sexta-feira, 30 de julho de 2010

Desafio XXX - Resposta

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente

Gosto de fingir a minha realidade. É por isso que escrevo peças de teatro, é por isso que sempre gostei de escrever argumentos e de me sentar no fundo do teatro. E de ver, como encenador, os actores mexerem-se como se fossem as minhas marionetas.

Nunca me preocupei em inventar histórias, tal como nunca desenhei de cabeça. Sempre usei a minha realidade como cenário, as minhas memórias enviesadas e os cheiros nostálgicos como jogos de luzes.
Sempre usei a minha tristeza como fingimento.

E quando nascia mais uma das minhas peças, eu fingia ali a minha vida. E a minha vida fingida, ultrapassada, interpretada era como se não fosse minha. Era como se se despegasse do meu corpo e pairasse ali no palco, por algumas horas. As pessoas riam e choravam, apontavam o dedo. As pessoas ridicularizavam, dramatizavam. As pessoas horrorizavam-se.
As pessoas expunham.
Eu fingia.
E eu estava lá no meio do público. Esquecia-me de quem era, e de quem fingia ser.
Não me lembro de ser tão feliz.

E era por isso que continuava a escrever a minha vida e a fingi-la. No pico do fingimento, eu era dolorosamente feliz.
Mas como o amor é uma faca de dois gumes, também o espectáculo chegava ao fim. E respeitosamente o público cumprimentava-me à saída e dizia-me “Que belo espectáculo”.

“Sou um belo espectáculo”, repetia para mim. E normalmente ficava no escuro da sala a fingir umas lágrimas. Porque não era capaz de terminar o argumento e precisava sempre de mais uma dose do meu vicio.
Nem que fosse para fingir que me fingia.

Desafio XXX - Resposta

Tudo o que me acontece de mal na vida é porque chego atrasado às coisas. A infância passou por mim enquanto estava distraído com televisões e jogos de computador. Falhei a adolescência querendo ser criança, perdendo-me na irresponsabilidade e nas perguntas. Falhei o começo da idade adulta querendo ser adolescente, buscando romances inocentes e procurando beijos em olhos que já haviam visto demasiado sexo. O tempo, para mim, foi sempre como a luz de uma estrela distante que só chega à Terra milénios após ter sido emitida. Passei a vida a correr atrás de estrelas.

E cresci, e envelheci, passando por anos sempre iguais, por oportunidades perdidas e outras nunca sequer começadas. Até que ela apareceu. As passadas escassas, os vestidos alegres, a pele delicada, o rosto sub-desenvolvido, a beleza de inocência perversa, e a expressão de Lolita. Ela não enganava ninguém. Quantos anos teria a menos que eu? Cinco, dez? O que é o tempo quando ninguém o conta? Era pouco mais que uma adolescente, e brilhava de intensidade no olhar. E por entre as curvas pubescentes do seu corpo tenro, eu fui queimando as etapas que desconhecera. Éramos irresponsáveis como crianças quando fazíamos amor em cemitérios, em casas de banho de supermercados, no meio de jantares de família. Éramos adolescentes idealistas nos beijos sôfregos trocados em tardes passadas em jardins, onde pelo meio de tantas conversas parecíamos querer descobrir um novo Mundo, uma nova ordem para as coisas. E éramos adultos à noite, em minha casa, quando ela mentia à mãe dizendo que estava em casa de uma amiga, fazia o jantar, lavava os pratos e o chão, depois chorava e dizia estarem ali fantasmas. E fumava descompassadamente. E por fim, mais calma, escrevia poemas com os quais me vinha acordar à cama. E fazíamos amor às quatro da manhã. Porque nenhuma outra altura do dia é mais propícia à intimidade da própria cama. E nesses momentos eu entendia que nela eu estava a vingar todas as fases do meu passado irremediavelmente perdido. O que eu não esperava é que essa sensação de chegar a tempo trouxesse um rasto amargo de antevisão do futuro, quase como se ao apanhar o tempo ele, cobardemente, de desmanchasse e revelasse logo tudo. E nesses momentos, eu sabia que iria perdê-la.

Perdi-a para os braços de outro porque cheguei tarde demais. Tal como me esqueci de viver cada uma das etapas da minha vida, esqueci-me de a viver a ela. Ironicamente, dizia-me ela, porque eu era demasiado adulto. Mas como pode ser adulto alguém que vive sempre aquém do seu tempo? Como poderia eu estar velho se todas as experiências que deixam rugas nos olhos e tremores nas mãos não me tinham ainda acontecido? Por isso mesmo, dizia-me ela, porque eu sou demasiado contido, demasiado sério, demasiado bem-comportado. O tempo foge-me, dizia ela, porque eu tento agarrá-lo. Porque eu exigo descer as escadas e tocar-lhe no ombro quando ele passa à minha porta. E assim, nunca me liberto de mim mesmo, nunca me guio senão pela consciência. Eu encontraria o tempo, dizia-me ela, se parasse de tentar. Só assim seria criativo. Só assim poderia vivê-la a ela. Eu encontrá-la-ia se começasse a beber e a fumar. É pelos maus hábitos, pelos vícios, que nos libertamos dos espartilhos da consciência e permitimo-nos ser verdadeiramente livres, livres, livres para imaginar e criar e entender a dimensão livre dos espaços que a razão não enche. Mas o meu mau hábito, o meu vício, dizia-lhe eu, era ela. Não havia espaço para outros na minha vida.

Perdi-a para os braços de outro porque cheguei tarde demais. O outro sabia vivê-la. Partilhava noites de álcool e tabaco em varandas e mesas de café. Só a minha cama não a perdeu. Como amantes que ficámos, perdemos os últimos traços de sanidade e contenção. E desfrutámos dos nossos corpos sem limites, sem pejo em deixar escapar aquilo que desejávamos sem sequer o confessar a nós mesmos. Num êxtase de paixão, nús e em cima da cama, ela disse-me plena de vergonha que fantasiava com o dia em que eu a usaria para trair alguém com quem estivesse comprometido. E repetiu-o. De cada vez que era formulada, a ideia parecia-lhe melhor. E afirmou saber que não era saudável, que não queria sequer que eu o fizesse. Mas que esse seria o pico do vício, a heroína do nosso amor sem limites. Todas as boas histórias exigem vítimas. E ela, a minha Lolita transformada em Diabo, queria um sacrifício, queria que lhe entregasse um cordeiro inocente, queria ver a minha moral esmagada pela nossa luxúria. Não lhe respondi. Mas nesse dia estabeleceu-se entre nós um pacto silencioso que foi selado com um beijo na testa e uma ausência de meses. Não mais a teria na minha cama até existir outra estrela na minha vida.

Estrelas, no céu, há muitas. Mas desde criança que foram poucas aquelas que eu conseguia fixar. E esta, esta era a mais brilhante de todas. Mais uma vez cheguei tarde, desta vez ao amor a sério. Porque sim, vivi paixão e luxúria suprema, mas agora estava apaixonado pela primeira vez. Logo agora, tão tarde. Tarde demais, talvez, porque eu tinha assinado um contrato para vender a alma ao Diabo. E como o Diabo o sentia, o cheirava! O Diabo começou a contactar-me todos os dias. A tentar diminuir o brilho da minha nova estrela. O Diabo detestou-a desde o início. Era demasiado adulta, tal como eu. Demasiado contida. Não chorava nem dizia poesia, nem usava vestidinhos como as Lolitas. Era como uma alma gémea para mim.

O Diabo, ao contrário de mim, estava sempre lá antes do tempo. O Diabo comandava o tempo, segredava ao ouvido do tempo o que iria acontecer a seguir. E talvez por isso eu tenha aguentado o seu choro e poesia, as suas constantes implosões, supernovas mais do que anunciadas cada vez que o tempo me dizia que eu iria perdê-la. Porque, apesar de tudo, ela foi a minha janela para o futuro. Ela ensinou-me o valor de me libertar de mim mesmo. E agora, eu queria fazê-lo, queria encontrar a minha inspiração e criar. Só que esse momento em que toda a minha criatividade se expandiria era demasiado sagrado para o dar ao Diabo. Não poderia ser desperdiçado com a impaciência de quem cresceu demasiado depressa. Esse momento era devido a quem me soubesse dar o seu tempo.

E por isso quando o Diabo me veio visitar a casa, um dia, de surpresa, apanhou-me de saída. Eu sabia que o Diabo estava por perto, que chegara para consumir o meu corpo e com isso reclamar a minha alma. E eu vi o Diabo ao fundo da rua. Mas ainda assim, como sempre, saí de mãos dadas com a estrela que agora iluminava a minha vida. Ainda assim, como sempre, agarrei-a pela cintura e beijei-a, tentando contar os segundos de perfeição que o toque do amor permite. Ainda assim, como recentemente tenho feito, acendi um cigarro e perdi-me no agudo bater do fumo no fundo dos pulmões. Imobilizando o fumo dentro de mim, fechei os olhos, e passei o cigarro a ela, à minha estrela, àquela com quem já não quero mais agarrar tempo nenhum. Apenas desfrutar do tempo que o tempo me dá. E juntos, seguimos o nosso caminho.

E neste pequeno gesto, na intimidade de uma resistência que se quebra, de uma barreira que se pula, eu traí o mesmo Diabo que queria que eu traísse a única luz de esperança na minha vida. Neste pequeno gesto, eu quebrei o contrato. E a minha alma, aprisionada pelo peso de chegar sempre tarde durante tanto tempo, estava agora solta para finalmente expressar toda a sua beleza e criatividade. E hoje a minha alma ascende junto com o fumo todas as noites, em direcção às estrelas.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Desafio XXX


O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente


Autopsicografia, Fernando Pessoa

Alice in Wonderland para Ricardo:

"Pelo contrário, prova que os seus talentos de destruidor de sonhos permanecem intactos ao beijar Miss Acácia à saída do comboio fantasma. (...)
Miss Acácia dá uma passa no cigarro de Joe. A intimidade do gesto faz-me tão mal como o beijo"

A mecânica do coração- Mathias Malzieu.


Ricardo para Wings:

“Como será estar contente?
Lançar os olhos em volta,
moderado e complacente,
e tratar com toda a gente
sem tristeza nem revolta?
Sentir-se um homem feliz,
satisfeito com o que sente,
com o que pensa e com o que diz?
Como será estar contente?"

António Gedeão



segunda-feira, 26 de julho de 2010

Desafio XXIX - Resposta

E como nasci? Por um quase. Podia ser outra. Podia ser um homem. Felizmente nasci mulher. E vaidosa. Prefiro que saia um bom retrato meu no jornal do que os elogios.



Como é que eu nasci? Foi um acaso. E nasci mulher. Podia ter sido um homem. Infelizmente, sou uma mulher fechada num mundo estridente de outras mulheres. Num mundo agudo, berrante e descaracterizado de corpos com mais silicone do que entranhas.

Fecho a porta de casa. Abandono o salão de cabeleireiro, as lojas de roupa, as sapatarias e entro no primeiro salão de jogos que encontro para jogar matraquilhos. Aqui há um sossego de vida. Porque há barulho, há asneiras e há cervejas.
Normalmente, o cor-de-rosa fura-me os olhos e eu tenho uma natureza sensível como a maior parte dos homens. Porque as mulheres são muros de betão disfarçados. Mascaram-se de romantismo e de histórias de amor. Vêem-se ao espelho dez vezes por hora para garantirem que não perdem a Cinderela que compraram. Porque raptaram uma fada madrinha e a mantêm na despesa a fabricar milagres.

Há muita ligeireza e cor na vida das mulheres. Mas é uma vida demasiado dura porque é demasiado falsa.
E nunca me incomodou a futilidade. Sempre preferi a honestidade de um belo corpo do que a sabedoria de um belo cérebro. Amar a inteligência é falta da própria inteligência.

E é por isso que já amei homens. Porque destilam beleza na forma como vestem t-shirts pretas se riem infantilmente de piadas ordinárias. Na forma como desejam impulsivamente os segredos do Mundo.
E é por isso que já amei homens fúteis. Como eu.
A diferença é que encomendo os sapatos e maquilhagem pela internet. E vou ao cabeleireiro uma vez por ano para evitar aqueles sorrisos de plástico e os conselhos vomitados para destruir adversárias.

Também adoro ver-me ao espelho, arranjar-me e sentir-me linda. E sair para o salão de jogos e sentir-me tão bem, que me esqueço de quem sou e dou o meu suor pela minha equipa enquanto gritamos todos e eu marco mais um golo. Gosto dessa beleza selvagem e do facto da vida saber-me bem. É a minha futilidade.

Mas nasci mulher. E sabes que mais? Ainda bem. Se fosse um homem, seria gay.

domingo, 25 de julho de 2010

Desafio XXIX- Resposta

Sempre disse que preferia morrer.
Sempre disse que o coração não estava a venda. E ele sempre quis ser isso, uma brisa fresca numa tarde de Verão que podia seguir qualquer direcção. Se te ama é por isso, sempre desejou ele essa liberdade sublime que so pode existir na mais doce das imaginações. Se te ama é porque não viste o seu trono triste e a pose de Rei acabado . Não viste o reino sombrio que o idolatrava porque era um Ícaro sobrevivente à própria queda. Nunca o viste nessa perspectiva, nessa realidade em que dominava o Reino das Sombras por ser o mais iluminado, mas não iluminado o suficiente para rejeitar o ceptro carregado de uma convenção vazia que ele desprezava, vendo-se incapaz de rejeitar. Não viste a pose de Rei egocêntrico e melancólico que aparecia em qualquer reflexo porque não era capaz de recusar o poder, mesmo interiorizando o quanto era inócuo.
Mas nunca quis ser isso. Quis ser Rei mas de si próprio. Deram-lhe o ceptro e se te ama é porque o ajudaste a libertar-se da droga. A desfazer-se de um poder que não existe. Sempre quis ser uma tarde calma e serena ao por-de-sol, a ânsia pelo poder nunca superou o seu narcisismo equilibrado. Se te ama é porque lhe devolveste o verdadeiro reflexo, o verdadeiro perfume da essência dele. Relembraste-lhe do que verdadeiramente desejava, a morte boa e justa que nunca receou. E se te ama é por isso, por essa suave e simples loucura que te move, que te afasta de todos os tronos vazios. Rejeitas a soberania antes de ela existir, procuras outro tipo de poder.
E, apesar de ter usado a coroa cujos espinhos dilaceraram a alma em pedaços de sangue incolor, nunca quis ele ser um deles, um dos do Reino das Sombras. Tem uma doce e aromática imaginação, sempre teve. Tem um honesto e focado reflexo, a alma sempre ganhou uma forma resistente e condescendente no ser dele. Tem o teu amor, sublime e louco, inesperado e livre debaixo da pele que o deixa morrer em paz. E tu tens o amor dele, que o salvou de um propósito de vida vazio.
Sempre disse que preferia morrer. Por isso, não chores pela morte dele. Prefere que o reduzam a cinza e a pedaços de existência contraditória e firme que lhe assassinem o reflexo. Por isso, não chores pelo sangue que escorre rubro sobre a Terra. Não te deixes sucumbir à tristeza de os veres queimarem o nome dele, condenarem-no a um crime que não cometeu. Sujarem e conspurcarem o ser dele, perfeito e divino, com a cobardia frívola de quem mata por não compreender e ultrapassar, de quem mata porque é demasiado pouco.
Sempre disse que preferia morrer. Ajudaste-o a sair da prisão que se tornou aquele trono sombrio , aquele poder sobre uma terra isenta de liberdade, da perfumada e fresca liberdade. Não chores, ele sempre disse que preferia morrer, assim.
Numa tarde soalheira de Verão ao por-do-sol. Rejeitou o poder que eles lhe deram , ajudou-te a venceres esta guerra. Ficaram sem líder e eles sempre foram pouco, seguem a coroa em vez de seguirem a coragem. Sem Rei, são nada.
E tu tens em ti o novo Ícaro. Por isso é que ele preferiu ser cinza e abolição. Para que uma nova era se gere, o contraste do sangue de uma morte dolorosa e injusta tem de fazer florescer os campos.
Não chores. Terás sempre o amor dele. Afinal, foi ele quem te ensinou a voar , sempre foi o Ícaro que mantinha o sonho desperto no coração , mesmo depois de morrer.Sempre foi o Ícaro que renascia.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Desafio XXIX - Resposta

Enfurece-me que chames feia a ti mesma. Enfurece-me, tal como me enfurece o Mundo por te meter na cabeça os padrões pelos quais te julgas. E sim, chamares-te feia muda muito pouco: o facto permanece que não o és. Objectivamente não o és. Mas ainda assim, enfurece-me, como me enfurecem as injustiças do Mundo perante as quais sou impotente. Enfurece-me por não poder fazer nada senão dizer-te que é mentira. Tira-me do sério.

E depois enfurece-me que sorrias e me respondas que só não vejo que és feia porque gosto de ti. Ou que são os meus olhos que vêem beleza onde ela não existe. Porque quando se ama, até se amam os corvos que a outra pessoa tem no telhado. Enfurece-me, tal como me enfurece o Mundo por te meter na cabeça que a paixão tem esse poder. Fico fora de mim.

Entende, por favor, que os homens não vêem gigantes no lugar de moinhos. Os homens vêem moinhos, mas afirmam aos outros que lá estão gigantes, mais para se convencerem a si mesmos do que seja a quem for. Nenhum homem acha uma mulher subitamente bonita por estar apaixonado. Quanto muito, desculpa-lhe esse defeito. E depois começa a dizer que essa mulher é “o meu tipo”. Só que isso do “tipo” não é mais do que a mulher à qual ele se resigna porque é o melhor que consegue arranjar. Os homens são mentirosos, mas não são cegos.

E eu sou terrivelmente, profundamente, irremediavelmente, superficial. Poderia desculpar o pecado da burrice. Não poderia desculpar nunca o pecado da fealdade. E esse até é o meu drama. É que eu não sou cego, mas também não consigo ser mentiroso. Nem com os outros, nem comigo mesmo. E passei anos sozinho por não conseguir encontrar uma mulher bonita o suficiente para mim. Se tu não fosses linda, eu sabê-lo-ia, e as minhas reacções físicas para contigo também não conseguiriam mentir. E tu ficarias a saber.

Achas que tens defeitos, malformações estéticas, pontos a melhor, hábitos e costumes vergonhosos, incoerências de estilo? Pois todas elas fazem parte da tua beleza. Porque há mais detalhe no teu rosto, mais vida nas linhas carregadas das noites mal dormidas e das lágrimas derramadas, do que em qualquer mulher daquelas com as quais todos os homens querem ser vistos. A beleza dessas esgota-se logo, é descartável. Dois olhares e já não existem surpresas. A tua beleza, essa, revela-se à superfície (e eu sou superficial), mas engole-me para uma profundidade que só quem vive para além do mediano consegue entender.

Ainda assim, achas que não és fotografável, que a tua imagem do espelho te grita “olha para mim, que desgraça”? Mas tu és uma obra de arte. Tu tens a figura que pintores e escultores representam, aquela para a qual escritores perdem as palavras, aquela pela qual músicos escrevem sinfonias. E a forma como te amo vale uma sinfonia. Escuta-a na intensidade com que me atrais, na electricidade quando te beijo, na irresistibilidade de te agarrar com tanta força como se te quisesse dissolver dentro de mim, fundir os nossos corpos num só, no sorriso de criança feliz que faço quando te atiro ao ar, na maneira como me tiras do sério e me deixas fora de mim. Só um grande amor tem esta violência no afecto. E um grande amor exige beleza.

Por isso, dizes que és feia? Não, o Mundo é que não sabe o que é bonito. E isso é o que me enfurece mais. O Mundo anda a correr distraído atrás de mulheres-desenho-animado que cansam e se largam ao primeiro mudar de lua. E se é verdade que amo até os corvos no teu telhado, entende por favor que é precisamente por isso que és linda. Porque no telhado das outras mulheres não existe vida absolutamente nenhuma.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Desafio XXIX

Alice in Wonderland para Wings:

"Antes ser sob a terra abolição e cinza

Do que ser neste mundo rei de todas as sombras."

Sophia de Mello Breyner Andresen


Ricardo para Alice in Wonderland:

E como nasci? Por um quase. Podia ser outra. Podia ser um homem. Felizmente nasci mulher. E vaidosa. Prefiro que saia um bom retrato meu no jornal do que os elogios.

Clarice Lispector


Wings para Ricardo:



"O amor por uma pessoa deve incluir os corvos do seu telhado"
Proverbio Chinês

Desafio XXVIII- Resposta

Ele ate lamenta. Apesar de o lamento ser artificial. Tem de lamentar, ou que justificaçao existiria? Não que ignorancia seja felicidade, apenas prefere uma mentira bem intencionada a uma verdade intrinsecamente cruel. Porque uma mentira é so uma mentira se não a acreditares...
Mas tu acreditaste. Nunca compreendeste. E ele tem de lamentar isso para ser coerente, mesmo que o lamento seja esteril. Perdeste-te neste mundo inocuo e oco. Depois da aparencia nada mais existe. Perdeste-te neste mundo que é futil. Mas superficial e futil não são sinonimos, não existem sinonimos . E ele disse-te, avisou-te tantas vezes ... Sentou-se inumeras vezes contigo na mesa daquele café, dissecou a filosofia que sustentava a visao dele. Repetiu-se e repetiu-te que somos animais ainda, somos animais conscientes de si proprios, dos seus desejos. Das suas ambiçoes. Dos seus terrores nocturnos. Mas somos animais ainda. Civilizados, disciplinados, apenas. Disse-te que tinhamos guardado na alma restos do instinto primitivo. E esse sexto sentido inato guia-nos . Orienta-nos no nosso Norte que é a auto-realizaçao, o amor proprio, um narcisismo egocentrico correctamente equilibrado . Disse-te incontaveis vezes para deixares os teus sentidos fluirem e avaliares a situaçao com o que sentes, com o que pensas em primeiro lugar. Disse-te para não julgares, para não teceres raciocinios. Disse-te para avaliares a aparencia, o que ves. O que ouves. A primeira impressao é a mais importante. Nunca te despegas da primeira impressao. Ele disse-te tantas vezes isto...
E , ironicamente, naquele café, agiu contra a sua filosofia. De todas as vezes que te tentou explicar o que é quase obvio. De todas as vezes que insistiu contigo. Foi uma contradiçao, uma incoerencia. Porque a primeira impressao que teve tua, o som que lhe propocionaste, foi que nunca ias compreender. Que estavas dentro desta sociedade , aprisionada na sua mentalidade. O que discordavas racionalmente, concordavas sensorialmente.
Por isso ele não lamenta. Não verdadeiramente. Porque, tal qual como tu, ele regressou ao estado de sintonia com o ego que tem no peito. Um dia deixou de ir ao café explicar-te o que não querias compreender, elucidar-se a si proprio. Um dia não apareceu. Um dia a tua aparencia venceu. Um dia teve coragem para aceitar que te amava mas que nunca serias mais do que alguem que nunca compreende o que a move.
E , pela primeira vez, inconsciente ou conscientemente, deste-lhe razao. No dia em que ele não apareceu no café o teu coraçao descontrolou-se e gritaste num som mudo que ele sempre fora aquilo. Ainda bem que cumpria a aparencia que tinha, um ser que vive como se fosse embora amanha.
Ele lamenta ter desejado lamentar a tua perda. Mas agradece-te, tornaste-o um devoto à filosofia que defende. A ilusao da ilusao arruinou a memoria que tem tua.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Desafio XXVIII - Resposta

“Hoje roubei todas as rosas dos jardins
e cheguei ao pé de ti de mãos vazias...”

Foi triste meu Amor. Ainda hoje é triste e já tu não és o meu Amor. A tristeza foi a única a sobreviver-nos, a manter-se quente no meio de dois corpos frios que já não se acendem um pelo outro. Ás vezes, quando te reencontro, são os teus olhos tristes a única parte de nós que reconheço.

Naquele dia, corri todos os jardins do Mundo para te trazer as rosas mais lindas. Como tu. E quando cheguei ao pé de ti, trazia os braços cheios das rosas mais frescas.

Mas tu olhaste para mim e os teus olhos marcaram a hora da despedida. Nunca esquecerei a tristeza daquele momento em que congelámos o futuro. Tiraste os teus olhos de mim pela última vez quando me olhaste e viste que voltara para ti de braços vazios. Que não existiam rosas afinal. Que tudo não passara de uma bela ilusão que ambos bebemos e a que chamávamos por distracção, de paixão.

Foi nesse dia que a tristeza se estreitou entre nós. E hoje é tudo o que me sobrou.
Porque eu tinha os braços cheios das rosas mais viçosas.
Mas o tempo endureceu e tu guardas a memória de um homem de braços vazios.

domingo, 18 de julho de 2010

Desafio XXVIII - Resposta

Há alturas em que me sinto a secar por dentro. Acontece-me muito em multidões, e no meio de conversa, mas também posso apenas estar comigo mesmo num diálogo surdo e introspectivo. Mas seco. Sinto-me secar. Sinto-me convencional. Sinto-me desligado de vida. Sinto-me sem pinga de sangue. Porque sangue é vida e, nesses instantes, vida eu não tenho. Vida, eu não conheço. O coração pára e eu seco. Vejo o meu rosto a ficar chupado e o corpo a comprimir-se, a colapsar sobre o seu centro de massa. Torno-me nada mais do que uma gigantesca verruga, ou um cepo, ou um peixe conservado em mar concentrado de sal, ou carne de fumeiro. Sinto-me o ramo proverbial da árvore que cai na floresta e ninguém escuta. E que por isso talvez não tenha caído nunca. E que talvez por isso não faça nenhum ruído.

Mas eu sei ressuscitar-me.

Basta num instante desamarrar-me da sanidade. Fazer “shhh” a todas as vozes que num barulho de fundo permanente me dizem “calma”; “isso não é normal”; “pensa bem”; “olha ali, que bonito”. Faço um gesto de silêncio a todas as vozes que me entretêm em vez de me distraírem, me mostram o bom caminho em vez do caminho certo, me orientam para os pensamentos positivos e me negam os pensamentos que se querem soltar desesperadamente das franjas da minha imaginação.

Basta num instante desligar-me da floresta de gente morta, cortar-me da árvore que me sustém nesta precariedade de estabilidade, desamarrar o meu pescoço da gravata das preocupações, escapar da sombra opressiva do futuro, desembaraçar-me do lamaçal da memória do passado. E sentir-me cair do referencial da minha vida, para voltar a renascer estremunhado, como um coice dado na cama antes de adormecer.

Basta inventar.

Basta pegar no carro à noite e conduzir tão depressa quanto o pé consegue carregar no acelerador, e entender quão pequena seria a volta de que o volante necessita para me levar para a faixa contrária. E começo a dá-la, movimentando a roda entre as mãos grau a grau. E sinto o medo a crescer em mim. E, no momento exacto, guino o volante para o caminho certo, para a faixa correcta, deixando o coração bem desperto, os sentidos alerta para as buzinas e os gestos e os gritos. E depois buzino também, muito alto, faço sinais de luzes ao calhas. Não passo despercebido.

Basta, ao quase morrer, escapar da morte.

Basta espreitar do parapeito de janelas e sentir o temor do grande desconhecido que está mesmo ali aos meus pés, do inferno que se abre cá em baixo nas pedras da calçada para me receber num abraço. E faço o mesmo em pontes, nas margens de rios, na praia, em todos os sítios onde a água me convide a repousar o meu pescoço quebrado nas suas correntes que tudo lavam. E faço o mesmo num avião, quando a torbulência causa calafrios derivados da pressão, vejo as asas a fazerem uma volta completa, as luzes da cabina a falharem, e escuto os gritos desesperados. E comento bem alto como vai fazer frio se o avião se partir ali tão alto, antes de cair. E faço o mesmo ao contrário, olhando de baixo para cima em vez de ser de cima para baixo. Levanto a cabeça para o topo dos prédios e para as esquinas dos monumentos, e sinto, vejo, a pedra e o vidro e o aço e o tijolo caíndo em flocos para cima da minha cabeça. E, depois, dou um passo atrás. Escapo da miragem do desastre. E sorrio, e canto “I’m singing in the rain”.

Basta, ao olhar a morte nos olhos, rir.

Basta olhar para a minha namorada e dizer-lhe que a vou deixar. Mesmo sem quaisquer intenções de fazê-lo. Basta sentir-lhe o tremor, as convulsões, o medo, para eu próprio experimentar o medo de perdê-la de vez. Vejo o buraco negro que a sua ausência deixaria na minha vida. E no momento seguinte, rindo e abraçando-a, sinto-me a pulsar de paixão, de uma paixão mais profunda e mais arrebatadora e mais irreversível do que as palavras jamais podem entender. E toco-lhe, como se fosse a última vez.

Basta, ao foder, fazer amor.

Basta ficar sozinho no escuro de casa e, a cada som, vislumbrar o vulto de um monstro disforme que se forma no corredor vazio, sombrio. E vejo-o. E ele cheira ao aroma fétido de enxofre. E sei que o inferno também está ali, a sugerir-se para mim. E fico quase desiludido quando acendo as luzes, e não está lá monstro nenhum. Basta caminhar pelas ruas da cidade onde sapatos caros jamais deixaram a sua borracha, e a cada passo imaginar outros, seguindo-me. E interpreto todos os sons como a iminência do golpe. Penso em como vai ser: uma só estocada com um ferro na cabeça? Talvez um pano com clorofórmio, ou mesmo algo mais subtil: um grito de “a carteira ou a vida”. E fico quase desiludido quando, dobrada a esquina, permaneço composto.

Basta, na rotina, gerar a surpresa.

Basta ficar sentado numa reunião de trabalho a congeminar a forma e o momento exactos para saltar da cadeira e esmagar o patrão. Verbalmente é demasiado fácil, demasiado cobarde. Preciso de agarrar uma caneta e mapear precisamente os pontos onde pretendo perfurá-lo. Preciso de agarrar nas folhas deste relatório, uma prova efémera de seis meses de trabalho, e ver-me a amachucá-las uma a uma. E enfio-lhe cada bola rugosa pela garganta, e digo “despeço-me” tantas vezes quantas as páginas do relatório. E vejo-me, como num filme, a sair a porta do meu emprego e para me ver numa avenida fria, onde centenas de pessoas avançam distraídas e apressadas. E a deter-me um momento, e a puxar a gola de um sobretudo contra o meu pescoço. E a sorrir. E na cena seguinte ver-me sentado num café em outra cidade, de barrete francês na cabeça. “Boa tarde, sou cliché profissional.” E saio da reunião da maneira mais mal-educada que consigo. Passo a ombreira da porta e estou na avenida, sempre movimentada. Componho a gola do sobretudo e entro numa tabacaria para comprar o jornal e procurar novo emprego.

Basta, na monotonia, encontrar balanço para a história da nossa vida. Basta inventar.

Basta, por um momento, ver e ser visto, sentir e ser sentido, rebentar com um estrondo medonho. Basta sentir o meu rosto chupado insuflar-se de medo, corar com o susto, e o meu coração explodir de volta à vida. Basta romper com os filtros do deve e do haver. Basta ser mais eu próprio do que gosto de confessar a mim mesmo. O que basta está em todo o lado.

Muitas vezes me pergunto como poderá alguém sentir seja o que for que há de bom na vida sem este pânico, seja ele provocado por actos ou por pensamentos. Talvez algures pelo Mundo existam pessoas que fujam da morte em vez de se rirem dela, que prefiram mecanicamente fazer amor com pessoas que não lhes provocam o menor temor. Que trabalhem repetitivamente e nunca ousem sonhar. E que prefiram viver sem sustos. Talvez. Mas se existirem, para mim são como ramos proverbiais de árvores na floresta, que se desprendem do tronco, que caem no chão e ninguém ouve. E, por isso mesmo, nunca existiram.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Desafio XXVIII



Hoje roubei todas as rosas dos jardins
e cheguei ao pé de ti de mãos vazias...

Poema para o meu amor triste, Eugenio de Andrade, As maos e os frutos.


Alice in Wonderland para Ricardo:
"Life's no fun without a good scare"

Nightmare before Christmas - Tim Burton


Ricardo para Wings:



"We've got to learn to stop bravely at the surface. We've got to learn to love appearences."


Leonard Cohen, Beautiful Losers


Desafio XXVII - Resposta

E é por isso que te digo que este livro é dos meus favoritos. Aquele Wilde, era um tipo bem engraçado. Era o mestre daquelas frases bem metidas, que encaixam perfeitamente no conteúdo, que parece que nos iluminam cá dentro. Dá-nos quase uma experiência religiosa assim do nada. Era um génio. Era um tipo formidável, e teve uma vida única. Quem me dera ter vivido no tempo dele. Era o único homem com quem iria para a cama. Mesmo não sendo gay como ele.

Ele era gay? Não fazia ideia.

Sério? Então mas não gostas também do livro? Disseste-me que já tinhas lido...

Sim, eu li o “Picture of Dorian Gray”. Verdade. Não entendo a tua surpresa. É só porque não sei nada sobre o autor, nem sobre as circunstâncias em que o livro foi escrito? Bom, eu tento sempre não saber nada sobre as pessoas por detrás das obras. Gosto depensar na obra de arte como a única coisa do Mundo que não tem referencial fixo, que não precisa que contemos uma história nem lhe colemos rótulos só porque sim.

Sim, mas há algumas coisas que são o mínimo. Não podes entender a obra sem conhecer o autor.

Poder, posso. Não concordo nada com isso. Uma das poucas frases que conheço do Wilde é uma em que ele dizia algo como que “aquilo que a arte espelha é o espectador, não o artista”. Não sei de onde vem, acho que é uma frase dessas que dizes que nos iluminam por dentro quando as ouvimos, que parece que quase temos uma revelação. E de facto, é muito directa, muito explícita. E eu concordo com ela. O melhor escritor é aquele que se consegue apagar completamente, é aquele que nos dá a sensação de estarmos a ler a história, não a ler as opiniões do autor. Ler só opiniões de alguém seria mesquinho e desinteressante. Acho que é por isso que lemos romances em vez de lermos cartas de pessoas famosas. As cartas espelham apenas o indivíduo. Os romances espelham-nos a nós, espelham o Mundo, traduzem verdades bem mais fundamentais sobre o que somos. O romance é escrito por uma pessoa, sim. Mas de certa forma, o a história do romance é construída por todos os que o lêm.

Mas sabes que se isso fosse assim, tudo seria uma obra de arte. Ou pelo menos teria o potencial para sê-lo. E ainda que seja o espectador a dar o significado de uma obra, muito para além do que o autor quis ou previu, pelo menos existe essa perspectiva, a do autor. E eu acho que só te enriquece se a conheceres. Para além de que, acima de tudo, é o autor quem está lá. O Eça de Queiroz dizia que a um homem célebre até as contas do alfaiate se devem publicar. O génio e o brilhantismo estão no autor. Não em quem lê.

Sim, mas repara que isso pouco importa. Que interessa saber que o Wilde era gay para entenderes o arquétipo de pessoa que é o Dorian Gray? No final, a arte vai sempre buscar os conceitos e as referências do espectador. O melhor escritor é o que se socorre desse imaginário do leitor, e nunca chega a precisar de ser óbvio ou explícito em demasia. Repara, o Wilde nunca tem que te dizer que os pecados do Dorian Gray eram transferidos para o quadro. Ele só tem que o narrar.

Sim, isso seria muito bonito, mas nunca é assim tão trivial. Repara bem que até numa frase tão directa como essa que disseste, eu estou a ver algo muito diferente de ti. Enquanto tu achas que o Wilde queria dizer com isso da arte espelhar o espectador e não o artista, que é o espectador quem dá o conteúdo último de uma obra de arte, eu acho que ele queria constatar unicamente que o espectador é essencial no processo de criação, que nenhuma arte surge se não for um diálogo entre o emissor, o artista, e o receptor, o espectador. Ou seja, que ela é sobre e para o espectador, e não uma mera narrativa da vida interna do autor. Ou, por outras palavras, que para fazer arte é preciso que essa arte toque alguém, que fale sobre algo geral à humanidade, que não sejam apenas trivialidades da vidinha privada do autor. E o que me leva a dizer-te isso? O facto de eu achar que se não fosse assim, o Wilde estaria a contradizer-se. Afinal, ele esforçou-se muito para escarrapachar a sua personalidade em tudo o que escreveu. O arquétipo do Dorian Gray, como dizes, não está escrito nem definido analiticamente. Mas a verdade é que não há muitas formas de o interpretar. A história, isto é, o autor, conduz-nos a isso.

Sim, mas o Dorian Gray gera-se nas nossas experiências, não é uma face do próprio Wilde. E nesse sentido, o Dorian Gray espelha um certo tipo de pessoa que nós conhecemos. Memórias diferentes fazem-nos identificá-lo com pessoas diferentes. E repara, diferentes experiências conduzem-nos a diferentes conclusões. Tu sabes tanto da vida do Wilde, usas isso para interpretar a frase dele de uma maneira; eu, para ter uma interpretação legítima da mesma frase, não tive que saber nada sobre a vida dele. Então de que te serviu todo esse conhecimento? Aliás, se alguém pudesse escutar a nossa conversa, quantas pessoas concordariam ora com um, ora com o outro? E quantas não nos chamariam burros, por nos estar a escapar algum significado que para si é claro?

Sim, talvez. Mas terás que conceder que, mesmo que a obra de arte espelhe o espectador, pelo menos é o autor quem orienta o espelho para o aspecto específico que quer ver reflectido. E isso já tem que valer de alguma coisa. Porque toda a gente é capaz de se ver ao espelho. Mas nem toda a gente é capaz de manipular um espelho.

Sim, talvez.

Ora, mas que importa tudo isto. Gostaste do livro?

Gostei sim. Bastante.

Ora ainda bem. Mandamos vir outro café?

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Desafio XXVII- Resposta

Mais tarde já e tarde. E ele ve-se, a correr na tua direcçao. Mas não corre, fica quieto. Não se consegue mexer, não cosnegue sair daqui. Se se mexesse, o tempo começava a contar estridentemente. E ele deixa que se alonge, o tempo. Fica com todo o tempo no mundo. Sem ti. Mas com toda a eternidade para te sentir a falta.
É duplamente condenado. Porque tem esta impotencia, esta mudez sentimental. E tem consciencia de que a tem, tem consciencia da tua falta antes de ela existir.
Tem a eternidade mortal para desintegrar o erro que ainda não cometeu mas dificilmente não cometerá. E todo o tempo no mundo não vai chegar para lhe apagar a consciencia. Do teu adeus. E da indiferença dele porque te sentiu a falta enquanto ainda estavas aqui.
Nao será um ser morto. Não inteiramente, porque ele pode sempre perder a mudez e deixar visivel o calcanhar de Aquiles. Mas o não fará. Não quer, assumir o seu ego tao humano e sensivel assim desta maneira. Exibir a fragilidade ao mundo. Mas não será um ser vivo, prefere manter-se duro e estratego a demonstrar que tem um pedaço de coraçao de pano. Tao facil de rasgar como uma folha de papel. Será um não vivo, encantador com o riso alto e exotico, marcado com uma triste finalizaçao. Porque se ve a correr para ti mas continua aqui. E deixa-te ir, deixa-se ir ele tambem, para longe. Mas nunca vai sair daqui.
Não quer exibir heroicamente a sua fragilidade ao mundo, ficaria com escassos segundos de existencia. Para te encontrar e o endureceres. Mas é uma atitude acarinhada por este Sol de Verao que ele não fará. É duro e é estratego. Tem todo o tempo fisico para contemplar e respirar o que escolheu não viver. O que não conseguiu escolher viver.
E, talvez um dia lhe sigas o trilho de tristeza que o caracteriza. O tempo apagará tudo menos isso, esse caminho infeliz de um não-vivo que perdeu a oportunidade de ficar com o momento. E tem consciencia do Inferno eterno que conquistou.
Mais tarde já e tarde. Sorris-lhe. Já é tarde. Talvez um dia sigas o trilho triste dele, o trilho de alguem que não soube viver ou morrer. É o trilho de um nao-vivo, suave e ténue como um fantasma.

domingo, 11 de julho de 2010

Desafio XXVII - Resposta

I've never believed in God, but I believe in Picasso


Acredito em Deus.

Fartei-me de mundos científicos e pontiagudos, onde se definem as arestas do pensamento. Fartei-me da verdade absoluta, da solução única para cada equação de pessoa.
Fartei-me de números exactos e de operações cirúrgicas onde para tudo se tem uma explicação, tudo é demonstrado, tudo é dissecado, tudo é desmontado, tudo é catalogado.

Dantes, Deus não existia porque as tempestades são explicadas pelo electromagnetismo. E não existem milagres que não estão na cabeça ou nos olhos de quem os vê. E já sabes que para um objecto se mexer é preciso exerceres uma força sobre ele.

Mas isso hoje é dia é irrelevante. Dizer que Deus não existe é como continuar agarrado a esses ignorantes que estão agarrados à crença de que Deus existe.
E eu quero distância deles. Ambos acreditamos que Deus existe, e isso é tão pouco, como se nada nos unisse.
Eles acreditam em Deus, como acreditariam nesta chávena de café, se eu quisesse. Por isso, deixa-os, larga-os, não te comprometas nem comprometas o teu pensamento só para passares o resto da vida a negá-los, dizendo que Deus não existe só para estares no lado oposto da bancada.
Porque assim é que garantidamente não estás.

Eu acredito em Deus como eles, e no entanto nunca seremos parecidos. E é nesta dualidade que nunca compreenderás, que me separo de ti. Porque essa Ciência no seu dogma da luta pela verdade não me contempla nos seus manuais científicos exíguos, não me inclui nas suas verdades, porque eu, oh sim, eu cometi o pecado mais capital de todos e acredito em Deus como os ignorantes.

Mas não sou ignorante.

Porque a arte não se presta a silogismos.

Estamos à procura de colaboradores!

O blog Sincronizados foi pensado para cinco pessoas. Dadas as saídas recentes de dois colaboradores, estamos à procura de interessados em juntar-se a nós.

Já algum dia te apeteceu escrever sem saberes exactamente em concreto sobre o quê? Já algum dia quiseste fazer parte de um grupo de escrita criativa? Então, se gostas de escrever, tens vontade de o fazer com regularidade, e te queres inserir num grupo com os mesmos interesses, envia-nos um e-mail para: luciabarao@gmail.com.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Desafio XXVII


"Mais tarde será tarde e já é tarde
O tempo apaga tudo menos
esse longo e indelével rasto
que o não-vivido deixa"
Sophia de Mello Breyner Andresen

I've never believed in God, but I believe in Picasso.
Diego Rivera

Wings para Ricardo:

"O que a arte espelha realmente é o espectador e nao o artista"


Oscar Wilde

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Desafio XXVI- Resposta

Sempre disse que seria isto. A solidão nunca me perturbou mas arrastaste-me para longe de mim. Ofereceste a salvação e a redenção de um crime que não cometi.
Vês? É um número que sempre esteve errado. É um número metaforico que nunca existiu. Nós os dois. Porque esta minha alegre solidao rasgou-me pedaço de pele nenhum. Mas a que se instalou naqueles dias de Sol contigo dissolveu-me o eu. Talvez por isso tenha sido feliz. É facil aproveitar as relíquias de uma vida que não é a minha . Mas a solidão daqueles dias de Sol, que nada tem que ver com a minha doce solidão, começou a envolver-me num abraço denso, negro, amargo e suave. Foi dificil libertar-me foi dificil continuar lá. Naqueles dias de Sol.
Sempre disse que era isto, não uma ideia diferente de como ser uma fraude numa atitude imitadora de uma vida boemia com proposito nenhum. Sou só eu, sou a minha solidão. Sou o rosto e a sombra da minha solidão, isso é que me torna boémico.Mas é algo que sempre fui e que desejei, algures contigo, o não ser. Quiseste salvar-me mas como me podes salvar do destino que eu proprio desenhei?
Não me digas que é triste não ter fugido ao meu fado porque fui eu que o delinei. Alternando entre a consciencia e a inconsciencia. Sempre que não for eu vou ser eu , eu e apenas eu, a tentar o não ser. Eu. So posso ser eu mesmo quando o não sou.
E já não lamento não ter sido eu a atender o teu terceiro e impaciente telefonema naquela noite. Naquela hora mortifera e negra em que não resisti a tentaçao de seguir o caminho que é meu. Foi a minha mao que alcançou o telefone, foi a minha voz que ouviste.
Mas a escuridao mortal da noite , daquela noite sem ti, lembrou-me que te sentia a falta sem me fazeres falta. Foi a primeira noite, desde aqueles aureos dias de Sol, que estive comigo. Afinal sentia a falta do meu ego. Não do teu.
E já não lamento não ter sido eu, o eu que te amou e que amaste naqueles dias de Sol, a atender o telefonema. Ouvi o telefone três vezes, o número três é mágico, é mítico. O dois já foi amaldiçoado por nós. Somos um romance falhado porque embrieguei-me com a infinidade de mundos paralelos que oferecias se aceitasse a tua branca salvaçao e me redimisse do crime que não cometi.
Mas ser eu não é um crime. Não sou uma fraude boémia. Já te disse, sempre fui isto. O rosto e a sombra da solidão, pacificamente sentado na esplanada da praia num dia de praia perfeito. Sempre fui a palavra de contradiçao , o caminho alternativo, a ideia louca , legitima e racional.
Por isso, já não lamento que naquele telefonema tenhas ouvido o monstro agreste que cresceu comigo. Que nasceu com todos nos. O numero dois sempre esteve errado para nos. Mas so atendi a terceira chamada. Deixei o dois alongar-se e afogar-se no amor estéril que cresceu entre nos.

E ela chorou. Chorou dias inteiros, compulsivamente. Chorou mesmo quando já não tinha mais lágrimas. Telefonou-lhe no único serão que não passaram juntos e perguntou por ele. Mas quem lhe atendeu o telefone não era ele apesar de o ser. Sentiu que toda a época aurea que viveu com ele foi uma ilusao. Porque lhe telefonou e perguntou por ele, mas ele não era ele. Ele era louco, sempre o soube. Mas ela amava-o. Era ainda mais louca pela lucidez aguda da sua desgraça.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Desafio XXVI - Resposta

Pergunte-se a si mesmo o que faria nessa situação.

O meu nome é António Azul. Obrigado. Sou detective e advogado dos mortos. Sei que conhece o meu escritório na Rua da Palma. E esta é a minha última noite no escritório. Vou voltar a ser contabilista. Estou a empacotar os últimos dossiers em caixas de cartão. Pilhas de memórias, tesouros de conhecimento. Talvez já tenha ouvido falar dos meus casos. Nunca ficou nenhum por resolver. Só este último é que não. Obrigado.

Pergunte-se a si mesmo.

Faço o meu curso, fico contabilista, caso, abro um escritório na Rua da Palma. Nem um único cliente. Passo dias e noites a aguardar. Sentado à mesa a ler jornais. E um dia, já fora de horas, batem-me à porta. Uma senhora de meia idade com ar aristocrático. Colar de pérolas, cigarrilha comprida. Sapato creme cor-de-rosa, meia-meia. Cabelo espalmado, chapéu preto. Vestido até ao joelho, denunciando as formas moldadas pela idade. Alguém saído da máquina do tempo. Sentou-se sem que conseguisse dizer uma única palavra. E ela, só conseguiu dizer uma única palavra. “Delinquentes”. Com o lábio torcido e uma certa flutuação mecânica na voz. E depois levantou-se, dirigiu-se à porta, e parou. Demorei a entender que queria que eu a abrisse. Abri, ela saiu. Obrigada. Evaporou-se no corredor.

O que faria nessa situação?

Hora de fechar o escritório. Andas a ver coisas, António. Mas quando fechava o jornal vejo a cara da senhora, escarrapachada num fundo de página. Talvez tenham ouvido falar. ”Condessa aparece morta\Polícia sem pistas”. Segui-lhe o rasto, fui à polícia, mostrei-me interessado. Fui considerado suspeito. Fui interrogado. Em nenhum momento contei o encontro. Afinal, antes assassino do que maluco. Descobri a morada, rondei-lhe a casa, uma mansão nos arredores de Lisboa. Estava pintada de cima abaixo de grafitis. Falei com o jardineiro. Obrigado. Soube dos problemas, das desavenças, dos desacatos. Dos miúdos delinquentes que vinham pintar as paredes da “velha doida”, da velha doida que aparecia em camisa de noite à janela para atirar água a ferver aos “miúdos delinquentes”. Da noite em que apareceu afogada na banheira. Do jardineiro que sabia tudo. Que ela lhes atirava com tudo o que estava à mão da janela.

Pergunte-se a si mesmo.

O que teria matado a velha? Procurei pelo jardim. Senti-me uma personagem de um livro de detectives. Levava o jornal debaixo do braço e tudo. Narrei na minha cabeça os meus passos, e depois tomei-os a sério, e fiz o que via acontecer no filme a preto-e-branco mental. Talvez já tenham visto a cena. O detective olha pensativo para a janela. Visualiza a vítima. Ela grita, ela arremessa projectéis. Que deviam cair mesmo naqueles arbustos. Ele penetra nos arbustos. Ele encontra embalagens de comprimidos. Ainda cheios. Ele pergunta ao jardineiro. São os comprimidos da senhora. Ela tem que os tomar todos os dias. Obrigado.

O que faria nesta situação?

Eu, não queria mais problemas com a polícia. Decidi regressar ao escritório da Rua da Palma, meter os frascos num envelope, e redigir uma carta muito detalhada com a história toda. A velha, enfurecida, tinha atirado os comprimidos pela janela. Provavelmente não tinha água quente, porque já estava a correr para o banho. Sem eles, entrou na banheira, e provavelmente sentiu-se mal. Sem ninguém junto, acabou por morrer. Seguiu tudo coladinho a um envelope anónimo para a esquadra. E a partir daqui, lavo as minhas mãos. Mas não consegui deixar de pensar se teria sido isto que a velha queria. Se quisesse mais, que tivesse sido mais explícita. Eu sou só um contabilista. Obrigado.

Pergunte-se a si mesmo.

Se não seria confuso que a partir desse dia e até hoje não parassem de lhe aparecer fantasmas, figuras, pessoas que batem à porta já de noite, entram quando eu a abro, sentam-se, dizem uma só palavra, levantam-se, saiem quando eu abro a porta, e desaparecem no corredor. Sempre uma só palavra. Felizmente o que poupam em palavras dizem em gestos. Obrigado. Foi isso que já me deu muito material para resolver muitos casos. Sim, porque já foram muitos. Talvez já tenham ouvido falar de alguns. Como daquela vez em que a polícia deu com um rapaz de seus vinte anos a arrastar um saco preto pela rua. Saco preto que tinha o cadáver da mãe. Em casa, descobriu-se uma cave cheia de correntes e objectos macabros. Teorizou-se que ele mantinha a mãe presa. Afinal, raramente era vista na rua. O pai morava fora do país, estavam divorciados. Não havia irmãos nem sequer visitas frequentes. E ele, o monstro, nem namorada tinha.

O que acharia desta situação?

Eu, quando li no jornal, achei o mesmo que a polícia. Mas depois, uma noite, ela bate-me à porta. Digo uma noite, porque por esta altura só os mortos eram meus clientes. E como os mortos só saem à noite, decidi abrir o escritório só à noite. E lá vinha ela, saindo do escuro do corredor, vestida de cabedal, chicote na mão, e correntes nos pulsos. Fazia um barulho dos infernos a andar. A palavra que me deixou foi “prazer”. Obrigado. Bastaram dois dias até estar em todos os jornais. Uma carta anónima revelara o que o filho não dizia por vergonha. Mantinha uma relação incestuosa de carácter sado-masoquista com a mãe. E efectivamente tinha-a matado, por asfixia. Mas por acidente. Morta num acto de paixão. De amor, talvez. Estranho, as coisas que os mortos querem. Parece que o seu grande fetiche é repor a verdade.

Pergunte-se a si mesmo.

O que faria se lhe batessem à porta. Fossem abrir. E vissem um indivíduo de pala no olho, traje renascentista. Uma cara que era familiar, mas não reconheciam exactamente. Como me aconteceu a mim ontem. O nome andou-me enrolado debaixo da língua. E depois lá saiu. Camões! Era a primeira vez que tinha um famoso ali. Pessoas que saiam no jornal, ainda era uma coisa. Agora, logo um homem dos livros. Logo o grande poeta do meu país! Obrigado. E que palavra me deixa ele? “Dignidade”. Obrigado.

Pergunte-se a si mesmo o que faria nessa situação.

Eu sei o que fiz. Dei um murro na mesa. E queixei-me. “Dignidade? Mas que raio de pista é essa?” Mas com o tempo já me tinha habituado que aos mortos não é permitida mais que uma palavra, se tanto. São os vivos, ou neste caso, eu, que tenho que preencher as outras nas suas frases. Felizmente, eles parecem livres para nos deixar outros elementos. Camões tirou um livro do peito e deixou-me em cima da mesa, com a contracapa voltada para cima. E levantou-se. Libertei-o.

Pergunte-se a si mesmo.

Que livro era esse? Hans Christian Andersen - Uma visita a Portugal em 1866. A passagem em destaque, essa era muito explícita. E tinha todas as palavras que o pobre Camões não podia dizer.

Na parte alta e frequentada da cidade será erguido um monumento a Camões. (...) Perguntei: - O escravo de Camões terá também aí lugar? - imaginei-o sentado na base, com a mão estendida, como quando Camões vivia, se sentava nas ruas para o senhor pobre e abandonado, quase a morrer de fome. -Essa imagem, responderam-me, constituiria uma reprovação contínua à nação, que não cuidou, enquanto vivo, do seu grande poeta.

Larguei o livro e saí do escritório. Fui dar um passeio a pé. Por horas da madrugada. Quando já ninguém se vê nas ruas. Afinal, da Rua da Palma à estátua do poeta vai um curto tempo. O mesmo curto tempo que se leva a reparar no monumento. Pequeno para a dimensão da praça, harmonioso com o espaço, elevado e gratificante. Depois de ter visto Camões nos olhos, aquele da estátua parecia-me um impostor. Uma imagem colada a uma cidade que lhe foi madrasta. E divaguei, sentado num banco, com pensamentos abstractos. Pensei em metáfora. Pensei em todas as figuras de estilo. Entristeci enquanto amanhecia. Curioso, tinha passado tanto tempo a trabalhar de noite, que só naquele dia voltei a reparar no azul do céu. Com que facilidade a gente esquece as coisas mais óbvias da vida, espanta-me.

O que faria nesta situação?

Eu sei o que fiz. Voltei ao escritório já manhã. Devolver-lhe a dignidade que ficou perdida na história implica tingir o branqueamento da biografia do homem. Implicaria, talvez, derrubar-lhe a estátua. Implicaria derrubar o imaginário de toda a gente. Isso é demasiado. Achei que há casos tão grandes que não sou eu sozinho que os vou resolver. Fechei o escritório. Estou só a meter os últimos dossiers numa caixa de papel. Vou largar este maldito escritório da Rua da Palma. Obviamente já ouviu falar, porque se está a ler esta carta que vou deixar aqui, na gaveta da mesa, é porque é o novo ocupante dele. Obrigado por me ler, e por me libertar do peso de um segredo, do peso de uma missão. Resta-me desejar-lhe boa sorte.

Pergunte-se a si mesmo o que faria nessa situação que lhe contei, porque por certo vai ver-se nela. Eu, por mim, fartei-me de repôr verdades e lutar contra injustiças. Eu sou só um contabilista. As pessoas vão sempre ver o que querem ver. E achar o que querem achar. Por isso, vou voltar para o meu mundo certo da contabilidade. Os números não mentem. E também não morrem. Não arrastam segredos consigo. E por isso as pessoas não podem criar fabulações mentirosas à volta dos números. Nem interpretá-los como lhes apetece. Pelo menos, assim espero.

Obrigado.

António Azul

terça-feira, 6 de julho de 2010

Desafio XXVI - Resposta

Que sentido tem correr se estás no caminho errado?


Era o seu sítio preferido, aquela rotunda. Aquela pequena praça, com a fonte simétrica no centro de onde saiam em línguas as várias direcções da sua vida.
Cinco estátuas apontavam para cinco ruas que se estendiam no horizonte como tapetes, à espera dos seus pés.
Mas ele rodeava a fonte e de todos os ângulos via sempre o mesmo, num movimento rotatório perpétuo que o entontecia.
E quando lhe perguntavam se nunca se decidiria a caminhar por uma das ruas, ele respondia “ Nenhuma delas é a minha direcção”.

E pelo menos sabia que não morreria cansado.

sábado, 3 de julho de 2010

Desafio XXVI

Wings para Alice in Wonderland:
"Que sentido tem correr se estás no caminho errado?"

Provérbio Alemão


Alice in Wonderland para Ricardo:
Na parte alta e frequentada da cidade será erguido um monumento a Camões. (...) Perguntei: - O escravo de Camões terá também aí lugar? - imaginei-o sentado na base, com a mão estendida, como quando Camões vivia, se sentava nas ruas para o senhor pobre e abandonado, quase a morrer de fome. -Essa imagem, responderam-me, constituiria uma reprovação contínua à nação, que não cuidou, enquanto vivo, do seu grande poeta.

Hans Christian Andersen - Uma visita a Portugal em 1866


Ricardo para Wings:
It was a wrong number that started it, the telephone ringing three times in the dead of night, and the voice on the other end asking for someone he was not...

Paul Auster, "New York Trilogy"

Após 25 semanas de escrita, o blog 5incronizados passou por uma fase de reflexão, que conduziu à saída, por indisponibilidade de horários, de dois dos seus colaboradores. Os que ficam agradecem aos que partem a sua colaboração, numa experiência que está a ser muito positiva para quem dela participa e que vai continuar, provisoriamente, com três elementos.