do aeroporto, aprendi a ter pena do passageiro 15A. Afinal, ele demitiu-se desnecessariamente da vida antes de se poder demitir do emprego e da namorada. Depois de mais sessões ainda, aprendi que prefiro viver a vida ordeiramente numa fila até chegar a minha vez para ser atendido pela morte. Porque nesta fila a penalidade por desrespeito é sermos puxados para o primeiro lugar de acesso à morte.

E neste momento o psicólogo do aeroporto está a tentar que eu aprenda a responder ao passageiro 15A quando, da profundeza dos meus pesadelos, ele irrompe por entre os sons do mar da minha insónia e me diz:

“não aprendeste nada.”

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Desafio XLI





"We don't read and write poetry because it's cute. We read and write poetry because we are members of the human race. And the human race is filled with passion. And medicine, law, business, engineering, these are noble pursuits and necessary to sustain life. But poetry, beauty, romance, love, these are what we stay alive for. To quote from Whitman,

'O me! O life!... of the questions of these recurring;
Of the endless trains of the faithless--of cities filled with the foolish;
What good amid these, O me, O life?
Answer:
That you are here - that life exists, and identity;
That the powerful play goes on and you may contribute a verse.'

That the powerful play goes on and you may contribute a verse.

What will your verse be?"

("Dead Poets Society")



Wings para Ricardo:


"Estamos todos na bicha.

Ninguém sabe para quê.

Deve ser para a morte."


Roberto Juarrot

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Desafio XL - Resposta

Give a heart, take a heart.

O coração é um orgão acessório. Pode aquecer-se com um filme lamechas, pode gelar-se com medo, pode acelerar-se com cafeína, pode parar-se com um susto, pode pôr-se a funcionar com um choque eléctrico, pode evitar-se com um bypass, pode arrancar-se para oferecer a um grande amor e substituir-se pelo da outra pessoa. E fica-se assim, a trabalhar como um relógio com outra máquina, e dá-se horas ao mesmo tempo.

Give a heart, but you cannot take a heart.

O coração só é um orgão essencial quando a pessoa a quem oferecemos o nosso coração não nos oferece o seu de volta. A troca fica incompleta. E ficamos com um vazio no peito do tamanho do nosso afecto. Efectivamente morremos. E movemo-nos como vampiros sem dentes, irremediavelmente sedentos, incansavelmente sem descanso. E sofremos do coração. Tornamo-nos pessoas sem coração.

You have no heart to give, but you take a heart.

O coração chega a queimar quando o nosso peito está vazio. Se alguém nos oferece o seu coração, aceitamos. Mas se não temos coração nenhum para oferecer de volta, ficamos com um coração nas mãos que não é nosso. Ele arde, magoa. Vemos o sorriso no rosto daquele coração delicado, docemente pedindo retribuição. Sentimos o nosso coração lá longe e reconhecemo-nos na dor deste que agora usamos para tapar o buraco no nosso peito. E amaldiçoamos o dia em que mandámos o coração embora.

Give no heart, take your heart back.

Mas o coração também é um orgão que volta a crescer. É preciso tempo e cuidado, mas ele reaparece. No dia em que ele reaparecer, aprende que o teu coração não se dá a ninguém. Quanto muito, empresta-se.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Desafio XXXIX- Resposta

Ele amou-te mas que importa isso para ti? Nada. Disse-te que o amor era inutil para ele , que era irrelevante. E quando um dia se foi embora, nunca mais voltou. Nunca mais voltou para ti. Mas para ti o amor não era inutil nem irrelevante. O amor era tudo o que te fazia levantar da cama no dia seguinte. E o amor dele, o ser dele, era o teu sol de Verão que aquece e ilumina.
Mas nunca mais ele telefonou. Nunca mais lhe ouviste o riso alto e exótico. Nunca mais viste o seu rosto tao belo, tao peculiar e desumanamente belo. Porque quando se foi embora, deixou-te o pedaço de coraçao de pano negro dele que te pertencia. Para nunca mais voltar. Porque o amor para ele era inutil mas sabia que para ti não era, tornou o sentimento real , para não ficares com nada. Amava-te, ele, te nunca esqueças disso. So que já não pode voltar.
Mas, às vezes, quando caminhavas na rua e alguem se parecia com ele uma esperança moribunda e triste nasciate no peito, os teus dedos ganhavam vida. O coraçao entregava-se ao fogo expectante e ardia de tristeza. Porque não era ele, sabias que não era ele. Mas o teu ser preferia essa ilusao, essa pequena ilusao de felicidade durante uma fracçao de tempo. Porque já nem o consolo da ausencia de vida tinhas, tinhas menos do que nada e nada disto é possivel. Tinhas muito menos do que nada e, nesses momentos, abrias o cofre e seguravas com carinho o pedaço de coraçao de pano dele. Era tao fragil e ele é este ser, que um dia se foi embora e no dia anterior já não estava mais contigo.
O tempo passa sempre e congela sempre a dor mais crua e aguda. A tua memória dele tornou-se desfocada, perdeu nitidez. Deixaste de te lembrar exactamente de quem ele era, deixaste de ter um referencial para procurar. Continuaste à espera do telefonema mas como nunca o recebeste habituaste-te a não espera-lo.
E , um dia, ias a caminha na rua e ouviste o riso dele. O teu coração reconheceu-o de imediato. Lembraste-te que nunca te telefonou e que agora estava ali, igual ao que sempre foi. E deste-lhe o teu pedaço de coraçao de pano que lhe pertencia, que lhe pertenceu durante todos estes anos porque tu já não eras tu. Porque ele era o teu Sol de Verão e na ausencia dele tornaste-te na pessoa que ama o Inverno. A memoria dele passou a ser desfocada, o teu coraçao ardeu. Tu já não és tu por todas as noites que não dormiste à espera do telefonema dele, do telefonema que ele te prometeu que nunca faria.
Ele tornou o teu amor inutil.

Desafio XXXVIII- Resposta

Ah não te consideras pouco ou mesquinho? Não claro que não, como poderias tu, tudo o que vês é tudo o que és. Vês pouco, julgas muito, condenas em vácuo. Não importa o que almejas ser o teu horizonte é demasiado curto .
Mas poder-me-ias ouvir , só por respeito. Só por uma questao de não deixares transparecer que essa tua opiniao mediocre que te define é tudo o que tens, se a puserem em causa morres vivo e amanha estaras morto, estando vivo ainda.
Oh vá lá não faças isso não me tentes distorcer e estrangular o coraçao até te estou a tentar ajudar. Estou-te a tentar dizer que tens uma leve hipotese. Não reajas assim ao choque, não o critiques, não o abomines. Não o condenes porque vês um pecado monstruoso. O choque é te util para ti enquanto Homem que deseja ser melhor. O choque é te util porque te obriga a reflectir. O choque faz-te ponderar sobre tudo o que tu já conheces, sobre tudo o que consideraste que já conhecias. Sei, eu sei, o choque bruto e aberto é extraordinariamente desconfortavel. Tens a tendencia da repulsa, da repugnancia , tens intrinseco em ti o acto de virar a cara e condenar sob julgamento moral.
Sob o teu julgamento moral, não ajas dessa forma de pessoa minuscula que diz que o seu valor moral é o valor moral do mundo. Sabes que o não é, tens as tuas opiniões que são verdade absoluta para ti. E é isso que o sentimento de choque explicito te faz. Reflectes sobre as tuas opinioes, consolidas as tuas teorias ou deixas a mente fluir para encontrares outras. O choque é o exagero máximo que te deixa formular uma opiniao fudnamentada. Uma reflexao válida. Porque, ouve-me, não importa se o que pensas é verdade absoluta, interessa que seja válido. Os argumentos têm de ser válidos, a verdade não deixa de ser sempre subjectiva.
Oh vais morrer assim, de mansinho. Nem as tuas cinzas vao conseguir não serem apenas isso. Pedaços de uma existencia pequena e mediocre, altamente parasita. Porque? Porque?! Porque nunca quiseste ser salvo pelo sentimento de choque, pela repulsa do choque. Levantaste a mao e condenaste porque para ti, para a tua verdade absoluta ,era pecado.
Mas normalmente o choque é fundamentado. É valido. Normalmente, o choque é uma forma extraordinária e perspicaz de te fazer passar uma mensagem de uma forma tao excentrica que te obriga a reflectir sobre ela. O choque é o inverso da discriminação, dos tabus, das convençoes sociais visiveis e invisiveis. O choque é te util e tu sempre o condenaste. Morrerás porque recusaste ser salvo por esse sublime sentimento que te alcança quando podes não ter razao. E morrerás assim, pequeno e mediocre. Parasita. E ninguem chorará por ti porque nunca causaste choque algum. Nem quando agias sob pensamentos radicais extremistas, cheios de uma falta de humanidade decorada com carnificina. Ninguem se importará porque nunca causaste choque, foste simplesmente mais um inutil cru que viveu neste mundo. E nem sequer foste bom o suficiente para esse papel.
Ironico, não? Devias ter-me ouvido porque eu fui educado pelo sentimento de choque em bruto.

Desafio XXXVII - Resposta

Estava lá sentado calmamente. Confortavel e dístraído enquanto o vento marítimo brincava com o seu cabelo vermelho. Parecia absorto do mundo que escorria debaixo dos olhos de mar dele. A vida que sustentava a existencia da praia era lhe tao distante e estava tao perto.
Tinha sempre momentos daqueles em que o mundo circundante tornava-se desfocado porque estava em auto-reflexao e não se apercebia do quanto atraia as mulheres com a sua beleza peculiar e postura carismática. Não queria saber, intrinsecamente, sabia so por respirar que nenhuma delas o interessava.Se fossem carismáticas não se exibiam daquela forma tao banal.
E esta percepção sempre foi a sorte estranha que o acompanhou. Não era sortudo numa tonalidade aleatoria, tinha sorte aos jogos que exigiam um raciocinio astuto. Alias, era mestre nesses jogos que favoreciam quem tinha uma percepçao perspicaz rapida da realidade. Ele era um estratego brilhante. Insconscientemente, inatamente, inocentemente brilhante.
Bebeu devagar o café. Fumou devagar . Deuses, ele tinha sorte ou já não estaria vivo. Mas, ao mesmo tempo, tinha mérito. Era mestre em aproveitar as oportunidades que surgiam quando nasciam dos seus dedos. Sempre foi mestre em morrer honradamente pelo ideal que o move. Sempre procurou problemas existenciais que lhe acrescentavam uma certa irresponsabilidade e sempre teve perspicácia suficiente para aprender com eles e sair vivo assumindo-se na maior plenitude de toda a liberdade que podia ter. E isto não foi sorte, a sorte vem depois. Sempre foi uma mistura de favorecimento não-aleatório do Universo com a mente aberta e astutamente perspicaz dele.
A vida continuava a escorrer na praia, eram os ultimos dias de Verão. O mar nunca parecia tao bonito como nos ultimos dias de Verao. O fim das coisas enche-as de uma beleza utopica.
E ele sempre teve esta mente minuciosa e consciente. O mar de Inverno, violento e triste, sempre o fascinou mais. O mar de Inverno era so seu porque ele era dos unicos que amava verdadeiramente o mar. E isto não é sorte a sorte vem depois.
Encostou-se para tras e riu-se baixinho e discretamente. As mulheres que o rodeavam devem ter pensado que era louco e ele confirmou a sua teoria. So um louco reconhece outro louco e se sente tao confortavel ao ponto em que descobre que loucos são os que não são loucos. São tao desinteressantes que são loucos, negativamente. Como elas. Vazias. Se não fossem inócuas seriam loucas e se fossem loucas o não encontravam atraentemente louco. Viam alguem igual a elas.
Conseguia, no final, nunca errar um pensamento sensorial porque, sempre brilhante, começava por se deixar fascinar por aquilo que passa despercebido a maioria das pessoas. Os pequenos pormenores que ninguem considera relevantes . Não tinha sorte, tinha sorte por saber esmiuçar espontaneamente as oportunidades que o espirito dele criava.
Sentou-se de novo direito na cadeira. Era uma sorte gostar mais do mar de Inverno. Não era uma sorte ser o ser que ama o mar, que procura o sentimento de paz e faz da praia um Santuário. Isto não é sorte, é ele que é este ser suficientemente astuto para ser abençoado com a sorte.