terça-feira, 26 de outubro de 2010

Desafio XLI - Resposta

“We don't read and write poetry because it's cute. We read and write poetry because we are members of the human race. And the human race is filled with passion. And medicine, law, business, engineering, these are noble pursuits and necessary to sustain life. But poetry, beauty, romance, love, these are what we stay alive for.”

 
“Bom dia, o meu nome é Lúcia e tenho 27 anos. Sou Engenheira.” Foi assim que me apresentei naquele estranho grupo. Parecíamos alcoólicos anónimos, sentados numa roda em cadeiras desconfortáveis. Quando levantei a cabeça, vi-os a olhar para mim sem muito interesse. Afinal, ninguém percebera qual era o meu problema.


Foi logo aí que eu senti que nada ia mudar.

A psicóloga olhou para mim com um ar condescendente. Fora ela que me trouxera ali. Ela sabia qual era o meu problema, depois de eu lhe ter explicado várias vezes, depois de lhe ter falado de filmes e de músicas que me inspiravam. Depois de lhe ter lido alguns dos meus poemas, ela começou a aceitar. Mas demorou muito tempo. E como toda a gente, nunca entendeu.

Quando todos tínhamos terminado, senti uma vontade incontrolável de voltar para o meu quarto e enterrar a minha cabeça na almofada mais profunda. Todas aquelas pessoas estavam cheias de cicatrizes, de horrores de infância, de maus tratos. E eu voltei a sentir que o horror era meu, que eu carregava o próprio problema, como um filho que estava permanentemente em gestação mas que nunca nascia para seguir o seu caminho.

E entendi a sua mensagem: o meu problema não existia perante o Mundo. Que audácia era a minha de sofrer perante aquela amálgama de cortes nos pulsos, de mortes nas veias e vidas estripadas por pais?

Entendi a mensagem, porque já a tinha ouvido muitas vezes.
Era sempre assim.

E dei por mim a vasculhar horrores na minha vida, vestígios e sobras de alguma coisa que me pusesse em pé de igualdade com aquela gente mutilada com razões para acabar com a vida.
Aparentemente o suicídio deve ser acompanhado de uma explicação. E dei por mim a sorrir com a ironia da situação, porque foi justamente por nunca conseguir escrever uma carta a explicar coisa alguma que a morte me seduzia tanto.

Foi quando passei a porta que uma rapariga veio ter comigo e abruptamente me disse que gostava de me falar. Tinha um ar carrancudo.
“Se alguém te mandou falar comigo, para me convencer que devia seguir a minha vida ordinária, podes ir embora”, disse-lhe eu de mau humor. “Não acho que devias viver a tua vida ordinária”. Mas eu continuei “Se alguém te disse que devia arranjar um escape, um fetiche, uma vida dupla, uma máscara, por favor poupa-me a esse discurso. Já o ouvi tantas vezes que sou capaz de vomitar aqui”. Ela pareceu surpreendida, “vamos beber alguma coisa então, não quero que fiques maldisposta”.
E assim começou a nossa amizade.

Entramos num café e eu disse-lhe de rompante que as pessoas que só pensam em pagar os seus impostos e a segurança social me deixam nervosa. Ela riu-se e pediu dois martínis.
Com o descer do álcool pela minha garganta lisa fui ficando mais lúcida e comecei a achar que tinha sido ridícula: há ainda uma altura em que suponho que dramatizo demais um problema que não existe.
"Desculpa, estou irascível hoje. Aqueles encontros de grupo arrasam-me”.
Depois olhei para ela e vi que era incrivelmente bonita. Mas havia algo de estranho na sua beleza, como se a roupa estivesse mal pendurada num cabide.
“ Eu ando naquele grupo de acompanhamento e resolvi deixá-lo hoje.”
Senti um terreno deliciosamente frágil, como uma porção de areia lisa e virgem na madrugada em que o pisamos.
Não voltamos a falar daquilo, mas também não regressamos ao grupo e eu deixei de atender a minha psicóloga a partir dessa tarde.

Não demorei muito a descobrir porque é que ela frequentava aquele grupo de anónimos. Disse-me frontalmente que queria mudar de sexo.
E eu sobretudo, sabia o que era viver num corpo errado.

Um dia contou-me que já tivera muitos namorados e que o sexo nunca a satisfazia porque ela sentia-se um homem, pensava como um há já muito tempo. E era engraçado ver que era verdade. Quando comecei a sair com ela, a ir ao cinema, a partilhar cafés apercebi-me que era um homem quem ali estava. Um homem retraído e esquisito debaixo de um corpo voluptuoso cheio de curvas.
Não me admirei, portanto, que quando fosse pequena se tivesse achado estranha ao espelho. Inatamente, a sua mente era masculina e isso transparecia nos seus gestos e expressões. E por isso tinha também deixado o mesmo acompanhamento em que eu estava, quando um dos psicólogos lhe disse que ela não era homem nenhum, se nem de futebol gostava.

Passamos muitas horas a conversar. Às vezes ela encontrava-me à saída do meu trabalho, onde me enfiava em números e jogos de bolsa que atiravam a Arte a originalidade pela janela.
Um dia ela perguntou-me como é que eu me tinha metido nesta vida. “Sei lá, disse-lhe”. Nessa altura bebia todas as noites e àquela hora a minha boca já estava pastosa. “Quando era pequena disseram-me que eu tinha jeito para os números e eu acreditei. A mentira tornou-se verdade.”
Ela sorriu-me. “E se agora acreditares no contrário, não podes construir a tua nova verdade?”
“É difícil” e foi a primeira vez em muito tempo que respondia a estas perguntas. “Já construi demasiada vida baseada em Ciência. É a minha aptidão para estas coisas que me paga a renda de casa ou me faz viajar. O meu sucesso é a falta de pressão e de paixão no que faço. Eu sou científica para com a própria Ciência. E é isso que eu odeio em mim, a Ciência está no meu cérebro em cada momento.”
“Não podes usar o teu sucesso para viver a tua criatividade? Adoro quando vais sair do trabalho e passas pelo centro comercial para trocares de roupa. Adoro quando vives essa tua pele em êxtase. És tu. Tu és a pessoa que se veste formal de manhã e se transforma à noite.”
Olhei-a longamente através da noite. Aquilo era diferente. Aquilo não era uma vida dupla para mim. Aquilo era eu, eu era uma vida dupla.

“Porque não amas uma mulher?”

“Quem te diz que não amo?”


Não voltamos a falar por uma semana. Instalou-se entre nós um silêncio desconfortável e comprometedor, que me abafava de medo e ao mesmo tempo me electrizava o corpo. Nessa semana não consegui pegar no baixo, nem tive paciência para a minha habitual mudança de roupa antes de seguir para a escola de música. A janela apanhou-me desprevenida a olhar para um computador onde os números desfocados faziam um efeito engraçado nos meus olhos. Também não consegui escrever e os dias pareceram-me ainda mais tristes do que costumavam ser, fechados entre quatro paredes, durante oito horas. O Inverno também não ajudava com dias curtos preenchidos por trabalho produtivo, nobre e necessário. E também seco, encarquilhado e sem romance.

Por isso liguei-lhe e encontramo-nos debaixo de uma chuva torrencial. Às sete estava escuro como se fosse noite cerrada.
Assim que me viu, agarrou-me num longo beijo. As poucas pessoas que passavam na rua pararam para olhar.

“Estava à porta da tua casa, quando me ligaste”

Voltamos para minha casa de mãos dadas. Eu não sabia se estava apaixonada por uma mulher, ou por um homem que vivia num corpo de mulher. Mas também não queria saber, a vida nunca me parecera tão autêntica.
Enquanto nos despíamos das roupas molhadas coladas ao corpo, ela passava as mãos pela minha pele. Nunca nenhum homem me tinha desejado daquela forma. E eu senti o romance e a unicidade da vida que ela me passava. A verdade é que também nunca tinha desejado alguém daquela forma.

“És a poesia da minha vida”

“És o homem da minha vida”

De manhã, quando acordamos, foi um Novo Mundo que acordou em nós.







2 comentários:

  1. O teu melhor texto de sempre, e do melhor que já li até hoje em blogs. Estás a dar o salto qualitativo de textos pequenos, abstractos, intimistas, para verdadeiros contos curtos. Estás a ganhar uma capacidade narrativa exímia e profunda. Este teu texto tem mais significado do muitos livros inteiros. E, mais do que tudo, este texto és tu, sem filtros nem máscaras. Muitos parabéns! :)

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