“Tens que ouvir a música” Foi o que eu lhe disse. Estávamos os dois cá fora, o parque prometia um Outono que custava a sair das folhas e do cheiro das castanhas assadas.
“Ouve a música”. E foi assim que o deixei naquele jardim, de mãos dadas com a minha ausência. E as minhas costas tornaram-se num pequeno rectângulo negro recortado no quadro impressionista.
Conhecia-o há pouco tempo, tão pouco que na verdade não o conhecia. Ele foi um corpo pronto a acomodar a minha vontade de imaginar personalidades. E enquanto não fui sabendo quem ele era, ele foi sendo toda a gente.
Quando fomos àquele concerto, naquela primeira noite, estava ainda despejado sobre ele aquele perfume encantador do mistério de não se saber quem se encontrou. Como uma prenda que se guarda na mala e que ainda não se abriu.
Mas quando entrámos na sala, a primeira coisa que vi foi o piano de cauda iluminado por uma luz tépida que contrastava com o escuro dominante do público. Um piano solitário e desprotegido que aguardava que alguém o habitasse.
Foi logo ali que ele passou de ser toda a gente para ser Ele. E comecei a sentir a excitação e o desânimo alternados de começar a pegar na prenda e finalmente abri-la.
Ele olhava simultaneamente para mim e para o piano criando uma linha que me entristeceu. Como se o piano e eu tivéssemos algo em comum.
Sentei-me e ouvi a rapariga tocar. Gostei logo dela, com um amor fácil como o que cultivo pelas nuvens de trovoada. Mais tarde percebi que gostei dela porque ela habitava o piano e não o deixava sozinho.
Durante todo o concerto senti que aquela linha que ele criara se intensificava e comecei a sentir um formigueiro instável. A minha impaciência tornou-se gélida quando após as últimas palmas, a rapariga se levantou e disse que queria convidar uma pessoa do público para tocar um pouco. E imobilizei-me quando ela disse o meu nome.
Finalmente percebia a razão de tudo aquilo. Porque tudo tem um propósito e todas as prendas acabam por ser abertas.
Levantei-me e sai da sala. O coração doía-me dolorosamente e sentia o corpo a encher-se de raiva. Com passos curtos e determinados dirigi-me à saída. Lá, ele estava à minha espera como se tivesse ultrapassado o tempo. Parecia assustado e arrependido e isso só me enfureceu mais.
“Só queria que tivesses a oportunidade de tocar num piano!”
Lembro-me que olhei para ele como se fosse uma formiga, um bicho indesejável que viajara comigo preso ao meu casaco. Ele já não era toda a gente. Ele era Ele. E era Dele que eu não gostava.
“Eu não toco em pianos” e afastei-o da minha frente, para finalmente entrar na noite húmida.
No dia seguinte ele ligou-me e de todas as vezes eu desliguei o telefone, adiando-o. Todo aquele mistério que ele carregara desaparecera instantaneamente. Sem mistério, ele era só um rapaz que tentava fazer-me feliz.
Mas eu nunca seria feliz ao piano.
A professora de música da escola convencera os meus pais de que eu tinha um talento especial para a música. E com pouco mais de cinco anos as minhas tardes de terça-feira eram passadas numa sala minúscula com um piano incrustado na parede e um cheiro a mofo das pautas que eu endireitava com as minhas pequenas mãos.
Já naquela altura eu era demasiado irrequieta. Quando me sentava ao piano ficava de costas para a janela e era constantemente repreendida. A música saltava-me do coração para a vida e eu corria a recolhê-la. Porque o piano exigia-me as escalas e a rapidez das mãos enquanto a professora batia com a caneta no tampo. Já nessa altura eu dava mais atenção ao ritmo da caneta do que à melodia do piano. Dava mais atenção aos ténis do que às sabrinas. Era mais agressiva do que suave.
E quando produzia melodias no piano, sentia que era ele que estava apaixonado por mim.
Um dia deixei-o sem razão aparente. Não expliquei o meu divórcio, mas mantive-o sagrado, longe da incompreensão dos que me convenciam a voltar para aquele que diziam ser “o meu instrumento”.
Troquei-o mais tarde por uma bateria, quando a violência que eu sentia dentro de mim se tornou insuportável. E apaixonadamente, sendo eu em cada centímetro de pele, criei ritmos e solos. Aprendi pautas a quatro membros, rompi preconceitos e cansei os tornozelos numa algazarra confusa e barulhenta.
Ocasionalmente, a minha solidão espreitava-me e abanava-me a cabeça quando à noite estava à janela. “És teimosa”, dizia-me ela. “O piano foi feito para ti, é solitário como tu”.
E eu sentia saudades. De levantar a tampa preta e de conversarmos. Sentia saudades do amor que ele me dava. Que só ele me dava. Que só ele me tinha.
Porque o ritmo nunca existiu isolado. E a minha agressividade só fazia sentido enquadrada com as guitarras. Mas as guitarras nunca chegaram.
Hoje eu sei que elas nunca vão chegar. E sei que esta minha insistência em ser o ritmo de uma banda não é mais do que um profundo sonho que acalento desde pequena que é o de não estar só.
E o piano sabia.
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