sábado, 30 de outubro de 2010

Desafio XLIII - Resposta

Não sabendo que era ímpossivel, foi la e fez.
Jean Cocteau


Nasci menino e cresci rapaz. Engordaram-me, como se gordura fosse formosura, saúde ou estatuto. Inchei com doces, crenças em deuses e expectativas de família e bondade. Tudo isso era tão balofo como eu mesmo. E, por isso, ainda dava os primeiros passos fora da meninice e já tinha rapidamente desinsuflado como um balão furado. Só que a pele estica, e molda-se, e depois para voltar ao sítio é um caso sério. E por isso, menino e rapaz, secaram-me as peles ocas que ficaram badalando-me no peito. E fiz-me homem com mamas.

Mas escondi-as sempre, evitei piscinas e balneários. Quando jogava à bola, era na equipa que jogava de camisola contra a que jogava em tronco nu. Ocultei o peito do sol, e cultivei uma pele enferma. Distraí meio Mundo com a minha cabeça porque sempre achei o meu corpo uma via-rápida para o embaraço e para o riso. O problema era que, secretamente, tive sempre o desejo de ser apenas um corpo. Sempre soube que à superficie à mais conteúdo do que em profundidade, e que a cabeça é pouco mais do que fonte de vaidades. De pé em museus, por entre estátuas de gregos perfeitos, chorei.

A multidão cercou-me, aplaudindo as minhas virtudes e inteligências e pedindo mais e mais daquele encanto que para mim era máscara e para o Mundo era alma e espírito santo. A multidão aproximou-se mais e mais, fez-me correr e saltar barreiras que não coloquei a mim mesmo, fez-me julgar mais do que entender, e fazer mais do que reflectir. Não podia durar, e um dia, já homem cansado, fui exposto como uma fraude. De olhos pesarosos e simpáticos, a multidão descobriu que debaixo da camisola havia um peito masculino com mamas. Ainda assim, espantado, vi a multidão dar-me receitas. Contra as mamas, o exercício, a cirurgia, a aceitação. A aceitação de que eu sou o que sou e não o que quero ser. E o que sou define-se com mamas. Escapar-lhes é impossível.

Tornei-me pois em mamas de homem. Esqueci o jogo de enganos que alimentava, e mostrei-me como aquilo que há de humano em mim me fez. Gritei histericamente contra a multidão e afastei os seus rostos egoístas, e para os mais resistentes quebrei todos os mandamentos. Ri-me na cara dos deus e arrastei o seu nome na lama. Fiz de todos os dias um longo sábado de desemprego, e no sábado trabalhei incansavelmente. Desonrei o meu pai e a minha mãe largando-os na beira da estrada da vida e deixando-os guiarem-se sozinhos. Desonrei o meu próprio corpo com tabaco e álcool e todos os venenos que consegui fazer correr no meu sangue. Fiz da castidade uma piada, e incentivei outros a fazerem o mesmo. Menti e acusei falsamente quem por outros motivos merecia ser acusado, e roubei-lhes as mulheres que cobiçava. Mulheres essas a quem roubei tempo e dedicação mesmo não me interessando. Só não matei, mas mesmo aí estive perto. Porque suponho que matar-me a mim mesmo também conta.

E quando a multidão me cercou de novo, desta vez pasmada perante a minha vileza, munida de paus e pedras para me quebrar com justiça, arranquei todos os botões da camisa para orgulhosamente exibir às armas e aos dedos acusatórios o meu peito com mamas.

E quem diria? As mamas desapareceram.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Desafio XLI - Resposta

“We don't read and write poetry because it's cute. We read and write poetry because we are members of the human race. And the human race is filled with passion. And medicine, law, business, engineering, these are noble pursuits and necessary to sustain life. But poetry, beauty, romance, love, these are what we stay alive for.”

 
“Bom dia, o meu nome é Lúcia e tenho 27 anos. Sou Engenheira.” Foi assim que me apresentei naquele estranho grupo. Parecíamos alcoólicos anónimos, sentados numa roda em cadeiras desconfortáveis. Quando levantei a cabeça, vi-os a olhar para mim sem muito interesse. Afinal, ninguém percebera qual era o meu problema.


Foi logo aí que eu senti que nada ia mudar.

A psicóloga olhou para mim com um ar condescendente. Fora ela que me trouxera ali. Ela sabia qual era o meu problema, depois de eu lhe ter explicado várias vezes, depois de lhe ter falado de filmes e de músicas que me inspiravam. Depois de lhe ter lido alguns dos meus poemas, ela começou a aceitar. Mas demorou muito tempo. E como toda a gente, nunca entendeu.

Quando todos tínhamos terminado, senti uma vontade incontrolável de voltar para o meu quarto e enterrar a minha cabeça na almofada mais profunda. Todas aquelas pessoas estavam cheias de cicatrizes, de horrores de infância, de maus tratos. E eu voltei a sentir que o horror era meu, que eu carregava o próprio problema, como um filho que estava permanentemente em gestação mas que nunca nascia para seguir o seu caminho.

E entendi a sua mensagem: o meu problema não existia perante o Mundo. Que audácia era a minha de sofrer perante aquela amálgama de cortes nos pulsos, de mortes nas veias e vidas estripadas por pais?

Entendi a mensagem, porque já a tinha ouvido muitas vezes.
Era sempre assim.

E dei por mim a vasculhar horrores na minha vida, vestígios e sobras de alguma coisa que me pusesse em pé de igualdade com aquela gente mutilada com razões para acabar com a vida.
Aparentemente o suicídio deve ser acompanhado de uma explicação. E dei por mim a sorrir com a ironia da situação, porque foi justamente por nunca conseguir escrever uma carta a explicar coisa alguma que a morte me seduzia tanto.

Foi quando passei a porta que uma rapariga veio ter comigo e abruptamente me disse que gostava de me falar. Tinha um ar carrancudo.
“Se alguém te mandou falar comigo, para me convencer que devia seguir a minha vida ordinária, podes ir embora”, disse-lhe eu de mau humor. “Não acho que devias viver a tua vida ordinária”. Mas eu continuei “Se alguém te disse que devia arranjar um escape, um fetiche, uma vida dupla, uma máscara, por favor poupa-me a esse discurso. Já o ouvi tantas vezes que sou capaz de vomitar aqui”. Ela pareceu surpreendida, “vamos beber alguma coisa então, não quero que fiques maldisposta”.
E assim começou a nossa amizade.

Entramos num café e eu disse-lhe de rompante que as pessoas que só pensam em pagar os seus impostos e a segurança social me deixam nervosa. Ela riu-se e pediu dois martínis.
Com o descer do álcool pela minha garganta lisa fui ficando mais lúcida e comecei a achar que tinha sido ridícula: há ainda uma altura em que suponho que dramatizo demais um problema que não existe.
"Desculpa, estou irascível hoje. Aqueles encontros de grupo arrasam-me”.
Depois olhei para ela e vi que era incrivelmente bonita. Mas havia algo de estranho na sua beleza, como se a roupa estivesse mal pendurada num cabide.
“ Eu ando naquele grupo de acompanhamento e resolvi deixá-lo hoje.”
Senti um terreno deliciosamente frágil, como uma porção de areia lisa e virgem na madrugada em que o pisamos.
Não voltamos a falar daquilo, mas também não regressamos ao grupo e eu deixei de atender a minha psicóloga a partir dessa tarde.

Não demorei muito a descobrir porque é que ela frequentava aquele grupo de anónimos. Disse-me frontalmente que queria mudar de sexo.
E eu sobretudo, sabia o que era viver num corpo errado.

Um dia contou-me que já tivera muitos namorados e que o sexo nunca a satisfazia porque ela sentia-se um homem, pensava como um há já muito tempo. E era engraçado ver que era verdade. Quando comecei a sair com ela, a ir ao cinema, a partilhar cafés apercebi-me que era um homem quem ali estava. Um homem retraído e esquisito debaixo de um corpo voluptuoso cheio de curvas.
Não me admirei, portanto, que quando fosse pequena se tivesse achado estranha ao espelho. Inatamente, a sua mente era masculina e isso transparecia nos seus gestos e expressões. E por isso tinha também deixado o mesmo acompanhamento em que eu estava, quando um dos psicólogos lhe disse que ela não era homem nenhum, se nem de futebol gostava.

Passamos muitas horas a conversar. Às vezes ela encontrava-me à saída do meu trabalho, onde me enfiava em números e jogos de bolsa que atiravam a Arte a originalidade pela janela.
Um dia ela perguntou-me como é que eu me tinha metido nesta vida. “Sei lá, disse-lhe”. Nessa altura bebia todas as noites e àquela hora a minha boca já estava pastosa. “Quando era pequena disseram-me que eu tinha jeito para os números e eu acreditei. A mentira tornou-se verdade.”
Ela sorriu-me. “E se agora acreditares no contrário, não podes construir a tua nova verdade?”
“É difícil” e foi a primeira vez em muito tempo que respondia a estas perguntas. “Já construi demasiada vida baseada em Ciência. É a minha aptidão para estas coisas que me paga a renda de casa ou me faz viajar. O meu sucesso é a falta de pressão e de paixão no que faço. Eu sou científica para com a própria Ciência. E é isso que eu odeio em mim, a Ciência está no meu cérebro em cada momento.”
“Não podes usar o teu sucesso para viver a tua criatividade? Adoro quando vais sair do trabalho e passas pelo centro comercial para trocares de roupa. Adoro quando vives essa tua pele em êxtase. És tu. Tu és a pessoa que se veste formal de manhã e se transforma à noite.”
Olhei-a longamente através da noite. Aquilo era diferente. Aquilo não era uma vida dupla para mim. Aquilo era eu, eu era uma vida dupla.

“Porque não amas uma mulher?”

“Quem te diz que não amo?”


Não voltamos a falar por uma semana. Instalou-se entre nós um silêncio desconfortável e comprometedor, que me abafava de medo e ao mesmo tempo me electrizava o corpo. Nessa semana não consegui pegar no baixo, nem tive paciência para a minha habitual mudança de roupa antes de seguir para a escola de música. A janela apanhou-me desprevenida a olhar para um computador onde os números desfocados faziam um efeito engraçado nos meus olhos. Também não consegui escrever e os dias pareceram-me ainda mais tristes do que costumavam ser, fechados entre quatro paredes, durante oito horas. O Inverno também não ajudava com dias curtos preenchidos por trabalho produtivo, nobre e necessário. E também seco, encarquilhado e sem romance.

Por isso liguei-lhe e encontramo-nos debaixo de uma chuva torrencial. Às sete estava escuro como se fosse noite cerrada.
Assim que me viu, agarrou-me num longo beijo. As poucas pessoas que passavam na rua pararam para olhar.

“Estava à porta da tua casa, quando me ligaste”

Voltamos para minha casa de mãos dadas. Eu não sabia se estava apaixonada por uma mulher, ou por um homem que vivia num corpo de mulher. Mas também não queria saber, a vida nunca me parecera tão autêntica.
Enquanto nos despíamos das roupas molhadas coladas ao corpo, ela passava as mãos pela minha pele. Nunca nenhum homem me tinha desejado daquela forma. E eu senti o romance e a unicidade da vida que ela me passava. A verdade é que também nunca tinha desejado alguém daquela forma.

“És a poesia da minha vida”

“És o homem da minha vida”

De manhã, quando acordamos, foi um Novo Mundo que acordou em nós.







segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Desafio XLII - Resposta

Conduzes a vida com um sonho na algibeira. E sonhas que algum dia esse sonho te faça inchar os bolsos e rebente com as calças do fato feito à medida da tua perna, e finalmente vás trabalhar vestido de ti. Tu mesmo, vestido apenas da tua pele última e verdadeira.

E gastas metade dos teus dias no inferno, suando num fato, e enchendo os bolsos de moedas, a cabeça de números e a boca de simpatias. Aguentas mais uma conversa sem rumo e alimentas mais um sorriso fácil, porque te palpita um coração no bolso que é maior do que a tua vida e do que a vida dos outros. Esse coração tomará um dia conta de ti. És como um chocolate, escritor por dentro e engenheiro por fora. Crias bibliotecas na cabeça, e um dia vais virar-te do avesso e todos os livros te cairão ao chão, e só terás que apanhá-los e atirá-los ao Mundo.

Porque sim, tu és mais do que a tua condição de escravo de carreira, a forma moderna de controlar a mente e congelar o sangue rumo a uma morte lenta. Porque sim, tu és capaz de te erguer do chão. Porque sim, o teu sonho é real e tem um corpo. É só esperar, e ele um dia vai tomar conta de ti.

Movido por essa esperança, o dia chega em que tu despes o fato. O Mundo é mais verde e o céu mais azul, e tu vais escrevê-lo com as mesmas cores vivas. Abandonas o inferno onde és estrangeiro, e à tua frente não há senão estradas e caminhos e possibilidades inúmeras, tantas quantas as combinações de palavras. Sentes a liberdade como uma brisa a passar-te pelo rosto, e prossegues a fazer do teu impossível o teu quotidiano.

E nada te sai. E descobres que as frases e as personagens que outrora se escreviam na tua mente eram apenas ecos e sombras de sombras. E quando se vive entre sombras, nunca se chega a ser concreto. Ficas imóvel, incapaz de arrancares uma linha para uma folha. Há uma mão a tolher a tua mão.

E aí o Mundo arde e o céu fecha-se em tempestade permanente. Achavas que dentro do fato vivias o inferno. Mas não. Conheces o inferno quando descobres que não chegaste sequer a viver teu o sonho tão querido e tão próximo, uma vez que nunca se perde o que nunca existiu. O inferno é o sítio onde não tens nada teu.

Os teus bolsos estiveram sempre vazios.

Desafio XL - Resposta


É quanto dura a memória. Um quarto de tempo escorrido que nem água,
e desapareci.

A tua memória de mim cristalizou-se nas palavras que escrevia todos os dias.
E como um Narciso espelhado nelas, foste o viajante que prendi nos meus poemas
recitados à distância.

E cada vez que o relógio batia a nossa hora, mais um poema desabrochava nas minhas páginas, para que ávido, pudesses ler quem foste.

E engana-se quem julga que o fulgor da memória se esfumava com o bater
das nossas horas.

A cada martelada no tempo, renasciam breves e fugazes os meus poemas, marcando
o ritmo da tua ausência.

Mas no dia em que te perdoei, o relógio voltou à hora que era nossa e ficou confuso.
E como não parou como dantes, perdeu-se o tempo de vasculhar
Dentro mim.

Foi assim que me esqueceste.
Um quarto de perdão. É quanto dura a memória.

domingo, 24 de outubro de 2010

Desafio XLI- Resposta

http://www.youtube.com/watch?v=_mVW8tgGY_w

Oh tu não entendes e sinceramente não me considero capaz de te explicar. Porque a liberdade , quando a sinto no peito, uma tranquilidade diferente nasce-me no ego. E é melódica e é harmoniosa e é perfeita. Perfeita. A liberdade é perfeita. Tens de a ouvir, tens de a sentir. A liberdade é azul mas tens a visão do teu espirito enclausurada para as cores do mundo, se não ves te não posso explicar.
Chamas-me louco. Porque não valorizo a minha vida? Oh não. Não. Quero ser livre. Não. Sou livre. Não me podes tirar aquilo que é meu, aquilo que me orientava neste mundo surdo e cinzento antes de eu definir quem era. A minha vida é liberdade, nasci livre, morrerei livre. Viverei livre. Ouvirás o meu ser elevar-se numa força resistente e calma, numa tranquilidade de ferro impenetravel. Porque sou livre. Porque me podes torturar, podes fazer-me desejar uma morte rápida. Mas nunca me tirarás a liberdade, se morrer morro livre. Sou livre. Tens razao , é um destino triste. Porque morro. Mas sem liberdade já morri. Sem liberdade era como tu, um morto a passear-se pelos vivos a fingir que o sopro da vida não se esgotou no teu peito por seres apático e fraco.
Não existe vida sem liberdade, sem sentires a benção de estares vivo. Mas te não consigo explicar. Seguia-o sim, seguia o Herói até à morte e para alem dela. Porque ele era livre, porque inovou a propria liberdade. Seguia-o até a minha morte e para além dela porque tambem sou livre, livre de escolher uma morte digna.
Oh tu não entendes. É a liberdade que existe em ti e que tu não entendes. Que tu desprezas. Queres essa vida calma e estavel, sem terrores ou pesadelos. Mas a não escolheste, foste ceifado pela tua propria fraqueza. E um dia arrepender-te-ás. Porque não escolheste a liberdade, faltou-te coragem para morreres por aquilo que é teu. A tua liberdade.
Oh sim eu sigo-o. Sigo o Herói até à morte e para alem dela. Não ha nada como sentir a liberdade a romper, suavemente, da pele. Senti-la a aquecer o meu coração, a consolar o meu espirito. A arrepiar-me cada pedaço de pele e de alma. A oferecer-me uma nova força, uma brutalidade bélica crua mas não inocuamente violenta. A oferecer-me a força estrondosa e invencivel de ser livre. Porque poder-me-ás matar, ah, é tao facil o meu sangue é igual ao teu. Mas morro como homem livre, o meu espirito é livre (e o teu não).
Ah te não consigo explicar porque largas a tua liberdade no lixo como se não fosse importante. Um dia arrepender-te-ás porque sem liberdade tu não existes, não tens reflexo.
Sinto-a agora a correr-me nas veias. Os olhos fechados sentem o som melódio e harmonioso. Perfeito, a liberdade é perfeita. Divina. Ah, é um chamamento. É uma honra. Sigo-O até à morte e para alem dela. Porque sou livre. Porque o Herói sempre o foi, mesmo quando o não era.

Desafio XL- Resposta

O tédio. O tédio é o ínicio de todos os graves pecados do mundo. Não? Experimenta ocupar a tua mente e o teu espirito com uma ideia em movimento, experimenta alimentar continuamente o apetite de descobrires e explorares novas coisas, novas realidades e diz-me se alguma vez te aborreceste. E, depois, diz-me se alguma vez cometeste alguma extravagancia mal fundamentada e desvairada. Porque isso é o tédio, uma experiencia que termina em grande plano mas sem um bom sustento para o teu ego.
É um ciclo. Cometerás erros se desejares conhecer novos mundos, novas perspectivas. E falhas, claro, se preencheres sempre a tua curiosidade sobre a novidade , falharás algures. Mas não serão pecados, todas essas situações nascidas de uma ideia extenuante e cheia de uma periogosa adrenalina inovadora têm uma percentagem de uma moral que não deixa de ser curiosa. Porque és tu, és tu a elevares-te no pior ou no melhor mas és tu. Sabes o que fazes . Mais. Sabes porque é que fazes. Queres alimentar a tua visao do mundo, queres ser maior. Necessitas de saciar essa vontade de sentir toda a existencia do mundo num pedaço de pele.
Mas as ideias que nascem do tédio não são assim. A tua mente fica em branco, o espirito torna-se pouco nítido. Estás a entrar no domínio onde nada existe e como o nada não é possível acordas. Abres bem os olhos e esticas os musculos mas o teu espirito continua desfocado. Por isso é que os maiores pecados nasceram do tédio. Depois de não se ter ideia alguma só uma péssima ideia poderia surgir. E a seguir a isso, logico, um péssimo acto com ausencia de uma qualquer moral. De qualquer justificação bem fundamentada.
Não te deixes envolver pelo tédio. Corroi-te o corpo, corroi-te mente, corroi-te o coraçao. Deixas de ser tu e ideias mal compassadas e estáticas surgem-te para que não morras de tédio, perdendo a consciencia humana cheia de uma moral curiosa que te torna homem.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Desafio XLII - Resposta



“Tens que ouvir a música” Foi o que eu lhe disse. Estávamos os dois cá fora, o parque prometia um Outono que custava a sair das folhas e do cheiro das castanhas assadas.
“Ouve a música”. E foi assim que o deixei naquele jardim, de mãos dadas com a minha ausência. E as minhas costas tornaram-se num pequeno rectângulo negro recortado no quadro impressionista.



Conhecia-o há pouco tempo, tão pouco que na verdade não o conhecia. Ele foi um corpo pronto a acomodar a minha vontade de imaginar personalidades. E enquanto não fui sabendo quem ele era, ele foi sendo toda a gente.
Quando fomos àquele concerto, naquela primeira noite, estava ainda despejado sobre ele aquele perfume encantador do mistério de não se saber quem se encontrou. Como uma prenda que se guarda na mala e que ainda não se abriu.
Mas quando entrámos na sala, a primeira coisa que vi foi o piano de cauda iluminado por uma luz tépida que contrastava com o escuro dominante do público. Um piano solitário e desprotegido que aguardava que alguém o habitasse.
Foi logo ali que ele passou de ser toda a gente para ser Ele. E comecei a sentir a excitação e o desânimo alternados de começar a pegar na prenda e finalmente abri-la.
Ele olhava simultaneamente para mim e para o piano criando uma linha que me entristeceu. Como se o piano e eu tivéssemos algo em comum.

Sentei-me e ouvi a rapariga tocar. Gostei logo dela, com um amor fácil como o que cultivo pelas nuvens de trovoada. Mais tarde percebi que gostei dela porque ela habitava o piano e não o deixava sozinho.

Durante todo o concerto senti que aquela linha que ele criara se intensificava e comecei a sentir um formigueiro instável. A minha impaciência tornou-se gélida quando após as últimas palmas, a rapariga se levantou e disse que queria convidar uma pessoa do público para tocar um pouco. E imobilizei-me quando ela disse o meu nome.
Finalmente percebia a razão de tudo aquilo. Porque tudo tem um propósito e todas as prendas acabam por ser abertas.

Levantei-me e sai da sala. O coração doía-me dolorosamente e sentia o corpo a encher-se de raiva. Com passos curtos e determinados dirigi-me à saída. Lá, ele estava à minha espera como se tivesse ultrapassado o tempo. Parecia assustado e arrependido e isso só me enfureceu mais.
“Só queria que tivesses a oportunidade de tocar num piano!”

Lembro-me que olhei para ele como se fosse uma formiga, um bicho indesejável que viajara comigo preso ao meu casaco. Ele já não era toda a gente. Ele era Ele. E era Dele que eu não gostava.
“Eu não toco em pianos” e afastei-o da minha frente, para finalmente entrar na noite húmida.

No dia seguinte ele ligou-me e de todas as vezes eu desliguei o telefone, adiando-o. Todo aquele mistério que ele carregara desaparecera instantaneamente. Sem mistério, ele era só um rapaz que tentava fazer-me feliz.

Mas eu nunca seria feliz ao piano.
A professora de música da escola convencera os meus pais de que eu tinha um talento especial para a música. E com pouco mais de cinco anos as minhas tardes de terça-feira eram passadas numa sala minúscula com um piano incrustado na parede e um cheiro a mofo das pautas que eu endireitava com as minhas pequenas mãos.
Já naquela altura eu era demasiado irrequieta. Quando me sentava ao piano ficava de costas para a janela e era constantemente repreendida. A música saltava-me do coração para a vida e eu corria a recolhê-la. Porque o piano exigia-me as escalas e a rapidez das mãos enquanto a professora batia com a caneta no tampo. Já nessa altura eu dava mais atenção ao ritmo da caneta do que à melodia do piano. Dava mais atenção aos ténis do que às sabrinas. Era mais agressiva do que suave.
E quando produzia melodias no piano, sentia que era ele que estava apaixonado por mim.

Um dia deixei-o sem razão aparente. Não expliquei o meu divórcio, mas mantive-o sagrado, longe da incompreensão dos que me convenciam a voltar para aquele que diziam ser “o meu instrumento”.
Troquei-o mais tarde por uma bateria, quando a violência que eu sentia dentro de mim se tornou insuportável. E apaixonadamente, sendo eu em cada centímetro de pele, criei ritmos e solos. Aprendi pautas a quatro membros, rompi preconceitos e cansei os tornozelos numa algazarra confusa e barulhenta.

Ocasionalmente, a minha solidão espreitava-me e abanava-me a cabeça quando à noite estava à janela. “És teimosa”, dizia-me ela. “O piano foi feito para ti, é solitário como tu”.
E eu sentia saudades. De levantar a tampa preta e de conversarmos. Sentia saudades do amor que ele me dava. Que só ele me dava. Que só ele me tinha.

Porque o ritmo nunca existiu isolado. E a minha agressividade só fazia sentido enquadrada com as guitarras. Mas as guitarras nunca chegaram.

Hoje eu sei que elas nunca vão chegar. E sei que esta minha insistência em ser o ritmo de uma banda não é mais do que um profundo sonho que acalento desde pequena que é o de não estar só.

E o piano sabia.



terça-feira, 19 de outubro de 2010

Desafio XLII

Wings para Alice in Wonderland:

http://www.youtube.com/watch?v=_mVW8tgGY_w


Alice in Wonderland para Ricardo:

"Imagine if you suddenly learned that the people, the places, the moments most important to you were not gone, not dead, but worse, had never been. What kind of hell would that be? "

from A Beautiful Mind




Ricardo para Wings:

“Great spirits have always found violent opposition from mediocrities. The latter cannot understand it when a man does not thoughtlessly submit to hereditary prejudices but honestly and courageously uses his intelligence.”
(Albert Einstein)

domingo, 17 de outubro de 2010

Desafio XLI - Resposta

Passam hoje cinco anos e ainda não consigo cortar a barba. Apará-la com uma tesoura é fácil, e sempre controla o maior influxo de pelos que tentacularmente me cobrem a face. O sangue não deixa de me subir à cabeça ao sentir o frio reflectido nas faces das lâminas. Mas com a tesoura sinto-me como um explorador submarino, caçando em alto mar um polvo e cortando-lhe os tentáculos, um pelo de cada vez. O mar acalma-me. Aprendi esse truque com o primeiro psicólogo que me assistiu no aeroporto. E também foi ele quem me ensinou a usar sons do mar para adormecer. É curioso como o mar não me assusta. Isto porque estávamos a sobrevoar o Atlântico quando aconteceu. Não havia senão aquela grande massa de água debaixo dos nossos pés. Água espessa como o pânico em que nos afogámos dentro do avião. Água, que em pequenas quantidades ainda é o meu fantasma. Por vezes, quando me servem um copo, vejo-o tingir-se de vermelho, e esfrego longamente os olhos para repor a sanidade. E de novo penso nele. O passageiro 15A.

Eu era o passageiro 15B. Já revivi a cena nos meus pesadelos conturbados centenas de vezes. Lá estou eu, ordeiramente na fila para o check-in. Lá estou eu, finalmente a chegar ao balcão de check-in, e lá estão a perguntar-me se tenho preferência no lugar. E eu a responder que não. Quando se acumulam voos no historial, as cadeiras de avião tornam-se semelhantes, e começa a ser indiferente estar mais à frente ou mais atrás. E por isso respondi-lhe que não tinha preferência. Tinha sido tão fácil quanto dizer à senhora do check-in para me colocar mais à frente ou mais atrás. E talvez hoje esta barba não tivesse que permanecer no meu rosto como uma cicatriz, uma amputação ao contrário.

As máscaras de oxigénio caíram sem nada que o anunciasse. A turbulência só começou depois. A tripulação saltou dos seus lugares e pediu-nos que permanecessemos calmos. Pediu-nos que colocassemos as máscaras. Mas ele recusou-se. O passageiro 15A. Não tinha nem reparado nele nos vinte minutos anteriores desde a descolagem. Ele levantou-se do lugar, passou por cima de mim sem pedir permissão. E levantou os braços e levantou a voz.

“Que momento maravilhoso! Vocês nunca mais se vão sentir assim tão vivos. Não fiquem aí atrás de máscaras, usem-no para fazerem o que sempre quiseram! Beijem o passageiro do lado, liguem os telemóveis e digam a alguém aquilo que sempre quiseram dizer e nunca tiveram coragem! Não entendem como isto é o melhor que já vos aconteceu?”

Os braços foram-lhe violentamente baixados por duas hospedeiras-homem. O seu corpo ténue foi facilmente subjugado por forças superiores à sua. Parecia possuído, e só parou de gritar quando recebeu um punho fechado no estômago e um punhado de saliva lhe saltou da boca, juntamente com um uivo grave. Por essa altura, o avião já era um poço da morte. Levantei-me para o colocarem na cadeira ao meu lado. Estava fraco, ligado à vida pelo tubo que lhe bombeava ar concentrado para os pulmões, e apertado por um cinto que lhe amplificaria por certo a dor proveniente do estômago violentado. Estavamos todos assim. Surpreendidos e amedrontados pela forma como o avião nos sacudia como um cão com pulgas. Projectávamos a nossa esperança por um tubo que nos dava um ar relaxante. Acho que nenhum de nós se apercebeu bem das palavras loucas do passageiro 15A.

O avião parecia cada vez mais irado. E o passageiro 15A retirou a máscara. E, sorvendo longamente o ar rarefeito da cabina, expelia a custo um riso ofegante. Eu ainda acordo a meio da noite com aquele riso a cortar os sons de maresia no meu quarto. E ainda julgo escutá-lo tantas vezes durante o dia a discursar, gritando uma palavra de cada vez.

“O que esperam? Estão todos aí parados, a marcar lugar na fila para a morte? Eu cá não espero por ninguém. Sempre me quis demitir. Demitir do meu emprego. Demitir da minha namorada que me aborrece. Demitir-me de viver. Mas acho que andava à espera do momento certo. Este é o momento!”

Bastaram segundos. Um minuto, no máximo, e o passageiro 15A deixou de se mexer. A tripulação correu a cobri-lo com uma manta para que mais ninguém reparasse. Tudo para evitar o pânico. Estranho como o sacrifício do passageiro 15A fez o avião parar imediatamente de tentar matar-nos. Já tivera o seu sangue, o seu sacrifício humano. Os deuses estavam calmos. Fez-me pensar, em choque, se as tribos primitivas não estariam correctas.

Em terra, disse-se que o passageiro 15A perecera ao retirar a máscara. Disse-se que sofria de problemas psiquiátricos sérios. E todos aceitam que esses são os indivíduos que morrem primeiro: os que se recusam a jogar a vida com as regras todas.

O avião ia lotado, e eu fui o único passageiro a saber a verdade. Eu, o passageiro 15B. Eu, que fui recebido no aeroporto por um psicólogo e um papel para assinar em como nunca revelaria a verdade. Em troca, recebi informação. Eu sei que houve inquéritos. Pessoas foram demitidas. Eu sei que ninguém conseguiu explicar como ele violou tão obviamente o controlo de segurança. Talvez não o tivessem revistado com cuidado, ou talvez as máquinas estivessem avariadas. Bastava que lhe tivessem apalpado o bolso pequeno das calças de ganga, aquele bolso que ninguém sabe para que serve, e talvez hoje o passageiro 15A estivesse vivo. O bolso pequeno foi onde ele procurou, com gestos moles, aquela coisa. Lâmina. De barbear. Ainda me custa a dizer o nome. Acho que nunca mais conseguirei tocar numa.

Foi neste mesmo dia, há cinco anos atrás. Eu aprendi muito com o passageiro 15A. Aprendi que o seu sangue jorrar enquanto a pressão for suficiente. Aprendi que depois goteja e mancha terrificamente o chão. Aprendi que a barba crescida não contribui em nada para o charme de um homem. Aprendi que dormir pode ser mais complicado do que passar uma noite em claro. Depois de muitas sessões com o psicólogo do aeroporto, aprendi a ter pena do passageiro 15A. Afinal, ele demitiu-se desnecessariamente da vida antes de se poder demitir do emprego e da namorada. Depois de mais sessões ainda, aprendi que prefiro viver a vida ordeiramente numa fila até chegar a minha vez para ser atendido pela morte. Porque nesta fila a penalidade por desrespeito é sermos puxados para o primeiro lugar de acesso à morte.

E neste momento o psicólogo do aeroporto está a tentar que eu aprenda a responder ao passageiro 15A quando, da profundeza dos meus pesadelos, ele irrompe por entre os sons do mar da minha insónia e me diz:

“não aprendeste nada.”

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Desafio XLI





"We don't read and write poetry because it's cute. We read and write poetry because we are members of the human race. And the human race is filled with passion. And medicine, law, business, engineering, these are noble pursuits and necessary to sustain life. But poetry, beauty, romance, love, these are what we stay alive for. To quote from Whitman,

'O me! O life!... of the questions of these recurring;
Of the endless trains of the faithless--of cities filled with the foolish;
What good amid these, O me, O life?
Answer:
That you are here - that life exists, and identity;
That the powerful play goes on and you may contribute a verse.'

That the powerful play goes on and you may contribute a verse.

What will your verse be?"

("Dead Poets Society")



Wings para Ricardo:


"Estamos todos na bicha.

Ninguém sabe para quê.

Deve ser para a morte."


Roberto Juarrot

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Desafio XL - Resposta

Give a heart, take a heart.

O coração é um orgão acessório. Pode aquecer-se com um filme lamechas, pode gelar-se com medo, pode acelerar-se com cafeína, pode parar-se com um susto, pode pôr-se a funcionar com um choque eléctrico, pode evitar-se com um bypass, pode arrancar-se para oferecer a um grande amor e substituir-se pelo da outra pessoa. E fica-se assim, a trabalhar como um relógio com outra máquina, e dá-se horas ao mesmo tempo.

Give a heart, but you cannot take a heart.

O coração só é um orgão essencial quando a pessoa a quem oferecemos o nosso coração não nos oferece o seu de volta. A troca fica incompleta. E ficamos com um vazio no peito do tamanho do nosso afecto. Efectivamente morremos. E movemo-nos como vampiros sem dentes, irremediavelmente sedentos, incansavelmente sem descanso. E sofremos do coração. Tornamo-nos pessoas sem coração.

You have no heart to give, but you take a heart.

O coração chega a queimar quando o nosso peito está vazio. Se alguém nos oferece o seu coração, aceitamos. Mas se não temos coração nenhum para oferecer de volta, ficamos com um coração nas mãos que não é nosso. Ele arde, magoa. Vemos o sorriso no rosto daquele coração delicado, docemente pedindo retribuição. Sentimos o nosso coração lá longe e reconhecemo-nos na dor deste que agora usamos para tapar o buraco no nosso peito. E amaldiçoamos o dia em que mandámos o coração embora.

Give no heart, take your heart back.

Mas o coração também é um orgão que volta a crescer. É preciso tempo e cuidado, mas ele reaparece. No dia em que ele reaparecer, aprende que o teu coração não se dá a ninguém. Quanto muito, empresta-se.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Desafio XXXIX- Resposta

Ele amou-te mas que importa isso para ti? Nada. Disse-te que o amor era inutil para ele , que era irrelevante. E quando um dia se foi embora, nunca mais voltou. Nunca mais voltou para ti. Mas para ti o amor não era inutil nem irrelevante. O amor era tudo o que te fazia levantar da cama no dia seguinte. E o amor dele, o ser dele, era o teu sol de Verão que aquece e ilumina.
Mas nunca mais ele telefonou. Nunca mais lhe ouviste o riso alto e exótico. Nunca mais viste o seu rosto tao belo, tao peculiar e desumanamente belo. Porque quando se foi embora, deixou-te o pedaço de coraçao de pano negro dele que te pertencia. Para nunca mais voltar. Porque o amor para ele era inutil mas sabia que para ti não era, tornou o sentimento real , para não ficares com nada. Amava-te, ele, te nunca esqueças disso. So que já não pode voltar.
Mas, às vezes, quando caminhavas na rua e alguem se parecia com ele uma esperança moribunda e triste nasciate no peito, os teus dedos ganhavam vida. O coraçao entregava-se ao fogo expectante e ardia de tristeza. Porque não era ele, sabias que não era ele. Mas o teu ser preferia essa ilusao, essa pequena ilusao de felicidade durante uma fracçao de tempo. Porque já nem o consolo da ausencia de vida tinhas, tinhas menos do que nada e nada disto é possivel. Tinhas muito menos do que nada e, nesses momentos, abrias o cofre e seguravas com carinho o pedaço de coraçao de pano dele. Era tao fragil e ele é este ser, que um dia se foi embora e no dia anterior já não estava mais contigo.
O tempo passa sempre e congela sempre a dor mais crua e aguda. A tua memória dele tornou-se desfocada, perdeu nitidez. Deixaste de te lembrar exactamente de quem ele era, deixaste de ter um referencial para procurar. Continuaste à espera do telefonema mas como nunca o recebeste habituaste-te a não espera-lo.
E , um dia, ias a caminha na rua e ouviste o riso dele. O teu coração reconheceu-o de imediato. Lembraste-te que nunca te telefonou e que agora estava ali, igual ao que sempre foi. E deste-lhe o teu pedaço de coraçao de pano que lhe pertencia, que lhe pertenceu durante todos estes anos porque tu já não eras tu. Porque ele era o teu Sol de Verão e na ausencia dele tornaste-te na pessoa que ama o Inverno. A memoria dele passou a ser desfocada, o teu coraçao ardeu. Tu já não és tu por todas as noites que não dormiste à espera do telefonema dele, do telefonema que ele te prometeu que nunca faria.
Ele tornou o teu amor inutil.

Desafio XXXVIII- Resposta

Ah não te consideras pouco ou mesquinho? Não claro que não, como poderias tu, tudo o que vês é tudo o que és. Vês pouco, julgas muito, condenas em vácuo. Não importa o que almejas ser o teu horizonte é demasiado curto .
Mas poder-me-ias ouvir , só por respeito. Só por uma questao de não deixares transparecer que essa tua opiniao mediocre que te define é tudo o que tens, se a puserem em causa morres vivo e amanha estaras morto, estando vivo ainda.
Oh vá lá não faças isso não me tentes distorcer e estrangular o coraçao até te estou a tentar ajudar. Estou-te a tentar dizer que tens uma leve hipotese. Não reajas assim ao choque, não o critiques, não o abomines. Não o condenes porque vês um pecado monstruoso. O choque é te util para ti enquanto Homem que deseja ser melhor. O choque é te util porque te obriga a reflectir. O choque faz-te ponderar sobre tudo o que tu já conheces, sobre tudo o que consideraste que já conhecias. Sei, eu sei, o choque bruto e aberto é extraordinariamente desconfortavel. Tens a tendencia da repulsa, da repugnancia , tens intrinseco em ti o acto de virar a cara e condenar sob julgamento moral.
Sob o teu julgamento moral, não ajas dessa forma de pessoa minuscula que diz que o seu valor moral é o valor moral do mundo. Sabes que o não é, tens as tuas opiniões que são verdade absoluta para ti. E é isso que o sentimento de choque explicito te faz. Reflectes sobre as tuas opinioes, consolidas as tuas teorias ou deixas a mente fluir para encontrares outras. O choque é o exagero máximo que te deixa formular uma opiniao fudnamentada. Uma reflexao válida. Porque, ouve-me, não importa se o que pensas é verdade absoluta, interessa que seja válido. Os argumentos têm de ser válidos, a verdade não deixa de ser sempre subjectiva.
Oh vais morrer assim, de mansinho. Nem as tuas cinzas vao conseguir não serem apenas isso. Pedaços de uma existencia pequena e mediocre, altamente parasita. Porque? Porque?! Porque nunca quiseste ser salvo pelo sentimento de choque, pela repulsa do choque. Levantaste a mao e condenaste porque para ti, para a tua verdade absoluta ,era pecado.
Mas normalmente o choque é fundamentado. É valido. Normalmente, o choque é uma forma extraordinária e perspicaz de te fazer passar uma mensagem de uma forma tao excentrica que te obriga a reflectir sobre ela. O choque é o inverso da discriminação, dos tabus, das convençoes sociais visiveis e invisiveis. O choque é te util e tu sempre o condenaste. Morrerás porque recusaste ser salvo por esse sublime sentimento que te alcança quando podes não ter razao. E morrerás assim, pequeno e mediocre. Parasita. E ninguem chorará por ti porque nunca causaste choque algum. Nem quando agias sob pensamentos radicais extremistas, cheios de uma falta de humanidade decorada com carnificina. Ninguem se importará porque nunca causaste choque, foste simplesmente mais um inutil cru que viveu neste mundo. E nem sequer foste bom o suficiente para esse papel.
Ironico, não? Devias ter-me ouvido porque eu fui educado pelo sentimento de choque em bruto.

Desafio XXXVII - Resposta

Estava lá sentado calmamente. Confortavel e dístraído enquanto o vento marítimo brincava com o seu cabelo vermelho. Parecia absorto do mundo que escorria debaixo dos olhos de mar dele. A vida que sustentava a existencia da praia era lhe tao distante e estava tao perto.
Tinha sempre momentos daqueles em que o mundo circundante tornava-se desfocado porque estava em auto-reflexao e não se apercebia do quanto atraia as mulheres com a sua beleza peculiar e postura carismática. Não queria saber, intrinsecamente, sabia so por respirar que nenhuma delas o interessava.Se fossem carismáticas não se exibiam daquela forma tao banal.
E esta percepção sempre foi a sorte estranha que o acompanhou. Não era sortudo numa tonalidade aleatoria, tinha sorte aos jogos que exigiam um raciocinio astuto. Alias, era mestre nesses jogos que favoreciam quem tinha uma percepçao perspicaz rapida da realidade. Ele era um estratego brilhante. Insconscientemente, inatamente, inocentemente brilhante.
Bebeu devagar o café. Fumou devagar . Deuses, ele tinha sorte ou já não estaria vivo. Mas, ao mesmo tempo, tinha mérito. Era mestre em aproveitar as oportunidades que surgiam quando nasciam dos seus dedos. Sempre foi mestre em morrer honradamente pelo ideal que o move. Sempre procurou problemas existenciais que lhe acrescentavam uma certa irresponsabilidade e sempre teve perspicácia suficiente para aprender com eles e sair vivo assumindo-se na maior plenitude de toda a liberdade que podia ter. E isto não foi sorte, a sorte vem depois. Sempre foi uma mistura de favorecimento não-aleatório do Universo com a mente aberta e astutamente perspicaz dele.
A vida continuava a escorrer na praia, eram os ultimos dias de Verão. O mar nunca parecia tao bonito como nos ultimos dias de Verao. O fim das coisas enche-as de uma beleza utopica.
E ele sempre teve esta mente minuciosa e consciente. O mar de Inverno, violento e triste, sempre o fascinou mais. O mar de Inverno era so seu porque ele era dos unicos que amava verdadeiramente o mar. E isto não é sorte a sorte vem depois.
Encostou-se para tras e riu-se baixinho e discretamente. As mulheres que o rodeavam devem ter pensado que era louco e ele confirmou a sua teoria. So um louco reconhece outro louco e se sente tao confortavel ao ponto em que descobre que loucos são os que não são loucos. São tao desinteressantes que são loucos, negativamente. Como elas. Vazias. Se não fossem inócuas seriam loucas e se fossem loucas o não encontravam atraentemente louco. Viam alguem igual a elas.
Conseguia, no final, nunca errar um pensamento sensorial porque, sempre brilhante, começava por se deixar fascinar por aquilo que passa despercebido a maioria das pessoas. Os pequenos pormenores que ninguem considera relevantes . Não tinha sorte, tinha sorte por saber esmiuçar espontaneamente as oportunidades que o espirito dele criava.
Sentou-se de novo direito na cadeira. Era uma sorte gostar mais do mar de Inverno. Não era uma sorte ser o ser que ama o mar, que procura o sentimento de paz e faz da praia um Santuário. Isto não é sorte, é ele que é este ser suficientemente astuto para ser abençoado com a sorte.

Desafio XL

Wings para Alice in Wonderland:



Alice in Wonderland para Ricardo:


Ricardo para Wings:

"Não admira, pois, que o mundo vá de mal a pior e que os males aumentem cada vez mais, à medida que aumenta o tédio, e o tédio é a raiz de todo o mal. A história deste pode acompanhar-se desde os primórdios do mundo. Os deuses estavam entediados, pelo que criaram o homem. Adão estava entediado por estar sozinho, e por isso foi criada Eva.

Assim o tédio entrou no mundo e aumentou na proporção do aumento da população. Adão aborrecia-se sozinho, depois Adão e Eva aborreceram-se juntos, depois Adão e Eva e Caim e Abel aborreceram-se em família; depois a população do mundo aumentou e os povos aborreceram-se em massa. Para se divertirem congeminaram a ideia de construir uma torre tão alta que chegasse ao céu. Esta ideia, por sua vez, é tão aborrecida como a torre era alta, e constitui uma prova terrível de como o tédio se tornou dominante."

(Soren Kierkegaard)

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Desafio XXXIX - Resposta

(A origem do Mundo)


Foi o meu primeiro namorado.
O amor escorregava-nos das mãos desastradas. Éramos dois inexperientes com vontade de tentar e por isso cada gesto tosco tinha um gosto especial. Reunimos, sem saber, as condições que fazem duma receita a melhor do mundo.
Foi a primeira vez que senti um descontrolo das minhas veias e um bater do coração que me assustou como se a morte tivesse chegado.
E depois foi a tua mão no ombro, aquele abraço apertado antes da música que circundava a casa que cheirava a cera. O teu perfume que cheirava a cera como a casa. Dançamos num jardim onde as rosas espreitavam invejosas o nosso amor inocente. E depois fugimos para aquele recanto, tu descobrias quem eu era e eu sabia que a morte afinal era o maior prazer que podia ter.
Tudo foi virgem e solitário, impregnado dum suor delicioso que ainda hoje existe quando abro a caixa das recordações e vejo a tua fotografia naquela tarde.
E sempre que a vejo, amo-a perdidamente.
Porque foi a primeira. E foi ali que tudo começou. A origem do meu mundo começou contigo e com o teu beijo de saliva que cheirava a futuro.

Só que na verdade foi só isso. O amor que arde por tudo quanto foi maravilhoso é uma bala disparada eternamente. E se por um acaso me desligar desse fotografia que me traz a origem, não há muito que fique da tarde que passei contigo. Ela existe em mim desta forma, porque foi a primeira.

Porque a origem do Mundo não é mais do que uma coisa tremendamente feia e desconcertada, errada em cada segundo de existência. Mas porque é a origem do futuro, torna-se linda.

Desafio XXXIX - Resposta

Observo-o sentado, pela janela. Chego a casa, olho para o prédio de fronte, e lá está ele, de costas totalmente descoladas da cadeira. Está sempre curvado, marreco, a empurrar os ombros já de si franzinos para dentro enquanto dactilografa como se fosse uma secretária antiga. Apetece quase dar-lhe uma sapatada no cerro e gritar-lhe, “faz-te homem!”. A secretária está tão impecavelmente aperaltada como o fato apertado que o faz parecer o moço que entrega as alianças num casamento. Nunca sai, e está sempre só, sempre de nariz enfiado na folha. Ele faz-me perguntar que tanto tem para escrever alguém que se afasta tão pouco de casa.

Topei-o há anos. Se jogássemos à sueca saber-lhe-ia a mão só de o ver tremelicar e suar nervoso. Interpretaria os seus tiques no olhar como a sorte a trazer-lhe um ás de espadas. Saberia ler uma desistência no remover cauteloso dos óculos seguido de um coçar de pálpebras. Por isso sei bem que toda aquela calma é como uma fachada imaculadamente branca num prédio devoluto. As suas palavras tresandam a fracasso.

Eu já as li. Por vezes, pega nas folhas e arruma-as direitinhas, como camisas, dentro de uma arca. Outras vezes, poucas vezes, atira-as pela janela fora. As folhas voam e acertam nas janelas dos outros. As pessoas abrem e apanham-nas. Um dia o vento trouxe-me algumas.

Se não o conhecesse, quase diria que ele não passa de mais um heterónimo do Pessoa.

Eram palavras tão retorcidas como a figura que as pariu. Eram simples, mas estavam organizadas de forma desconcertante. As ideias que o seu conjunto formava tanto podiam ser incrivelmente profundas como de uma banalidade gritante. A gosto do leitor. O que ele escreve são jogos de sorte ou azar. Ele joga à sueca com as palavras. Porque testa a sorte a cada janela onde as folhas se vão colar. E eu, topei-lhe logo o jogo todo.

Ele tenta passar-se por um doutor da alma, por um engenheiro das emoções, por um pastor de sensibilidades. Nesta superficialidade transvestida de intelecto, o leitor é conduzido à sala de tribunal a decidir as reais intenções do escritor. Pois eu quero fazer uma declaração a esse juri distraído, a essa espécie de divindade que pode simpatizar e ser benevolente com ele, mas que não conhece a verdade. Senhoras e senhores do juri: este indivíduo é pop pastilha elástica: agradável ao ouvido, deixa um gostinho bom a algo que faz sentido. Mas substância tem zero. E a filosofia de vida subjacente é desprezível.

Aquelas palavras não me ensinam nada. Que me pode ensinar que sabe tão pouco da vida? Ainda assim, as malditas folhas colam-se nos vidros. E é preciso raspá-las cuidadosamente e ligar pouco ao espelho baço que elas são de nós mesmos.

Sim, observo-o sentado, pela janela. Ele mora em frente a mim, não posso evitar vê-lo. Mas observo-o em doses moderadas, e nunca por muito tempo. Eu não passo muito tempo em casa. Prefiro fechar a janela, vestir um casaco grosso, levantar-lhe a gola e enfrentar o Janeiro frio da rua. Ele é exemplo apenas para as minhas horas curtas de coragem e sede de viver. Ele é passatempo apenas para o tédio. E só de falar dele já me deu o sono.

Boa noite.