segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Desafio IX - Resposta

"All things taken into account, I would have done the same thing to you." Após as cláusulas, as alíneas e os números, a minuta do contrato está sempre preparada com uma frase final a ser assinada. Em inglês, língua oficial dos contratos da empresa. É um encerrar do assunto, um reconhecimento de irreversibilidade, uma vitória na guerra e não apenas numa batalha; é o Z de Zorro, é a letra escarlate, é a cicatriz de uma cesariana. Um após outro, todos caíram, todos lá vão parar, todos terminam no reconhecimento rebaixante de que o Mundo dos negócios é uma selva onde todos se movem pelas mesmas leis e pelos mesmos objectivos. E que ele, aquele que compra, é o vencedor. Sem desculpas. Sem "ah, o meu objectivo era outro", ou "ah, na verdade estava farto da minha empresa". Não. O vendedor perde a dobrar, porque admite que só perdeu porque não conseguiu ganhar. "All things taken into account, I would have done the same thing to you." Alguém que não está a jogar um jogo onde se envolve, alguém que não está interessado em vencer, não assina por baixo disto.

O último, esse foi mais difícil de dobrar. Uma empresa pequenina de um tipo novo, mas um brilhante fabricante de aparelhos para imagiologia, com 70% do mercado. E nenhum império da electrónica está completo se não dominar nas máquinas de ressonância magnética, de tomologia de emissão de positrões, de radiografia por raios x. "É o domínio absoluto no negócio da saúde", disse ele, triunfante, enquanto presidente do conselho de administração, durante a reunião de accionistas. "É o sector onde nos falta dominar." Mas o outro tipo não queria vender. Dizia que aquele era o negócio da vida do pai, falecido de ataque cardíaco no ano anterior. Uma doença não diagnosticada. Mas ele não tinha chegado ao topo da empresa se não tivesse astúcia suficiente para vencer um miúdo. E, como sempre nestas alturas, ignorou a sua esposa para se fechar durante noites ininterruptas no escritório a investigar. Remexeu no passado; falou com amigos, com colegas, com ex-namoradas. "É assim que nos mantemos acima da concorrência", dizia sempre, "conhecendo os seus defeitos, e destruíndo-os onde pudermos." Os competidores mais vaidosos, destróem-se com notícias de jornal; os mulherengos, com chantagem; os viciados no jogo, com batota; e os invencíveis, os poucos que não têm podres, nunca se chegam a desafiar. Quando não se pode ganhar, não se luta. Naquele caso, a estratégia tinha que ser diferente. O miúdo era um sonhador. Esse era o seu podre. Então, uma noite, convidou-o para jantar.

Depois do jantar, animado pela fluência de um conhaque caro, o miúdo contou, envergonhado as suas ideias loucas sobre máquinas espantosas. "Imagine só o senhor! No nosso sangue há tanto ferro que nós acabamos por morrer de ferrugem. Só que está muito espalhado. Agora imagine se conseguíssemos inventar um íman gigante que apanhasse o ferro todo do nosso corpo... Já estou a ver, pessoas coladas magneticamente em placas verticais que andavam pela cidade a toda a velocidade! Acabavam-se os carros, acabavam-se os acidentes de automóvel." A sua esposa estava encantada, ria como se fosse alguma coisa de especial. O idiota, herdou um negócio de milhões que mantinha para poder esbanjar o lucro a investigar um autocarro de velcro.

E no dia em que lhe fez a proposta para a aquisição, a partir do 20º andar do seu escritório envidraçado com vista para a Praça de Espanha, acrescentou uma pequena variação que fez o miúdo aceitar tudo o que até então recusara. Ofereceu-lhe um financiamento de milhões e um contrato a cinco anos como investigador numa universidade de Londres. Poderia trabalhar no seu íman de autocarros, ou lá o que era. "Mas assino já o contrato e transferem o dinheiro já hoje?" Deus, quanta pressa por ver lá o dinheiro e ter a situação dele segura. "Sim, agora mesmo antes até da venda." E o miúdo portou-se como um miúdo. Aceitou a proposta, assinou na linha infame que dizia "all things taken into account, I would have done the same thing to you", e ainda o abraçou emocionado. "Obrigado, obrigado por esta oportunidade magnífica." O idiota.

Passara-se uma semana, e ainda em regozijo pelo triunfo e pelo louvor na reunião de acionistas que entretanto decorrera, passava horas de mãos nos bolsos das calças olhando pela janela envidraçada do 20º andar. Olhava o trânsito, e as pessoas que cá em baixo se movimentavam a espaços entre semáforos pareciam-lhe não ter segredos. Ele era o derradeiro equipamento de imagiologia. Ele era capaz de descobrir em toda a gente os interruptores certos. Sentia-se na proa de um navio. Sentia-se invencível. E recebeu uma mensagem escrita. Abriu o telemóvel num gesto só, e depois de ler deixou-o cair. "Se tivesses desconfiado que tinhas um rival, tinhas-lhe dado a volta, a ele e a mim. E eu nunca me escaparia desta jaula de casamento onde me prendeste. Mas como não pressentiste um inimigo, desleixaste-te. Por isso adeus. Vou para Londres. E não aches que eu sou má pessoa. All things taken into account, you would have done the same thing to me."

O idiota. Afinal ele não stava a competir nos negócios. Afinal ele estava a competir... pela mulher.

3 comentários:

  1. Sem dúvida que a melhor forma de competir com alguém, é fazê-lo entrar na competição errada, como num belo truque de ilusionismo.

    =)

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  2. Bem, mas que história!! Isto até dava uma curta :D

    Epá, que imaginação! Adorei :D

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  3. Muito obrigado a ambos! :)

    Tiago: é engraçado que fales nisso. Imaginei a história dessa maneira mesmo. Como se fosse uma curta.

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