sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Desafio XLIII - Resposta

Em cada cem pessoas:
Sabendo tudo mais que os outros:
⁃ cinquenta e duas,
inseguras de cada passo:
⁃ quase todas as outras,
prontas a ajudar desde que isso não lhes tome muito tempo:
⁃ quarenta e nove, o que já não é mau,
sempre boas porque incapazes de ser outro modo:
⁃ quatro; enfim, talvez cinco,
prontas a admirar sem inveja:
⁃ dezoito,
induzidas em erro por uma juventude, afinal tão efémera:
⁃ mais ou menos sessenta,
com quem não se brinca:
⁃ quarenta e quatro,
vivendo sempre angustiadas em relação a alguém ou a qualquer coisa:
⁃ setenta e sete,
dotadas para serem felizes:
⁃ no máximo vinte e tal,
inofensivas quando sozinhas, mas selvagens quando em multidão:
⁃ isso, o melhor é não tentar saber mesmo aproximadamente,
prudentes depois do mal estar feito:
⁃ não mais do que antes,
não pedindo nada da vida excepto coisas:
⁃ trinta, mas preferia estar enganado,
encurvadas, sofridas, sem um lanterna que lhes ilumine as trevas:
⁃ mais tarde ou mais cedo, oitenta e três,
justas:
⁃ pelo menos trinta e cinco, o que já não é mau,
mas se a isso juntarmos o esforço de compreender:
⁃ três,
dignas de compaixão:
⁃ noventa e nove,
mortais:
⁃ cem por cento, número que, de momento, não é possível mudar.
(Wislawa Szymborska)



O meu irmão nasceu grande demais. A minha mãe deu por si na casa de banho a impedi-lo de nascer, ou pelo menos a atrasá-lo entre as dores atrozes que sentia como fios de facas nas pernas.
O resultado foi uma massa disforme e uma mulher pequena esvaída em sangue, distribuídos pelos azulejos brancos.

Como um pronuncio de tragédia atravessada pelas vidas, o meu irmão foi sempre grande demais para os sítios e carregava com ele um inevitável coro de desgraças. Tudo nele cheirava a uma tragédia eminente, como se estivesse marcado com tatuagens ancestrais, anteriores a Deus, que o condenavam a uma desgraça de vida, pior do que a morte.

E era tudo tão paradoxalmente triste, que quando ele sorria eu fixava as covinhas que lhe apareciam nas pontas das suas bochechas. Porque era de mim que ele gostava mais do que tudo.
Em pequenos, fomos estrategicamente separados e nunca andamos sequer na mesma escola. E enquanto eu era aparentemente calma, o meu irmão atravessava o seu corpo desgraçado pela vida e voltava todos os dias com problemas para os meus pais. Era demasiado influenciável e desinteressado. Era demasiado. Sempre.
Mas não comigo.
Era como se eu fosse a única coisa viva da vida dele.

Um dia os meus pais descobriram que ele se drogava, era pouco mais do que um adolescente.
Fiquei fechada no meu quarto, com a cabeça encostada à porta, enquanto eles gritavam com ele e lhe chamavam inútil apesar do tamanho que tinha, como se pelo facto de ele ser assim tão grande devesse mais à Humanidade.
As minhas mãos tremiam agarradas à porta e conseguia sentir as lágrimas invisíveis que lhe saltavam dos olhos. Conseguia ver o rosto lavado daquela tristeza tão entranhada que nenhum dos meus pais, entalados numa vida comum conseguiam descortinar.

Depois desse dia fecharam-no em casa e proibiram-no de se encontrar com os seus amigos, cientes de que eram as más influências que lhe traziam a droga. Sem nunca entenderem que a drogar estava ali em casa e que eram eles que lha davam, quando estipulavam horas para ele ler e ver televisão, acabaram por condená-lo à morte.
E não que ele se tenha resignado. Um dia quando cheguei da escola, ele tinha aberto as janelas e espalhava música para um quintal de prédios todos iguais a não perder de vista da sua prisão.
Porque o meu irmão não era deste mundo. Era grande demais.

No dia em que entrei na faculdade e me preparava para deixar a minha casa, os meus pais foram buscá-lo à rua onde passara mais uma noite, enroscado nas mantas esburacadas que o aqueciam. Ele entrou no meu quarto, afastou a mala meio desfeita e sentou-se no meio da minha cama a observar o tecto onde eu tinha colado o sistema solar fluorescente que brilhava no escuro.
Eu queria dizer-lhe que sabia exactamente o que ele sentia, mas não disse nada. Entre nós a vida sempre fora silenciosamente simples.
Então de repente, beijei-o. Os seus olhos encontraram os meus e não houve nenhum laivo de surpresa. Passamos a noite debaixo dum céu estrelado.
Afinal, a drogada era eu.

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