Ele era gay? Não fazia ideia.
Sério? Então mas não gostas também do livro? Disseste-me que já tinhas lido...
Sim, eu li o “Picture of Dorian Gray”. Verdade. Não entendo a tua surpresa. É só porque não sei nada sobre o autor, nem sobre as circunstâncias em que o livro foi escrito? Bom, eu tento sempre não saber nada sobre as pessoas por detrás das obras. Gosto depensar na obra de arte como a única coisa do Mundo que não tem referencial fixo, que não precisa que contemos uma história nem lhe colemos rótulos só porque sim.
Sim, mas há algumas coisas que são o mínimo. Não podes entender a obra sem conhecer o autor.
Poder, posso. Não concordo nada com isso. Uma das poucas frases que conheço do Wilde é uma em que ele dizia algo como que “aquilo que a arte espelha é o espectador, não o artista”. Não sei de onde vem, acho que é uma frase dessas que dizes que nos iluminam por dentro quando as ouvimos, que parece que quase temos uma revelação. E de facto, é muito directa, muito explícita. E eu concordo com ela. O melhor escritor é aquele que se consegue apagar completamente, é aquele que nos dá a sensação de estarmos a ler a história, não a ler as opiniões do autor. Ler só opiniões de alguém seria mesquinho e desinteressante. Acho que é por isso que lemos romances em vez de lermos cartas de pessoas famosas. As cartas espelham apenas o indivíduo. Os romances espelham-nos a nós, espelham o Mundo, traduzem verdades bem mais fundamentais sobre o que somos. O romance é escrito por uma pessoa, sim. Mas de certa forma, o a história do romance é construída por todos os que o lêm.
Mas sabes que se isso fosse assim, tudo seria uma obra de arte. Ou pelo menos teria o potencial para sê-lo. E ainda que seja o espectador a dar o significado de uma obra, muito para além do que o autor quis ou previu, pelo menos existe essa perspectiva, a do autor. E eu acho que só te enriquece se a conheceres. Para além de que, acima de tudo, é o autor quem está lá. O Eça de Queiroz dizia que a um homem célebre até as contas do alfaiate se devem publicar. O génio e o brilhantismo estão no autor. Não em quem lê.
Sim, mas repara que isso pouco importa. Que interessa saber que o Wilde era gay para entenderes o arquétipo de pessoa que é o Dorian Gray? No final, a arte vai sempre buscar os conceitos e as referências do espectador. O melhor escritor é o que se socorre desse imaginário do leitor, e nunca chega a precisar de ser óbvio ou explícito em demasia. Repara, o Wilde nunca tem que te dizer que os pecados do Dorian Gray eram transferidos para o quadro. Ele só tem que o narrar.
Sim, isso seria muito bonito, mas nunca é assim tão trivial. Repara bem que até numa frase tão directa como essa que disseste, eu estou a ver algo muito diferente de ti. Enquanto tu achas que o Wilde queria dizer com isso da arte espelhar o espectador e não o artista, que é o espectador quem dá o conteúdo último de uma obra de arte, eu acho que ele queria constatar unicamente que o espectador é essencial no processo de criação, que nenhuma arte surge se não for um diálogo entre o emissor, o artista, e o receptor, o espectador. Ou seja, que ela é sobre e para o espectador, e não uma mera narrativa da vida interna do autor. Ou, por outras palavras, que para fazer arte é preciso que essa arte toque alguém, que fale sobre algo geral à humanidade, que não sejam apenas trivialidades da vidinha privada do autor. E o que me leva a dizer-te isso? O facto de eu achar que se não fosse assim, o Wilde estaria a contradizer-se. Afinal, ele esforçou-se muito para escarrapachar a sua personalidade em tudo o que escreveu. O arquétipo do Dorian Gray, como dizes, não está escrito nem definido analiticamente. Mas a verdade é que não há muitas formas de o interpretar. A história, isto é, o autor, conduz-nos a isso.
Sim, mas o Dorian Gray gera-se nas nossas experiências, não é uma face do próprio Wilde. E nesse sentido, o Dorian Gray espelha um certo tipo de pessoa que nós conhecemos. Memórias diferentes fazem-nos identificá-lo com pessoas diferentes. E repara, diferentes experiências conduzem-nos a diferentes conclusões. Tu sabes tanto da vida do Wilde, usas isso para interpretar a frase dele de uma maneira; eu, para ter uma interpretação legítima da mesma frase, não tive que saber nada sobre a vida dele. Então de que te serviu todo esse conhecimento? Aliás, se alguém pudesse escutar a nossa conversa, quantas pessoas concordariam ora com um, ora com o outro? E quantas não nos chamariam burros, por nos estar a escapar algum significado que para si é claro?
Sim, talvez. Mas terás que conceder que, mesmo que a obra de arte espelhe o espectador, pelo menos é o autor quem orienta o espelho para o aspecto específico que quer ver reflectido. E isso já tem que valer de alguma coisa. Porque toda a gente é capaz de se ver ao espelho. Mas nem toda a gente é capaz de manipular um espelho.
Sim, talvez.
Ora, mas que importa tudo isto. Gostaste do livro?
Gostei sim. Bastante.
Ora ainda bem. Mandamos vir outro café?
Gostei, sobretudo da forma como consegues expor dois pontos de vista tão opostos de forma tão clara, como se de facto conseguisses "estar na pele" de cada uma das personagens e soubesses exactamente o que cada uma delas pensa!
ResponderEliminarAo ler o teu texto identifiquei-me obviamente mais com uma das personagens do que com outra e concordo no geral, com os argumentos que ela apresenta.
E por último, deixo aqui o meu contributo à discussão das duas personagens que representas.
"Porque toda a gente é capaz de se ver ao espelho. Mas nem toda a gente é capaz de manipular um espelho."
E eu diria que a verdadeira arte é aquela que "consegue" ser um espelho. Aquela que faz o espectador olhar e ver-se. Ainda que seja de forma deturpada e não esteja minimamente relacionada com as intenções do artista. A arte é aquela que desperta o espectador. E isso, não é qualquer um que consegue.
E se manipular um espelho pode ser considerado uma forma de arte, então que o seja sem esse objectivo. Porque manipular o espelho e orientá-lo para uma determinada visão é, de facto, espelhar o "manipulador". E por mais interessante e válida que seja essa perspectiva, ela é, talvez conhecimento. É talvez argumentação. Mas não é arte. Ou não devia, na minha opinião =)
Parabéns, por estimulares a reflexão!
O teu texto esta genial! A argumentaçao dificilmente podia ser mais coerente e correcta. E, enquanto narrador, é dificil saber qual e a tua opiniao perante a frase o que torna o teu texto ainda mais genial. Desde a primeira linha ate a ultima, honraste a frase e honraste Oscar Wilde! Gostei!=)
ResponderEliminarPS: Alice, a melhor arte é sem duvidaaquela que funciona como o teu espelho, onde tu descobres quem és. Mais, onde descobres o que queres ser. Nao podia estar mais em concordancia contigo!