domingo, 21 de fevereiro de 2010

Desafio IX - Resposta

"Fairy tales are more than true.
Not because they tell us that dragons exist.
But because they tell us that dragons can be beaten."
Coraline e a Porta Secreta - Neil Gaiman

O João corria que nem louco naquele sábado. Era o seu dia de anos, e mesmo o dia que ameaçava chuva não podia ser mais bonito, com os seus ténis novos, a camisola de lã da avó e os seus três livros novos. O João era apenas mais uma criança, com os mesmos gostos e as mesmas diversões das outras crianças. Habitualmente era mais calmo e recatado, mas não naquele sábado.

O jardim era pequeno. Era apenas um pouco de verde, uns bancos, um café, tudo rodeado por prédios a toda a volta. Era um jardim pequeno, com poucas árvores, ideal para os pais que não se queriam cansar demais e que de certeza não perderiam os filhos de vista. E que descanso era para os pais de João, que corria que nem doido, umas vezes perto dos pais, outras longe.

Perdendo o filho momentaneamente de vista, foram encontrá-lo de novo sentado ao lado de uma criança, com quem partilhava um dos livros que lhe tinha oferecido. João ainda não sabia ler, mas desfolhava com a criança o livro. E falava com ela, e ambas riam. A outra criança ria também, e esbracejava. Os pais do João continuaram a sua conversa, com um olho um no outro, e outro no João. Depois João correu até eles. Pegou em mais um livro, e disse rapidamente “vou ler outra história”, enquanto corria de volta para a criança. Ambos sorriram. O importante era que se divertisse no seu dia de anos.

Depois chegou outra pessoa, que se aproximou do banco. Olhou para as crianças, com um sorriso vago nos lábios. Depois interpelou, a medo, o casal.

- “Desculpem incomodar, mas… é o vosso filho?”

- “Sim, é. Porque pergunta?”

- “O Ricardo é o meu filho… a criança com quem o vosso filho está a brincar.”

- “Pelos vistos estão muito divertidos a ver aquele conto de fadas. Oferecemos-lhe o livro agora porque ele vai entrar para a escola e convém começar a ter livrinhos para ler, mas ele já sabe a história de cor, é bem capaz de o contar todo só com as imagens.”

- “Pois, mas… sabem, o… o Ricardo, o meu filho… ele é surdo.”

Uma onda de vergonha passou pelos pais de João. “Esbracejar”, que absurdo! Podiam ter compreendido mais cedo.

- “Desculpe, o João não faz por mal…”

- “Desculpar? Claro que não, é óptimo para o Ricardo arranjar amigos…nem sempre é fácil, as crianças acabam por não gostar muito de brincar com ele.”

- “O João adora histórias, é só ter quem lhe dê atenção para as poder partilhar…”

E depois João voltou, buscar outro livro.

- “João, estás-te a divertir?”

- “Sim, estou a ler as histórias para aquele menino. Ele gosta muito.”

- “João… tu sabes que o menino não te consegue ouvir?”

- “Não faz mal mãe. Eu também não sei ler. E a história também é só a brincar.”

Um grave silêncio apoderou-se daquele banco de jardim, conforme João se afastou e se sentou ao lado da outra criança, e de novo retomou história do livro. Tantos adultos, e foi precisa uma criança para lhes ensinar a maior lição de todas: o que interessa não é se os monstros existem ou não, o que interessa é que todos os monstros podem ser vencidos.

3 comentários:

  1. Eu achei o teu texto absolutamente maravilhoso.
    A humanidade que conseguiste dar-lhe é quase arrepiante!

    E apesar de nao ter exactamente esta interpretaçao da citação, acho que a aproveitaste mesmo muito bem!

    Gostei muito =)

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  2. Ooooh, obrigado :)

    Sabes que o meu problema foi que a citação é de tal forma completa e poderosa para mim, que eu andei às voltas e às voltas sem conseguir pegar directamente nela. Então acabei por me desviar um bocado, a ver se colava melhor :$

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  3. Eu adorei o teu texto

    A ideia escondida da frase é essa mesmo: uma história não é verdade e perpectua pequenas mentiras que contam a únicam verdade que interessa, ainda que seja mentira.

    =)

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