sábado, 30 de outubro de 2010

Desafio XLIII - Resposta

Não sabendo que era ímpossivel, foi la e fez.
Jean Cocteau


Nasci menino e cresci rapaz. Engordaram-me, como se gordura fosse formosura, saúde ou estatuto. Inchei com doces, crenças em deuses e expectativas de família e bondade. Tudo isso era tão balofo como eu mesmo. E, por isso, ainda dava os primeiros passos fora da meninice e já tinha rapidamente desinsuflado como um balão furado. Só que a pele estica, e molda-se, e depois para voltar ao sítio é um caso sério. E por isso, menino e rapaz, secaram-me as peles ocas que ficaram badalando-me no peito. E fiz-me homem com mamas.

Mas escondi-as sempre, evitei piscinas e balneários. Quando jogava à bola, era na equipa que jogava de camisola contra a que jogava em tronco nu. Ocultei o peito do sol, e cultivei uma pele enferma. Distraí meio Mundo com a minha cabeça porque sempre achei o meu corpo uma via-rápida para o embaraço e para o riso. O problema era que, secretamente, tive sempre o desejo de ser apenas um corpo. Sempre soube que à superficie à mais conteúdo do que em profundidade, e que a cabeça é pouco mais do que fonte de vaidades. De pé em museus, por entre estátuas de gregos perfeitos, chorei.

A multidão cercou-me, aplaudindo as minhas virtudes e inteligências e pedindo mais e mais daquele encanto que para mim era máscara e para o Mundo era alma e espírito santo. A multidão aproximou-se mais e mais, fez-me correr e saltar barreiras que não coloquei a mim mesmo, fez-me julgar mais do que entender, e fazer mais do que reflectir. Não podia durar, e um dia, já homem cansado, fui exposto como uma fraude. De olhos pesarosos e simpáticos, a multidão descobriu que debaixo da camisola havia um peito masculino com mamas. Ainda assim, espantado, vi a multidão dar-me receitas. Contra as mamas, o exercício, a cirurgia, a aceitação. A aceitação de que eu sou o que sou e não o que quero ser. E o que sou define-se com mamas. Escapar-lhes é impossível.

Tornei-me pois em mamas de homem. Esqueci o jogo de enganos que alimentava, e mostrei-me como aquilo que há de humano em mim me fez. Gritei histericamente contra a multidão e afastei os seus rostos egoístas, e para os mais resistentes quebrei todos os mandamentos. Ri-me na cara dos deus e arrastei o seu nome na lama. Fiz de todos os dias um longo sábado de desemprego, e no sábado trabalhei incansavelmente. Desonrei o meu pai e a minha mãe largando-os na beira da estrada da vida e deixando-os guiarem-se sozinhos. Desonrei o meu próprio corpo com tabaco e álcool e todos os venenos que consegui fazer correr no meu sangue. Fiz da castidade uma piada, e incentivei outros a fazerem o mesmo. Menti e acusei falsamente quem por outros motivos merecia ser acusado, e roubei-lhes as mulheres que cobiçava. Mulheres essas a quem roubei tempo e dedicação mesmo não me interessando. Só não matei, mas mesmo aí estive perto. Porque suponho que matar-me a mim mesmo também conta.

E quando a multidão me cercou de novo, desta vez pasmada perante a minha vileza, munida de paus e pedras para me quebrar com justiça, arranquei todos os botões da camisa para orgulhosamente exibir às armas e aos dedos acusatórios o meu peito com mamas.

E quem diria? As mamas desapareceram.

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