segunda-feira, 19 de abril de 2010

Desafio XVII - Resposta

Ofereceram-me algumas folhas e uma alguns lápis de cor, e pediram-me que desenhasse o Mundo como ele deveria ser. E fiz como toda a gente faria. Usei o lápis verde até o gastar. Pintei árvores e plantas, ao longe e ao perto, em planaltos suaves e em escarpas de montanhas inacessíveis. Plantei no desenho fileiras de choupos e salgueiros, tanto quanto alguma espécie específica se deixa desenhar com os meus rabiscos, e por entre elas pintei riachos correndo calmos, da mesma cor azul que usei no céu. Nem por um momento a minha imaginação se lembrou que riachos tingidos de azul é coisa que nunca se viu. Só que este não é o Mundo como ele é. É o Mundo como ele deveria ser.

Àquele ideal de Natureza intocada faltava ainda vida animal. Então, dei-lhe todos os animais que consegui representar. Os cães, as ovelhas, e as cobras – que são as mais fáceis de todas. E depois achei-me infantil. Então isto era para ser o Mundo como ele deveria ser, e não há pessoas? Rasguei a folha e comecei de novo.

Deixei-me de parvoíces naturalistas. Não vale a pena desenhar paraísos sem o Homem. E portanto, desenhei o paraíso do Homem. Uma longa extensão amarela ponteada e um azul sem fim, com uma escarpa acastanhada de rocha nua ao fundo, sem vegetação, porque já tinha gasto o verde, uma cadeira e um chapéu de praia, et voilá!, o paraíso. E depois achei-me fútil. Então para mim a perfeição é não fazer nada, e o Mundo devia ser só ócio? Apertei a folha entre as mãos até fazer uma bola e projectei-a para longe.

Comecei de novo. Pensei bem – o que se pode querer de um Mundo como ele deveria ser? Talvez paz, amor, harmonia, solidariedade, caridade, e todas as outras coisas com que se alimentam as candidatas em concursos de beleza. Sem divisões e querelas mesquinhas. Sem lutas, sem desentendimentos, sem paixões por deuses, nações ou outras crenças menores. Mas como se desenha isso? Cheguei à conclusão que desenhar isso é o mesmo que não desenhar coisa nenhuma. E risquei, risquei o papel com todas as cores, ou restos de lápis quase gastos, tornei-o tão complexo quanto possível. O Mundo é assim, um encontro de rumos distintos, contrários, tocando-se e logo se desligando. Este é o Mundo dos humanos. No verso da folha está o contrário disso, está o Mundo como ele deveria ser: uma folha em branco. E aí achei-me demasiado radical. Então um Mundo sem conflito é um Mundo vazio? Bom, mesmo assim vou guardar esta folha para o futuro.

Não pode haver Mundo sem vida, e vida é também humana. E quando metemos o factor humano na grande máquina de fabricar Mundos, metemos os seus gostos, os seus medos, as suas aspirações, as suas fábulas. Sejam essas fábulas coisas menores como os deuses e os países, ou maiores, como a arte e o amor. E achamos realmente que podemos apartar o que é mau e ficar com o que é bom, sem entender que a vida bem vivida é aquela que tira partido de todas as faces, negras e claras, dos nossos dias. E aí achei-me finalmente inspirado. Então o Mundo melhor tem que ser aborrecido? Peguei na última folha, e desenhei a vermelho. Era o lápis que me restava.

Representei um carro transparente numa estrada que se bifurcava mais à frente em duas estradas concorrentes – uma à esquerda, outra à direita. No meio da bifurcação, coloquei uma parede de tijolo. O carro deslocava-se a grande velocidade, como mostravam os tracinhos concêntricos que coloquei na zona atrás da retaguarda do carro. Dentro, iam cinco pessoas também genéricas, que desenhei com simples figuras de cinco linhas, um tronco, duas pernas e dois braços, e uma bola como cabeça. Quebrando a sua aparente igualdade, cada uma das pessoas era dona de balões de diálogo, como na banda desenhada.

O condutor, identificado pelos braços no volante, dizia “E agora, para onde viro?”
O passageiro ao lado, com os braços para o ar e sem cinto de segurança, dizia “Dá-me o volante, eu é que devia estar a conduzir!”
O passageiro da esquerda do banco de trás olhava pela janela e dizia “Estes campos aqui à esquerda são tão bonitos, como é perfeito este lugar.”
O passageiro do centro do banco de trás olhava em frente com os braços na cabeça e dizia “Estamos perdidos, vamos todos morrer.”
O passageiro da direita do banco de trás dizia “Direita, vira à direita.”

Nesta vida haverá sempre aqueles que conduzem, aqueles que querem conduzir, e aqueles que viajam no banco de trás. Mas já que o que me pediram foi para desenhar o Mundo como ele deveria ser, coloquei riscos por cima dos balões de toda a gente. E usando o bocadinho de lápis que me restava, coloquei um grande balão que os quatro ocupantes gritavam, em maiúsculas, ao condutor do carro que seguia em frente, como que recusando qualquer um dos dois caminhos fáceis e tão trilhados já:

“Mais depressa!”

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