domingo, 18 de julho de 2010

Desafio XXVIII - Resposta

Há alturas em que me sinto a secar por dentro. Acontece-me muito em multidões, e no meio de conversa, mas também posso apenas estar comigo mesmo num diálogo surdo e introspectivo. Mas seco. Sinto-me secar. Sinto-me convencional. Sinto-me desligado de vida. Sinto-me sem pinga de sangue. Porque sangue é vida e, nesses instantes, vida eu não tenho. Vida, eu não conheço. O coração pára e eu seco. Vejo o meu rosto a ficar chupado e o corpo a comprimir-se, a colapsar sobre o seu centro de massa. Torno-me nada mais do que uma gigantesca verruga, ou um cepo, ou um peixe conservado em mar concentrado de sal, ou carne de fumeiro. Sinto-me o ramo proverbial da árvore que cai na floresta e ninguém escuta. E que por isso talvez não tenha caído nunca. E que talvez por isso não faça nenhum ruído.

Mas eu sei ressuscitar-me.

Basta num instante desamarrar-me da sanidade. Fazer “shhh” a todas as vozes que num barulho de fundo permanente me dizem “calma”; “isso não é normal”; “pensa bem”; “olha ali, que bonito”. Faço um gesto de silêncio a todas as vozes que me entretêm em vez de me distraírem, me mostram o bom caminho em vez do caminho certo, me orientam para os pensamentos positivos e me negam os pensamentos que se querem soltar desesperadamente das franjas da minha imaginação.

Basta num instante desligar-me da floresta de gente morta, cortar-me da árvore que me sustém nesta precariedade de estabilidade, desamarrar o meu pescoço da gravata das preocupações, escapar da sombra opressiva do futuro, desembaraçar-me do lamaçal da memória do passado. E sentir-me cair do referencial da minha vida, para voltar a renascer estremunhado, como um coice dado na cama antes de adormecer.

Basta inventar.

Basta pegar no carro à noite e conduzir tão depressa quanto o pé consegue carregar no acelerador, e entender quão pequena seria a volta de que o volante necessita para me levar para a faixa contrária. E começo a dá-la, movimentando a roda entre as mãos grau a grau. E sinto o medo a crescer em mim. E, no momento exacto, guino o volante para o caminho certo, para a faixa correcta, deixando o coração bem desperto, os sentidos alerta para as buzinas e os gestos e os gritos. E depois buzino também, muito alto, faço sinais de luzes ao calhas. Não passo despercebido.

Basta, ao quase morrer, escapar da morte.

Basta espreitar do parapeito de janelas e sentir o temor do grande desconhecido que está mesmo ali aos meus pés, do inferno que se abre cá em baixo nas pedras da calçada para me receber num abraço. E faço o mesmo em pontes, nas margens de rios, na praia, em todos os sítios onde a água me convide a repousar o meu pescoço quebrado nas suas correntes que tudo lavam. E faço o mesmo num avião, quando a torbulência causa calafrios derivados da pressão, vejo as asas a fazerem uma volta completa, as luzes da cabina a falharem, e escuto os gritos desesperados. E comento bem alto como vai fazer frio se o avião se partir ali tão alto, antes de cair. E faço o mesmo ao contrário, olhando de baixo para cima em vez de ser de cima para baixo. Levanto a cabeça para o topo dos prédios e para as esquinas dos monumentos, e sinto, vejo, a pedra e o vidro e o aço e o tijolo caíndo em flocos para cima da minha cabeça. E, depois, dou um passo atrás. Escapo da miragem do desastre. E sorrio, e canto “I’m singing in the rain”.

Basta, ao olhar a morte nos olhos, rir.

Basta olhar para a minha namorada e dizer-lhe que a vou deixar. Mesmo sem quaisquer intenções de fazê-lo. Basta sentir-lhe o tremor, as convulsões, o medo, para eu próprio experimentar o medo de perdê-la de vez. Vejo o buraco negro que a sua ausência deixaria na minha vida. E no momento seguinte, rindo e abraçando-a, sinto-me a pulsar de paixão, de uma paixão mais profunda e mais arrebatadora e mais irreversível do que as palavras jamais podem entender. E toco-lhe, como se fosse a última vez.

Basta, ao foder, fazer amor.

Basta ficar sozinho no escuro de casa e, a cada som, vislumbrar o vulto de um monstro disforme que se forma no corredor vazio, sombrio. E vejo-o. E ele cheira ao aroma fétido de enxofre. E sei que o inferno também está ali, a sugerir-se para mim. E fico quase desiludido quando acendo as luzes, e não está lá monstro nenhum. Basta caminhar pelas ruas da cidade onde sapatos caros jamais deixaram a sua borracha, e a cada passo imaginar outros, seguindo-me. E interpreto todos os sons como a iminência do golpe. Penso em como vai ser: uma só estocada com um ferro na cabeça? Talvez um pano com clorofórmio, ou mesmo algo mais subtil: um grito de “a carteira ou a vida”. E fico quase desiludido quando, dobrada a esquina, permaneço composto.

Basta, na rotina, gerar a surpresa.

Basta ficar sentado numa reunião de trabalho a congeminar a forma e o momento exactos para saltar da cadeira e esmagar o patrão. Verbalmente é demasiado fácil, demasiado cobarde. Preciso de agarrar uma caneta e mapear precisamente os pontos onde pretendo perfurá-lo. Preciso de agarrar nas folhas deste relatório, uma prova efémera de seis meses de trabalho, e ver-me a amachucá-las uma a uma. E enfio-lhe cada bola rugosa pela garganta, e digo “despeço-me” tantas vezes quantas as páginas do relatório. E vejo-me, como num filme, a sair a porta do meu emprego e para me ver numa avenida fria, onde centenas de pessoas avançam distraídas e apressadas. E a deter-me um momento, e a puxar a gola de um sobretudo contra o meu pescoço. E a sorrir. E na cena seguinte ver-me sentado num café em outra cidade, de barrete francês na cabeça. “Boa tarde, sou cliché profissional.” E saio da reunião da maneira mais mal-educada que consigo. Passo a ombreira da porta e estou na avenida, sempre movimentada. Componho a gola do sobretudo e entro numa tabacaria para comprar o jornal e procurar novo emprego.

Basta, na monotonia, encontrar balanço para a história da nossa vida. Basta inventar.

Basta, por um momento, ver e ser visto, sentir e ser sentido, rebentar com um estrondo medonho. Basta sentir o meu rosto chupado insuflar-se de medo, corar com o susto, e o meu coração explodir de volta à vida. Basta romper com os filtros do deve e do haver. Basta ser mais eu próprio do que gosto de confessar a mim mesmo. O que basta está em todo o lado.

Muitas vezes me pergunto como poderá alguém sentir seja o que for que há de bom na vida sem este pânico, seja ele provocado por actos ou por pensamentos. Talvez algures pelo Mundo existam pessoas que fujam da morte em vez de se rirem dela, que prefiram mecanicamente fazer amor com pessoas que não lhes provocam o menor temor. Que trabalhem repetitivamente e nunca ousem sonhar. E que prefiram viver sem sustos. Talvez. Mas se existirem, para mim são como ramos proverbiais de árvores na floresta, que se desprendem do tronco, que caem no chão e ninguém ouve. E, por isso mesmo, nunca existiram.

1 comentário: