domingo, 24 de janeiro de 2010

Desafio V - Resposta

Não me bateria tão fundo se eu não o conhecesse tão bem. Era um lutador, um atirador dos melhores, movia-se no ringue como quem flutua. Tinha um gancho de esquerda sem comparação. Costumava vê-lo por entre flashes de máquinas fotográficas e fumo de cigarros quando me sentava nas filas da frente dos combates. Daqueles, dos quais ele saía sempre vencedor. Depois começou a perder. Não sei porquê. Eu continuei a vê-lo, mas só espalmado no ecrã da televisão. É irónico como um homem tão intenso e corpulento ficava tao pequenino e frágil a duas dimensões. Parecia que eram os fotógrafos e os cigarros quem lhe dava volume. Isto não me bateria tão fundo se ele nao fosse familiar como um primo distante, que só vemos de tempos a tempos, quando há boxe na televisão. E que um dia descobrimos que morreu pelo obituário de um jornal que apanhamos no metro. Foi assim que eu soube da morte dele.

A morte dele bateu-me fundo porque ele é daquelas pessoas que olhamos, e reparamos, e pensamos de todas as maneiras, e nunca lhes conseguimos adivinhar um fim. A vida que os anima é como que uma electricidade que os agita e nunca os abandona. E, tal como o sol que todas as manhãs se levanta de novo, assim esperava que ele nunca se deitasse. Mesmo quando começou a perder, e eu comecei a perder o interesse no boxe também, lembro-me de ver uma entrevista dele na televisão. Ele dizia que os pais eram advogados e o tinham obrigado a tirar o curso de direito contrariado. E então ele tinha começado a frequentar o ginásio da universidade para descarregar a frustração que vem com o ter que aprender a mentir sofisticadamente. Foi ficando bom, e entrou assim no Mundo do boxe. Mas também não era o boxe que o fazia sentir preenchido. Para isso, quando descalçava as luvas, tinha a pintura e o jardim de casa. O que foi terrível, não é de todo o que se espera estar na génese de um lutador, de um devastador de oponentes, de um aglomerado de músculo que tatuava no peito, sobre a esquerda, um tracinho por cada combate que fazia. Como um presidiário a contar os dias.

E foi exactamente como um preso à espera do dia da liberdade que o ouvi, na continuação da entrevista, dizer que aquilo que o boxe lhe dá é a possibilidade de sentir o fio da navalha. No ringue, tudo lhe poderia acontecer, e cada soco que lhe agitava o cérebro dentro do crânio, e cada nódoa negra vista ao espelho na manhã seguinte, mostravam-lhe a precariedade da vida. E ensinavam-no a viver todos os instantes intensamente, a não se perder em convenções ou em vícios. Na verdade, dizia ele, no boxe não lhe interessava vencer, porque aquilo que ele retirava do boxe era verdade na vitória e na derrota. O que ele retirava era o derradeiro segredo da vida. Aquele que só se descobre quando ela se pode perder. E no peito cravava o número de vezes que tinha enfrentado a morte nos olhos, e a tinha derrotado.

E aquilo bateu-me fundo. Nenhum lutador fala assim, nem quer saber daquelas coisas. Provavelmente era um discurso que lhe tinha sido dado antes. Mas quando estava sentado no funeral dele, voltaram a repetir essas mesmas palavras. Não estava lá família nenhuma; só jornalistas e alguns outros lutadores e pessoas que, pelo tamanho, também pertenciam ao mundo do boxe. Havia um homem em particular que me chamou a atenção, que me dizia que esperava poder usar a figura dele como um símbolo de força, como um exemplo de vida inesperada, para que as pessoas soubessem que ainda há quem não passe metade da vida alheado do Mundo, preso aos sonhos que têm para si e ao caminho que os outros lhe traçam. Aproximei-me desse homem, que em surdina se comentava ser "o companheiro dele", e, lembrando-me do meu próprio alheamento nos meus pensamentos que nem me deixaram ler a notícia até ao fim, perguntei-lhe: "como é que ele morreu?"

"Infecção. Escolheu a loja de tatuagens errada. A tatuagem infectou, e a infecção apanhou-lhe o coração e os pulmões. Não houve nada a fazer. Afinal a batalha dele com a morte tinha a ver com o ringue, mas de uma maneira que ele não imaginava."

1 comentário:

  1. Mais vale a tentar a vida de todas as maneiras. Neste ringue, perdemos sempre.

    Gosto sobretudo da razão pela qual ele escolheu o boxe.

    Muito bom =)

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