terça-feira, 2 de março de 2010

Desafio X - Resposta

Lucy. A simplicidade de um nome inglês suspirado num trago. Sem interrupções, sem pausas nem descanso. Lucy, e a sua mão agitando-se ao mesmo tempo dos ombros, palma acima e palma abaixo, dançando como uma onda ao ritmo das luzes e dos sons descontrolados e chiado por uma má aparelhagem. Lucy dançando, Lucy cantando. Habituei-me a ler nos lábios dela o que a música alta não deixa ouvir. Ela só me aparece entre muitos, quando alguma banda vinha à cidade ou quando éramos nós a descer à cidade à sexta-feira à noite. Habituei-me a escutá-la por entre o barulho, a saciar-me com os gestos, com o cabelo solto comprido a oscilar, com um toque no ombro e um sorriso que dizia "trás-me mais uma bebida". Lucy. A simplicidade de um sonho de algum dia a sua voz ser a única onda a escutar.

Ela saltou do nosso grupo de amigos para a minha vida numa despedia de solteiro. No jantar não éramos muitos, uns dez talvez. Dez, como as horas em que saímos precocemente do restaurante. Chegámos ao clube de strip ainda nem eram onze. Onze, e chegou ela. Com a sua camisola de Verão de mangas largas, uma t-shirt de alças por cima, e calças à boca de sino. A minha Lucy fora de sítio, fora do contexto, fora da década. Imaginei aqueles cabelos lisos ondulando no pó de Woodstock, de olhar saltitante, apressado enquanto muda o semblante onde se fixa brevemente, como um pardal pulando de ramo em ramo. Imagino-a sempre como naquela primeira noite. A única mulher entre homens, dez, eu um deles. Eu, de longe. Eu, observando dolorosamente enquanto ela ri, enquanto ela se senta ao colo de um, enquanto coloca uma perna em cima de outro. O corpo, ela usava-o com as strippers que dançavam, parecia que muito longe. O corpo dela era permitido até certo ponto. A fronteira do privado estava demasiado adiantada. Entendi naquele banco de clube, enquanto outra má aparelhagem incitava uma mulher a despir-se, que a minha Lucy nunca seria só minha.

A minha Lucy sentada na estrada à porta do clube, com cinco ou seis resistentes que ainda esperavam quebrar essa fronteira do permitido. Música! Onde quer que esteja a Lucy, há música. Alguém ligou um rádio de um carro. Uma outra má aparelhagem ainda quebra a noite em mil estilhaços que ao cair cobrem a voz de Lucy. Lucy, de mãos viajantes entre as costas de um e o cabelo de outro. Lucy, sempre dando-se e retraindo-se ao mesmo tempo, sempre agitando-se, sempre amante da música.

Apoderei-me do banco do condutor do carro, e mudei a rádio. Alguém por entre as colunas traseiras, vibrando desde o porta-bagagens aberto, cantava

"Lucy in the sky with diamonds".

Lucy deitada no banco de trás do carro. Pela primeira vez. De cabeça encostada no banco, de pernas semi-flectidas apoiadas no vidro do outro lado, olhava pelo pouco que o vidro da frente a deixava descobrir do céu, e sorria. Mexia os lábios, mas eu não a escutava. Ainda não os sabia ler. E as colunas vibravam furiosamente, repetiam freneticamente

"Lucy in the sky with diamonds".

E ela apontou para o céu. Apontou para uma estrela, a única forte o suficiente para rasgar a poluição luminosa da cidade e a sujidade do vidro, e chegar até nós. Quem me dera tê-la ouvido só daquela vez, só falando sobre aquela estrela. Quem me dera que este momento fosse uma fotografia legendada. Apaixonei-me e entristeci-me ao mesmo tempo. E ela foi embora.

O casamento a que fomos, esse, já acabou há muito tempo. Mas a nossa estrela sobreviveu-lhe. A Lucy continua a ser a legenda para o diamante no meu céu. E nele guardo a vontade de um dia vir a ser a única estrela no céu dela.

E apesar de não lhe conhecer a voz, de nem lhe conhecer o nome, sei que ela será para sempre a minha Lucy.

"Lucy in the sky with diamonds".

1 comentário:

  1. Confesso que apesar de gostar deste poema há alguns anos nunca me debrucei sobre ele o suficiente. Quando o leio foco-me nos sentimentos que me transmite.

    E tu conseguiste que eu ao ler o teu texto tivesse sentimentos muito parecidos. Por um lado, uma felicidade frenetica e suave propria de quem se apaixona mas nao sabe nem "porque" nem "para que" (como tipico de amor que é). E depois a tristeza da falta de nexo, a tristeza de um apego a algo quase errado. A um pormenor, brilhante como um diamante, que mais ninguem viu.

    Sinceramente, adorei-o! Estiveste ao nivel da minha expectativa

    Acho que é um dos melhores textos que já li teu!=)

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