Fale-me dessa pessoa.
É um tipo engraçado. A sério que é. Sabias que quando era novo deram com ele a afogar-se na Arrábida, a dizer que estava a tentar chegar a Tróia? É que ele faz-me rir só de pensar naquela figura escanzelada, aquele cabelo seboso, sempre tão porco. É cómico a andar, a falar, a mexer-se, naquele tique nervoso que apanhou na vista quando troca os olhos enquanto fala. Sabias que quando era miúdo apanharam-no a comer cimento? Dizia que era para ficar forte como as casas. Se calhar por isso é que não conseguiu nadar até Tróia. É um fartote, digo-te.
Quando o conheceu?
Conheço-o desde pequenino. Conheço-lhe a família toda. A mãe era uma professora solteirona, tinha um cabelo muito curtinho, uns óculos de velhota presos por um fio ao pescoço, e andava sempre de camisolas de rapaz com padrão de losangos. Os miúdos chamavam-lhe Maria-Homem. Era professora do secundário. Falava como se soubesse tudo, e estava sempre com dores. Dizia com ar grave “meninos, por favor falai baixo que me dói a cabeça”, mas sempre no mesmo tom e sem se mexer. Um dia, a Maria-Homem arranjou um homem, um velhote que tinha um café lá na rua e que foi morar com ela. Ela já tinha uns quarenta anos. Quase não criou barriga, mas nove meses depois de irem morar juntos, o miúdo cá apareceu. As más línguas diziam que era adoptado. Bom, se me perguntares, eu acho que o que aconteceu foi que os espermatozóides do velho lá deram com um último óvulo esquecido que ainda funcionava naquela mulher.
Como era a relação dele com os pais?
Ui, aquilo foi um inferno. A Maria-Homem vestia-o com as mesmas camisolas dela. Andava de calções, até no Inverno, e com uns sapatinhos pretos envernizados que já naquela altura eram maricas. E estava sempre a tentar ensinar-lhe tudo, em todo o lado. Chamava-lhe a atenção para coisas que ele não queria saber. E arranjava uma dor num sítio diferente do corpo, que metia pelo meio de duas frases mal construídas no jornal. “Querido, veja esta, e nunca se esqueça que o ‘a’ de haver é com ‘h’. Agora vá ali buscar aquela almofada que a mãe está com picadas nos pés.” Ele lá dentro daquela cabeça não conseguia perceber se ela sabia tudo ou se não sabia nada. Não conseguia varrer aquele lixo todo da cabeça. Para ele, errar começou a ser como estar doente. E, como errava muito, achava-se uma criatura muito fraca. Se calhar é por isso que comeu cimento.
Errava? Como assim?
Errava, fazia coisas mal, não conseguia resolver exercícios na escola, nem escrever direito como os outros meninos. Não entendia as brincadeiras. Estava muito atrasado no desenvolvimento.
E como foi a adolescência dele?
A adolescência foi uma luta com a mãe. Sabias que a mãe queria que ele fosse médico? E ele até tinha jeito, gostava de ciências e tal. Mas aquilo de crescer foi complicado para ele. Fartou-se da mãe e começou a dar erros de português de propósito. Tirava negativas porque os professores nem conseguiam ler o que ele escrevia. E como ela dava aulas na escola onde ele andava, e ainda por cima foi professora dele, imagina. Sabias que ela mesma teve que o chumbar a Português? Aquilo custou-lhe que se fartou. Até meteu dó aos outros miúdos ver a cara dela na última aula a dizer-lhe a nota. Sete valores, redondos. E ele, nas suas sete quintas. Até sorriu e tudo. Era danado, aquele tipo.
E o pai? O que pensava o pai de tudo isso?
O pai mal falava. Estava lá, ouvia a mãe e nem reagia. Ia buscar-lhes os medicamentos e as almofadas e abanava a cabeça quando ela lhe mostrava o jornal e dizia “já viste isto?, francamente, é de revoltar qualquer um”. Fazia-lhe festas na cabeça quando era criança, e depois nem isso. Mas ele não se importava. Ele sempre viu o pai como uma espécie de avô. Bisavô, talvez. Distante, mas dali também não vinha mal nenhum. E a Maria-Homem fazia na boa de mãe e de pai. É engraçado, porque anos depois de sair de casa, o pai tornou-se o melhor amigo e companheiro dele.
Disse antes que ele começou a dar erros, e a achar-se fraco por isso. E então dava erros de propósito. Mas quando é que ele começou a partir para a delinquência?
Quando não conseguiu entrar na universidade. Nem depois de três anos a tentar. Quer dizer, ele dizia que tentava, mas nem ia aos exames. Aquilo era um desgosto desgraçado para a Maria-Homem. Só lhe perguntava, “e agora, o que vais fazer da vida?”, e ele só sorria. Deve ter sido um desgosto maior ainda quando ele fugiu de casa. Quer dizer, ele era adulto, aquilo foi só sair de casa. Só que não avisou. E na cabeça dele, foi fugir. Aquilo era um sujeito engraçado. Sabias que ele um dia foi a Tires com uma arma e roubou um avião com um piloto? Obrigou-o a levantar. E depois lá em cima atirou-se de pára-quedas. O sacana tinha piada. E ele achava piada a essas coisas.
E depois disso, rapidamente arranjou um belo cadastro. Assaltos à mão armada, tráfico internacional de droga, já para não falar no consumo. E talvez não tivesse sido apanhado nessa vez do pára-quedas, mas nas outras todas foi sempre. Em Tróia, tentou fugir a nado à Polícia, que, diga-se, ia numa lancha; em Tires, tentou saltar de pára-quedas com uma mochila cheia de cocaína, sendo que o piloto avisou a polícia que estava à espera dele mal tocou no solo. E isto para não falar nas aventuras em aeroportos na Colômbia.
Sim, e então? Achas mal?
A sociedade acha mal. Você não o condena?
Nem um pouco. Ele divertiu-se à grande. Para quê ser como essas pessoas que querem fazer tudo certo e são tão doentes como quem erra? Um nojo essa gente calada que chega ao fim da vida e sente que a desperdiçou. Eu acho que ele sabotou a própria vida, sim. Mas só a parte da vida que é normal, como a de toda a gente. E fez muito bem. Olha, ele viajou, ele andou por toda a parte, viu o Mundo inteiro. Teve dinheiro, teve mulheres. Teve tudo o que as outras pessoas passam a vida a querer. De vez em quando era apanhado quase de propósito, mas a vida na cadeira era bem relaxada. E as penas pequenas. Afinal, ele não matou ninguém. Se queres que te diga a verdade, até acho que ele algumas vezes foi cumprir tempo na vez de alguém. Ele gostava de relaxar lá. Tem o pai, que o vai visitar, e que conversa um pouco com ele, e que lhe diz que vai ficar tudo bem. E fica.
Mas deve ser difícil para ele viver com a culpa. A culpa de estar a cometer crimes, a culpa de errar e ser apanhado. Às vezes, ele ainda deve querer... comer cimento, para ficar mais forte. Não acha?
Ora, isso de momentos de dúvida todos temos. O pai está lá para isso mesmo. Para lhe mostrar que se tivesse seguido uma vida normal, casado com uma Maria-Homem qualquer, estaria bem pior do que preso. O pai tem muito orgulho nele.
(...)
Que aconteceu?
Oh... Desculpe, emocionei-me. O pai é o melhor.
Oh, meu querido filho. Não penses nisso. Todos os pais querem o melhor para os seus filhos. E eu só quero que tu tenhas tudo de bom. Tudo o que eu não tive.
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