quarta-feira, 14 de julho de 2010

Desafio XXVII - Resposta

E é por isso que te digo que este livro é dos meus favoritos. Aquele Wilde, era um tipo bem engraçado. Era o mestre daquelas frases bem metidas, que encaixam perfeitamente no conteúdo, que parece que nos iluminam cá dentro. Dá-nos quase uma experiência religiosa assim do nada. Era um génio. Era um tipo formidável, e teve uma vida única. Quem me dera ter vivido no tempo dele. Era o único homem com quem iria para a cama. Mesmo não sendo gay como ele.

Ele era gay? Não fazia ideia.

Sério? Então mas não gostas também do livro? Disseste-me que já tinhas lido...

Sim, eu li o “Picture of Dorian Gray”. Verdade. Não entendo a tua surpresa. É só porque não sei nada sobre o autor, nem sobre as circunstâncias em que o livro foi escrito? Bom, eu tento sempre não saber nada sobre as pessoas por detrás das obras. Gosto depensar na obra de arte como a única coisa do Mundo que não tem referencial fixo, que não precisa que contemos uma história nem lhe colemos rótulos só porque sim.

Sim, mas há algumas coisas que são o mínimo. Não podes entender a obra sem conhecer o autor.

Poder, posso. Não concordo nada com isso. Uma das poucas frases que conheço do Wilde é uma em que ele dizia algo como que “aquilo que a arte espelha é o espectador, não o artista”. Não sei de onde vem, acho que é uma frase dessas que dizes que nos iluminam por dentro quando as ouvimos, que parece que quase temos uma revelação. E de facto, é muito directa, muito explícita. E eu concordo com ela. O melhor escritor é aquele que se consegue apagar completamente, é aquele que nos dá a sensação de estarmos a ler a história, não a ler as opiniões do autor. Ler só opiniões de alguém seria mesquinho e desinteressante. Acho que é por isso que lemos romances em vez de lermos cartas de pessoas famosas. As cartas espelham apenas o indivíduo. Os romances espelham-nos a nós, espelham o Mundo, traduzem verdades bem mais fundamentais sobre o que somos. O romance é escrito por uma pessoa, sim. Mas de certa forma, o a história do romance é construída por todos os que o lêm.

Mas sabes que se isso fosse assim, tudo seria uma obra de arte. Ou pelo menos teria o potencial para sê-lo. E ainda que seja o espectador a dar o significado de uma obra, muito para além do que o autor quis ou previu, pelo menos existe essa perspectiva, a do autor. E eu acho que só te enriquece se a conheceres. Para além de que, acima de tudo, é o autor quem está lá. O Eça de Queiroz dizia que a um homem célebre até as contas do alfaiate se devem publicar. O génio e o brilhantismo estão no autor. Não em quem lê.

Sim, mas repara que isso pouco importa. Que interessa saber que o Wilde era gay para entenderes o arquétipo de pessoa que é o Dorian Gray? No final, a arte vai sempre buscar os conceitos e as referências do espectador. O melhor escritor é o que se socorre desse imaginário do leitor, e nunca chega a precisar de ser óbvio ou explícito em demasia. Repara, o Wilde nunca tem que te dizer que os pecados do Dorian Gray eram transferidos para o quadro. Ele só tem que o narrar.

Sim, isso seria muito bonito, mas nunca é assim tão trivial. Repara bem que até numa frase tão directa como essa que disseste, eu estou a ver algo muito diferente de ti. Enquanto tu achas que o Wilde queria dizer com isso da arte espelhar o espectador e não o artista, que é o espectador quem dá o conteúdo último de uma obra de arte, eu acho que ele queria constatar unicamente que o espectador é essencial no processo de criação, que nenhuma arte surge se não for um diálogo entre o emissor, o artista, e o receptor, o espectador. Ou seja, que ela é sobre e para o espectador, e não uma mera narrativa da vida interna do autor. Ou, por outras palavras, que para fazer arte é preciso que essa arte toque alguém, que fale sobre algo geral à humanidade, que não sejam apenas trivialidades da vidinha privada do autor. E o que me leva a dizer-te isso? O facto de eu achar que se não fosse assim, o Wilde estaria a contradizer-se. Afinal, ele esforçou-se muito para escarrapachar a sua personalidade em tudo o que escreveu. O arquétipo do Dorian Gray, como dizes, não está escrito nem definido analiticamente. Mas a verdade é que não há muitas formas de o interpretar. A história, isto é, o autor, conduz-nos a isso.

Sim, mas o Dorian Gray gera-se nas nossas experiências, não é uma face do próprio Wilde. E nesse sentido, o Dorian Gray espelha um certo tipo de pessoa que nós conhecemos. Memórias diferentes fazem-nos identificá-lo com pessoas diferentes. E repara, diferentes experiências conduzem-nos a diferentes conclusões. Tu sabes tanto da vida do Wilde, usas isso para interpretar a frase dele de uma maneira; eu, para ter uma interpretação legítima da mesma frase, não tive que saber nada sobre a vida dele. Então de que te serviu todo esse conhecimento? Aliás, se alguém pudesse escutar a nossa conversa, quantas pessoas concordariam ora com um, ora com o outro? E quantas não nos chamariam burros, por nos estar a escapar algum significado que para si é claro?

Sim, talvez. Mas terás que conceder que, mesmo que a obra de arte espelhe o espectador, pelo menos é o autor quem orienta o espelho para o aspecto específico que quer ver reflectido. E isso já tem que valer de alguma coisa. Porque toda a gente é capaz de se ver ao espelho. Mas nem toda a gente é capaz de manipular um espelho.

Sim, talvez.

Ora, mas que importa tudo isto. Gostaste do livro?

Gostei sim. Bastante.

Ora ainda bem. Mandamos vir outro café?

2 comentários:

  1. Gostei, sobretudo da forma como consegues expor dois pontos de vista tão opostos de forma tão clara, como se de facto conseguisses "estar na pele" de cada uma das personagens e soubesses exactamente o que cada uma delas pensa!

    Ao ler o teu texto identifiquei-me obviamente mais com uma das personagens do que com outra e concordo no geral, com os argumentos que ela apresenta.

    E por último, deixo aqui o meu contributo à discussão das duas personagens que representas.

    "Porque toda a gente é capaz de se ver ao espelho. Mas nem toda a gente é capaz de manipular um espelho."

    E eu diria que a verdadeira arte é aquela que "consegue" ser um espelho. Aquela que faz o espectador olhar e ver-se. Ainda que seja de forma deturpada e não esteja minimamente relacionada com as intenções do artista. A arte é aquela que desperta o espectador. E isso, não é qualquer um que consegue.

    E se manipular um espelho pode ser considerado uma forma de arte, então que o seja sem esse objectivo. Porque manipular o espelho e orientá-lo para uma determinada visão é, de facto, espelhar o "manipulador". E por mais interessante e válida que seja essa perspectiva, ela é, talvez conhecimento. É talvez argumentação. Mas não é arte. Ou não devia, na minha opinião =)

    Parabéns, por estimulares a reflexão!

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  2. O teu texto esta genial! A argumentaçao dificilmente podia ser mais coerente e correcta. E, enquanto narrador, é dificil saber qual e a tua opiniao perante a frase o que torna o teu texto ainda mais genial. Desde a primeira linha ate a ultima, honraste a frase e honraste Oscar Wilde! Gostei!=)

    PS: Alice, a melhor arte é sem duvidaaquela que funciona como o teu espelho, onde tu descobres quem és. Mais, onde descobres o que queres ser. Nao podia estar mais em concordancia contigo!

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