“A melhor coisa que há ao fumar é o próprio acto em si. O sentir o fumo quando inspiramos e ele chega bem aos pulmões, e como que queima por dentro. E depois ficar levemente tonto e ao mesmo tempo alerta para as mais pequenas coisas. Parece que sentimos o sangue a fluir nas veias, não acham? E depois olhar para os padrões que o fumo faz enquanto sobre. É lindo. Pelo menos para mim é assim.”
“Isso é para ti que não estás habituado a fumar. Vais ver que isso passa depressa. Eh pá, és mesmo um menino!”
E à volta da mesa todos se riram. De repente fiquei foi sem vontade de acabar o cigarro. Mesmo estando só a meio, apaguei-o de repente. Foi um gesto algo ridículo, um quanto exagerado ou melodramático. Mas não faz mal, não tem problema. Ninguém nem sequer reparou. Porque quando ele está presente, é como se eu fosse transparente. Sou o melhor amigo transparente.
“Pessoal, tenho uma sugestão. Há ali na zona de Arroios um hospital, ou lá o que é aquilo, que está abandonado. Era fixe levarmos uns sacos-cama, eu levo a guitarra, mais umas velas, e passávamos lá uma noite. Que acham?”
“Mas esse sítio não está cheio de drogados? Isso não é perigoso?”
Não vale a pena. Nem sequer me escutam.
“Que fixe! Boa ideia.”
Conheço-o desde que éramos ambos miúdos, e ele sempre foi assim. Tínhamos seis anos e ele já tinha os melhores brinquedos. Depois crescemos, e dos melhores brinquedos ele passou para as melhores consolas de jogos. Foi o primeiro a ter computador. Isso, e todas aquelas coisas que importam quando se é novo e não se tem responsabilidades. Todas aquelas coisas que fazem de um rapaz melhor que os outros. Foi o primeiro a descobrir as mulheres, o primeiro a conseguir uma mulher, o primeiro a partir o coração a uma rapariga da turma. Exactamente aquela de quem eu gostava. Olhava-me nos olhos e beijava-a à minha frente. Mas não faz mal, não tem problema. Ela nem era assim tão importante.
Um dia decidiu que devíamos ir a um café pedir uma cerveja, beber e fugir a correr. Tínhamos doze anos. Fomos, pedimos, e serviram-nos a bebida, porque ele é assim, quando ele quer alguma coisa parece que os outros ficam encantados. Ele toca a sua música, as serpentes dançam, e ele consegue sempre o que quer. Mas depois, na hora do fugir, nem me avisou, nem me tocou no ombro, nem me gritou “corre”. Esquivo como o fumo de um cigarro, simplesmente correu. Então eu fiquei e paguei. Mas não faz mal, não tem problema. Por algum motivo ele engraçou comigo. E eu acompanhei-o em todas as aventuras parvas. E apesar de eu ser a rede enquanto ele brilhava no trapézio lá em cima, sentia-me um bocadinho maior por causa disso. Pelo menos, não era eu o público que aplaudia.
Depois veio a universidade, e era como se fosse um universo criado à medida dele. Estava a léguas de toda a gente. Exibia-se e pavoneava-se, passeava-se de mota, no seu blusão impecavelmente podre, gasto, um manto onde projectava a imagem de gente grande e vivida. E nunca, em nenhum momento, eu deixei de o acompanhar quando faltava às aulas para ficar no bar a fazer planos loucos e irrealizáveis, a contar histórias com um nível demasiado elevado de distorção. E o que mais me confundia era que aquele tipo, ao mesmo tempo, era o melhor aluno da turma. Mas não faz mal, não tem problema. Eu também não me saía nada mal. Enquanto ele vivia à grande, eu ia crescendo aos bocados.
Naquela noite, eu recordava tudo isto enquanto as cervejas continuavam a vir para a mesa. Periodicamente buscava no relógio a esperança numa desculpa para sair daquele lugar. Finalmente, chegou a uma da manhã, hora de fecho do café. A música de fundo parou, convidando-nos a pagar e a sair. Mas não faz mal, não tem problema. A hora não poderia ter chegado mais cedo para mim.
“Aguenta aí um pouco, preciso de falar contigo. Podes vir a minha casa?”
Conseguia cheirar o álcool na voz arrastada. Dificilmente me escaparia a uma das conversas sonsas, das declarações ocas de amizade, arrastadas pela bebedeira, que periodicamente me fazia. E dizia-me como eu era o único amigo verdadeiro que ele tinha, e dizia-me que as pessoas são todas podres, que odeia como lhe prestam vassalagem, que ele não quer ser nenhum James Dean. E eu digo-lhe que é na boa, que não faz mal, não tem problema. Digo-lhe para ser apenas honesto, para deixar a sinceridade falar mais alto, para recriar a imagem que têm dele e ser livre dessa forma. E ele diz-me que eu não entendo, mas que talvez um dia tenha coragem para ser sincero. E esse dia acabou por ser aquela noite.
“Escuta, eu sei que te trato um bocado mal. Hoje na história do tabaco excedi-me. Desculpa. Tu és a única pessoa com quem eu consigo ser eu mesmo. Desculpa se abuso de ti.”
“Não faz mal, não tem problema.”
“Tem problema sim. Tu não sabes como é a minha vida. Eu não sou o que ninguém pensa. E sinto-me cada vez pior.”
Tirou a t-shirt preta que vestia à minha frente, ali, no quarto dele. Depois, tirou as calças. E por algum motivo, veio-me à cabeça a imagem de S. Sebastião, tão louro como aquele rapaz na minha frente, tão despido, tão desprotegido, tão mutilado. No lugar onde as flechas atravessavam o corpo do santo, este santo à minha frente tinha cortes profundos na pele, cobertos por pensos minúsculos, ensanguentados. As flechas que o atingiram foram atiradas por si mesmo.
“Ridículo, não é? Pareço uma miúda adolescente. Mas eu... Eu tento, eu tento levar uma vida normal. E até consigo. Mas depois à noite, sozinho neste quarto, com a pressão dos meus pais, com os outros lá fora sempre à espera que eu seja uma espécie de guru... Eu não aguento.”
“Não faz mal, não tem problema.”
Mas a minha voz e o meu engolir em seco não conseguiam esconder o meu julgamento.
“Eh pá... eu amo-te.”
E depois de o dizer baixou a cabeça, e eu imaginei tão forte como o real, que aquele era S. Sebastião que finalmente caía morto. Afinal a flecha fatal tinha sido minha.
E, desta vez, fui eu a fugir. Tão esquivo como ele quando corríamos juntos pela cidade, quando fugíamos das cabinas onde telefonavamos para casa das pessoas a dizer que o marido ou a mulher de quem atendia estava preso, quando fugíamos da escola por entre as grades para ir experimentar alguma bebida alcoólica em casa dos meus pais, quando jogavamos à bola. Nessas alturas ele era sempre mais rápido, chegava sempre mais longe mais depressa. Só naquela noite, cheguei mais depressa à porta do que ele conseguiu levantar o olhar. O click da fechadura atrás de mim não conseguiu esconder um soluço. E o choro. Amigo, lamento ter deixado de ser a tua rede.
Mas não faz mal, não tem problema. No fundo, era disso que ele andava à procura. Ele era um deus maltratando-se a si mesmo, à espera de ser expulso do Olimpo. Aquela noite, da minha humilhação e fuga transformada em vitória, foi a noite em que entendi que aquilo que nos faz mal, mais do que os problemas, é o excesso de vitórias. Os problemas são como barreiras que se saltam, cervejas roubadas que se pagam, são precalços com os quais crescemos. O que nos faz mal é o demónio do triunfo constante, é olhar para cima e só ver céu. Esta foi a noite em que aprendi que não se pode ser um ídolo sem se ter um ídolo. Enquanto vivi na sombra, fui aprendendo a crescer sustentando-me em quem sou. E ele, de tão à frente que estava do Mundo, era como um astronauta solitário em órbita durante anos, criando personagens para não se sentir sozinho, enlouquecendo por só conseguir dialogar consigo mesmo. E mesmo que na próxima segunda-feira ele lá estaria na universidade, chegando de mota com o mesmo sorriso confiante e o mesmo casaco poeirento, agora sabia que a vida iria um dia engoli-lo. E quando o engolisse, eu já não estaria lá mais para o amparar. A partir daquele dia, seria eu a engolir a vida.