Passam hoje cinco anos e ainda não consigo cortar a barba. Apará-la com uma tesoura é fácil, e sempre controla o maior influxo de pelos que tentacularmente me cobrem a face. O sangue não deixa de me subir à cabeça ao sentir o frio reflectido nas faces das lâminas. Mas com a tesoura sinto-me como um explorador submarino, caçando em alto mar um polvo e cortando-lhe os tentáculos, um pelo de cada vez. O mar acalma-me. Aprendi esse truque com o primeiro psicólogo que me assistiu no aeroporto. E também foi ele quem me ensinou a usar sons do mar para adormecer. É curioso como o mar não me assusta. Isto porque estávamos a sobrevoar o Atlântico quando aconteceu. Não havia senão aquela grande massa de água debaixo dos nossos pés. Água espessa como o pânico em que nos afogámos dentro do avião. Água, que em pequenas quantidades ainda é o meu fantasma. Por vezes, quando me servem um copo, vejo-o tingir-se de vermelho, e esfrego longamente os olhos para repor a sanidade. E de novo penso nele. O passageiro 15A.
Eu era o passageiro 15B. Já revivi a cena nos meus pesadelos conturbados centenas de vezes. Lá estou eu, ordeiramente na fila para o check-in. Lá estou eu, finalmente a chegar ao balcão de check-in, e lá estão a perguntar-me se tenho preferência no lugar. E eu a responder que não. Quando se acumulam voos no historial, as cadeiras de avião tornam-se semelhantes, e começa a ser indiferente estar mais à frente ou mais atrás. E por isso respondi-lhe que não tinha preferência. Tinha sido tão fácil quanto dizer à senhora do check-in para me colocar mais à frente ou mais atrás. E talvez hoje esta barba não tivesse que permanecer no meu rosto como uma cicatriz, uma amputação ao contrário.
As máscaras de oxigénio caíram sem nada que o anunciasse. A turbulência só começou depois. A tripulação saltou dos seus lugares e pediu-nos que permanecessemos calmos. Pediu-nos que colocassemos as máscaras. Mas ele recusou-se. O passageiro 15A. Não tinha nem reparado nele nos vinte minutos anteriores desde a descolagem. Ele levantou-se do lugar, passou por cima de mim sem pedir permissão. E levantou os braços e levantou a voz.
Os braços foram-lhe violentamente baixados por duas hospedeiras-homem. O seu corpo ténue foi facilmente subjugado por forças superiores à sua. Parecia possuído, e só parou de gritar quando recebeu um punho fechado no estômago e um punhado de saliva lhe saltou da boca, juntamente com um uivo grave. Por essa altura, o avião já era um poço da morte. Levantei-me para o colocarem na cadeira ao meu lado. Estava fraco, ligado à vida pelo tubo que lhe bombeava ar concentrado para os pulmões, e apertado por um cinto que lhe amplificaria por certo a dor proveniente do estômago violentado. Estavamos todos assim. Surpreendidos e amedrontados pela forma como o avião nos sacudia como um cão com pulgas. Projectávamos a nossa esperança por um tubo que nos dava um ar relaxante. Acho que nenhum de nós se apercebeu bem das palavras loucas do passageiro 15A.
O avião parecia cada vez mais irado. E o passageiro 15A retirou a máscara. E, sorvendo longamente o ar rarefeito da cabina, expelia a custo um riso ofegante. Eu ainda acordo a meio da noite com aquele riso a cortar os sons de maresia no meu quarto. E ainda julgo escutá-lo tantas vezes durante o dia a discursar, gritando uma palavra de cada vez.
Bastaram segundos. Um minuto, no máximo, e o passageiro 15A deixou de se mexer. A tripulação correu a cobri-lo com uma manta para que mais ninguém reparasse. Tudo para evitar o pânico. Estranho como o sacrifício do passageiro 15A fez o avião parar imediatamente de tentar matar-nos. Já tivera o seu sangue, o seu sacrifício humano. Os deuses estavam calmos. Fez-me pensar, em choque, se as tribos primitivas não estariam correctas.
Em terra, disse-se que o passageiro 15A perecera ao retirar a máscara. Disse-se que sofria de problemas psiquiátricos sérios. E todos aceitam que esses são os indivíduos que morrem primeiro: os que se recusam a jogar a vida com as regras todas.
O avião ia lotado, e eu fui o único passageiro a saber a verdade. Eu, o passageiro 15B. Eu, que fui recebido no aeroporto por um psicólogo e um papel para assinar em como nunca revelaria a verdade. Em troca, recebi informação. Eu sei que houve inquéritos. Pessoas foram demitidas. Eu sei que ninguém conseguiu explicar como ele violou tão obviamente o controlo de segurança. Talvez não o tivessem revistado com cuidado, ou talvez as máquinas estivessem avariadas. Bastava que lhe tivessem apalpado o bolso pequeno das calças de ganga, aquele bolso que ninguém sabe para que serve, e talvez hoje o passageiro 15A estivesse vivo. O bolso pequeno foi onde ele procurou, com gestos moles, aquela coisa. Lâmina. De barbear. Ainda me custa a dizer o nome. Acho que nunca mais conseguirei tocar numa.
Foi neste mesmo dia, há cinco anos atrás. Eu aprendi muito com o passageiro 15A. Aprendi que o seu sangue jorrar enquanto a pressão for suficiente. Aprendi que depois goteja e mancha terrificamente o chão. Aprendi que a barba crescida não contribui em nada para o charme de um homem. Aprendi que dormir pode ser mais complicado do que passar uma noite em claro. Depois de muitas sessões com o psicólogo do aeroporto, aprendi a ter pena do passageiro 15A. Afinal, ele demitiu-se desnecessariamente da vida antes de se poder demitir do emprego e da namorada. Depois de mais sessões ainda, aprendi que prefiro viver a vida ordeiramente numa fila até chegar a minha vez para ser atendido pela morte. Porque nesta fila a penalidade por desrespeito é sermos puxados para o primeiro lugar de acesso à morte.
E neste momento o psicólogo do aeroporto está a tentar que eu aprenda a responder ao passageiro 15A quando, da profundeza dos meus pesadelos, ele irrompe por entre os sons do mar da minha insónia e me diz:
Eu era o passageiro 15B. Já revivi a cena nos meus pesadelos conturbados centenas de vezes. Lá estou eu, ordeiramente na fila para o check-in. Lá estou eu, finalmente a chegar ao balcão de check-in, e lá estão a perguntar-me se tenho preferência no lugar. E eu a responder que não. Quando se acumulam voos no historial, as cadeiras de avião tornam-se semelhantes, e começa a ser indiferente estar mais à frente ou mais atrás. E por isso respondi-lhe que não tinha preferência. Tinha sido tão fácil quanto dizer à senhora do check-in para me colocar mais à frente ou mais atrás. E talvez hoje esta barba não tivesse que permanecer no meu rosto como uma cicatriz, uma amputação ao contrário.
As máscaras de oxigénio caíram sem nada que o anunciasse. A turbulência só começou depois. A tripulação saltou dos seus lugares e pediu-nos que permanecessemos calmos. Pediu-nos que colocassemos as máscaras. Mas ele recusou-se. O passageiro 15A. Não tinha nem reparado nele nos vinte minutos anteriores desde a descolagem. Ele levantou-se do lugar, passou por cima de mim sem pedir permissão. E levantou os braços e levantou a voz.
“Que momento maravilhoso! Vocês nunca mais se vão sentir assim tão vivos. Não fiquem aí atrás de máscaras, usem-no para fazerem o que sempre quiseram! Beijem o passageiro do lado, liguem os telemóveis e digam a alguém aquilo que sempre quiseram dizer e nunca tiveram coragem! Não entendem como isto é o melhor que já vos aconteceu?”
Os braços foram-lhe violentamente baixados por duas hospedeiras-homem. O seu corpo ténue foi facilmente subjugado por forças superiores à sua. Parecia possuído, e só parou de gritar quando recebeu um punho fechado no estômago e um punhado de saliva lhe saltou da boca, juntamente com um uivo grave. Por essa altura, o avião já era um poço da morte. Levantei-me para o colocarem na cadeira ao meu lado. Estava fraco, ligado à vida pelo tubo que lhe bombeava ar concentrado para os pulmões, e apertado por um cinto que lhe amplificaria por certo a dor proveniente do estômago violentado. Estavamos todos assim. Surpreendidos e amedrontados pela forma como o avião nos sacudia como um cão com pulgas. Projectávamos a nossa esperança por um tubo que nos dava um ar relaxante. Acho que nenhum de nós se apercebeu bem das palavras loucas do passageiro 15A.
O avião parecia cada vez mais irado. E o passageiro 15A retirou a máscara. E, sorvendo longamente o ar rarefeito da cabina, expelia a custo um riso ofegante. Eu ainda acordo a meio da noite com aquele riso a cortar os sons de maresia no meu quarto. E ainda julgo escutá-lo tantas vezes durante o dia a discursar, gritando uma palavra de cada vez.
“O que esperam? Estão todos aí parados, a marcar lugar na fila para a morte? Eu cá não espero por ninguém. Sempre me quis demitir. Demitir do meu emprego. Demitir da minha namorada que me aborrece. Demitir-me de viver. Mas acho que andava à espera do momento certo. Este é o momento!”
Bastaram segundos. Um minuto, no máximo, e o passageiro 15A deixou de se mexer. A tripulação correu a cobri-lo com uma manta para que mais ninguém reparasse. Tudo para evitar o pânico. Estranho como o sacrifício do passageiro 15A fez o avião parar imediatamente de tentar matar-nos. Já tivera o seu sangue, o seu sacrifício humano. Os deuses estavam calmos. Fez-me pensar, em choque, se as tribos primitivas não estariam correctas.
Em terra, disse-se que o passageiro 15A perecera ao retirar a máscara. Disse-se que sofria de problemas psiquiátricos sérios. E todos aceitam que esses são os indivíduos que morrem primeiro: os que se recusam a jogar a vida com as regras todas.
O avião ia lotado, e eu fui o único passageiro a saber a verdade. Eu, o passageiro 15B. Eu, que fui recebido no aeroporto por um psicólogo e um papel para assinar em como nunca revelaria a verdade. Em troca, recebi informação. Eu sei que houve inquéritos. Pessoas foram demitidas. Eu sei que ninguém conseguiu explicar como ele violou tão obviamente o controlo de segurança. Talvez não o tivessem revistado com cuidado, ou talvez as máquinas estivessem avariadas. Bastava que lhe tivessem apalpado o bolso pequeno das calças de ganga, aquele bolso que ninguém sabe para que serve, e talvez hoje o passageiro 15A estivesse vivo. O bolso pequeno foi onde ele procurou, com gestos moles, aquela coisa. Lâmina. De barbear. Ainda me custa a dizer o nome. Acho que nunca mais conseguirei tocar numa.
Foi neste mesmo dia, há cinco anos atrás. Eu aprendi muito com o passageiro 15A. Aprendi que o seu sangue jorrar enquanto a pressão for suficiente. Aprendi que depois goteja e mancha terrificamente o chão. Aprendi que a barba crescida não contribui em nada para o charme de um homem. Aprendi que dormir pode ser mais complicado do que passar uma noite em claro. Depois de muitas sessões com o psicólogo do aeroporto, aprendi a ter pena do passageiro 15A. Afinal, ele demitiu-se desnecessariamente da vida antes de se poder demitir do emprego e da namorada. Depois de mais sessões ainda, aprendi que prefiro viver a vida ordeiramente numa fila até chegar a minha vez para ser atendido pela morte. Porque nesta fila a penalidade por desrespeito é sermos puxados para o primeiro lugar de acesso à morte.
E neste momento o psicólogo do aeroporto está a tentar que eu aprenda a responder ao passageiro 15A quando, da profundeza dos meus pesadelos, ele irrompe por entre os sons do mar da minha insónia e me diz:
“não aprendeste nada.”
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