Observo-o sentado, pela janela. Chego a casa, olho para o prédio de fronte, e lá está ele, de costas totalmente descoladas da cadeira. Está sempre curvado, marreco, a empurrar os ombros já de si franzinos para dentro enquanto dactilografa como se fosse uma secretária antiga. Apetece quase dar-lhe uma sapatada no cerro e gritar-lhe, “faz-te homem!”. A secretária está tão impecavelmente aperaltada como o fato apertado que o faz parecer o moço que entrega as alianças num casamento. Nunca sai, e está sempre só, sempre de nariz enfiado na folha. Ele faz-me perguntar que tanto tem para escrever alguém que se afasta tão pouco de casa.
Topei-o há anos. Se jogássemos à sueca saber-lhe-ia a mão só de o ver tremelicar e suar nervoso. Interpretaria os seus tiques no olhar como a sorte a trazer-lhe um ás de espadas. Saberia ler uma desistência no remover cauteloso dos óculos seguido de um coçar de pálpebras. Por isso sei bem que toda aquela calma é como uma fachada imaculadamente branca num prédio devoluto. As suas palavras tresandam a fracasso.
Eu já as li. Por vezes, pega nas folhas e arruma-as direitinhas, como camisas, dentro de uma arca. Outras vezes, poucas vezes, atira-as pela janela fora. As folhas voam e acertam nas janelas dos outros. As pessoas abrem e apanham-nas. Um dia o vento trouxe-me algumas.
Se não o conhecesse, quase diria que ele não passa de mais um heterónimo do Pessoa.
Eram palavras tão retorcidas como a figura que as pariu. Eram simples, mas estavam organizadas de forma desconcertante. As ideias que o seu conjunto formava tanto podiam ser incrivelmente profundas como de uma banalidade gritante. A gosto do leitor. O que ele escreve são jogos de sorte ou azar. Ele joga à sueca com as palavras. Porque testa a sorte a cada janela onde as folhas se vão colar. E eu, topei-lhe logo o jogo todo.
Ele tenta passar-se por um doutor da alma, por um engenheiro das emoções, por um pastor de sensibilidades. Nesta superficialidade transvestida de intelecto, o leitor é conduzido à sala de tribunal a decidir as reais intenções do escritor. Pois eu quero fazer uma declaração a esse juri distraído, a essa espécie de divindade que pode simpatizar e ser benevolente com ele, mas que não conhece a verdade. Senhoras e senhores do juri: este indivíduo é pop pastilha elástica: agradável ao ouvido, deixa um gostinho bom a algo que faz sentido. Mas substância tem zero. E a filosofia de vida subjacente é desprezível.
Aquelas palavras não me ensinam nada. Que me pode ensinar que sabe tão pouco da vida? Ainda assim, as malditas folhas colam-se nos vidros. E é preciso raspá-las cuidadosamente e ligar pouco ao espelho baço que elas são de nós mesmos.
Sim, observo-o sentado, pela janela. Ele mora em frente a mim, não posso evitar vê-lo. Mas observo-o em doses moderadas, e nunca por muito tempo. Eu não passo muito tempo em casa. Prefiro fechar a janela, vestir um casaco grosso, levantar-lhe a gola e enfrentar o Janeiro frio da rua. Ele é exemplo apenas para as minhas horas curtas de coragem e sede de viver. Ele é passatempo apenas para o tédio. E só de falar dele já me deu o sono.
Boa noite.
Topei-o há anos. Se jogássemos à sueca saber-lhe-ia a mão só de o ver tremelicar e suar nervoso. Interpretaria os seus tiques no olhar como a sorte a trazer-lhe um ás de espadas. Saberia ler uma desistência no remover cauteloso dos óculos seguido de um coçar de pálpebras. Por isso sei bem que toda aquela calma é como uma fachada imaculadamente branca num prédio devoluto. As suas palavras tresandam a fracasso.
Eu já as li. Por vezes, pega nas folhas e arruma-as direitinhas, como camisas, dentro de uma arca. Outras vezes, poucas vezes, atira-as pela janela fora. As folhas voam e acertam nas janelas dos outros. As pessoas abrem e apanham-nas. Um dia o vento trouxe-me algumas.
Se não o conhecesse, quase diria que ele não passa de mais um heterónimo do Pessoa.
Eram palavras tão retorcidas como a figura que as pariu. Eram simples, mas estavam organizadas de forma desconcertante. As ideias que o seu conjunto formava tanto podiam ser incrivelmente profundas como de uma banalidade gritante. A gosto do leitor. O que ele escreve são jogos de sorte ou azar. Ele joga à sueca com as palavras. Porque testa a sorte a cada janela onde as folhas se vão colar. E eu, topei-lhe logo o jogo todo.
Ele tenta passar-se por um doutor da alma, por um engenheiro das emoções, por um pastor de sensibilidades. Nesta superficialidade transvestida de intelecto, o leitor é conduzido à sala de tribunal a decidir as reais intenções do escritor. Pois eu quero fazer uma declaração a esse juri distraído, a essa espécie de divindade que pode simpatizar e ser benevolente com ele, mas que não conhece a verdade. Senhoras e senhores do juri: este indivíduo é pop pastilha elástica: agradável ao ouvido, deixa um gostinho bom a algo que faz sentido. Mas substância tem zero. E a filosofia de vida subjacente é desprezível.
Aquelas palavras não me ensinam nada. Que me pode ensinar que sabe tão pouco da vida? Ainda assim, as malditas folhas colam-se nos vidros. E é preciso raspá-las cuidadosamente e ligar pouco ao espelho baço que elas são de nós mesmos.
Sim, observo-o sentado, pela janela. Ele mora em frente a mim, não posso evitar vê-lo. Mas observo-o em doses moderadas, e nunca por muito tempo. Eu não passo muito tempo em casa. Prefiro fechar a janela, vestir um casaco grosso, levantar-lhe a gola e enfrentar o Janeiro frio da rua. Ele é exemplo apenas para as minhas horas curtas de coragem e sede de viver. Ele é passatempo apenas para o tédio. E só de falar dele já me deu o sono.
Boa noite.
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