terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Desafo IV - resposta

Dizes-me que me faz mal beber?

Deixa-me contar-te o que faz mal beber. O que faz mal é beber da garrafa mágica da auto-ilusão. É-te dada para as mãos antes de nasceres, sabias? E dizem-te para a usares com cuidado, que não é para abusar. Mas tu abusas na mesma. As drogas não são de uso, são de abuso. E a auto-ilusão é a maior droga de sempre. Lá porque nos vem agarrada à cabeça e todos bebemos dela, não deixa de ser uma droga. Potentíssima.

Mal nasces e já estás a beber dela. Primeiro és um miúdo dependente, um bebé igual a todos os bebés que só os pais é que acham que é diferente. E por isso tratam-te como se fosses único. Começas a auto-iludir-te logo ali. Não passas de mais uma porra de um bebé genérico, como na vida serás um adulto genérico, mas mesmo assim fazem-te crer que és a reencarnação de algum semi-messias. E, mesmo sem teres sentido de ti, acabaste de provar pela primeira vez o líquido da auto-ilusão. E bebes alegremente enquanto soluças.

Depois começas a ter noção que existes, e começam a encher-te de brinquedos e parvoíces para te distraíres. És estimulado pelo lixo, numa versão mais plástica e colorida. Aliás, tudo te estimula. Achas que quando os objectos desaparecem da tua vista, deixaram de existir. Puxas uma toalha de mesa porque não sabes o que está lá em cima. És um bicho primário, mais burro que um macaco. Não chegas a ser ainda uma pessoa. Mas és pequeno e querido, e todos te fazem sentir apetecível porque dá vontade de te agarrar, porque estamos programados por anos de evolução biológica a gostar do que é pequeno. Pena as noites a chorar, as alturas na mesa em que não queres comer e os teus pais se impacientam contigo. E tu, pode ser por um biberão, mas não páras de beber o teu líquido precioso. Auto-ilusão, acto contínuo.

Tornas-te menos miúdo, mais chorão, birrento, insuportável. Queres mais brinquedos, mais brincadeiras de adultos, bebeste tanto da auto-ilusão que te achas muito mais importante do que a tua condição miserável de corpo meio desenvolvido e mente banal te permitem. Tens um desejo mórbido de agradar aos teus pais. Isto, claro até ao dia em que os teus pais te desiludem pela primeira vez, e aí subitamente reparas que eles já não são perfeitos. Os teus pais também erram. Não poderás sempre contar com eles para te dizerem o que é verdade e mentira, correcto e errado. Estás a ressacar da auto-ilusão. Precisas de mais uma dose. Bebes mais um pouco, e subitamente esqueceste que os teus pais não mais serão os mesmos. Cresceste, mas enganas-te, e continuas agarrado a pessoas que já não te dizem nada. A auto-ilusão ajuda-te a agarrares-te mais a uma infância à qual só estás agarrado porque a auto-ilusão te disse que ela era uma coisa boa.

Isto, claro, até ao momento em que reparas que os teus pais não têm nada a ver contigo. Descobres que os teus pais são só teus pais. Ponto. Que se não fossem teus pais, nem sequer seriam teus amigos. Seriam quanto muito um casal de estranhos a quem dizias "bom dia" se por acaso os conhecesses de algum lado quando se cruzassem na rua. Estás na adolescência. E achas que vês tudo errado porque estás na adolescência. Quando na verdade vês tudo errado porque tudo é errado. Por breves instantes durante o teu crescimento, perdes a turvidez na visão, causada pela bebedeira de auto-ilusão, e és capaz de reparar no Mundo como ele é. Revoltas-te, cansas-te, dás voltas e voltas no interior de ti. Passas meses, por vezes anos, em guerra. Dizes que nunca mais beberás da garrafa da auto-ilusão. Mas relaxa. Mais cedo ou mais tarde, vais colaborar. Se não beberes auto-ilusão voluntariamente, eles vão lá a casa buscar-te, atiram-te para uma cama e injectam-te directamente na veia a forma mais doentia de auto-ilusão que existe: a universidade.

Sim, claro, porque no meio de tudo isto, andaste na escola. E que belo meio de conheceres pessoas esse foi. Foste aleatoriamente emparelhado com gente que não tem qualquer relação contigo. Criaste amizades dentro dessa rede completamente arbitrária de contactos, e acreditaste que aqueles são mesmo amigos, amigos a sério, pessoas únicas. Ah, maravilhosa auto-ilusão! Ela não te deixa ver que, como os teus pais, não há razão nenhuma para acreditares que aqueles seriam teus amigos se os conhecesses noutras circunstâncias, em outros lugares. Mas a escola, esse viveiro de amigos, é a melhor altura para beber auto-ilusão. Como por exemplo a auto-ilusão de que estás a aprender algo significativo, útil. Algo ensinável. Algo que te diferenciará. Algo que quem não está onde tu estás, simplesmente não aprende. A auto-ilusão nunca falha.

E na universidade, é aí que levas a maior dose. Porque te fazem sentir um adulto com 18 anos. Porque te dizem que estás a preparar o teu futuro, porque te colocam perante o emprego, o dinheiro, a responsabilidade. Naturalmente que perante isso queres fugir. Procuras o álcool. Mas o que é o álcool? Durante o tempo em que o estás a beber, tu estás é com uma overdose de auto-ilusão. Nos anos antes, leste poesia e aprendeste filosofias que achaste que podiam mudar o Mundo. Na adolescência, andaste embriagado de poesia. Na universidade, a única coisa que te ensinam é técnica. O que andas a aprender é uma profissão. Fechaste os livros de poesia e selaste as páginas com pingos da tua auto-ilusão. Foi ela que te fez dizer que as vidas dos poetas são falsas.

E as mulheres! Nem te vou falar das mulheres. Achas sempre que aquela que te interessa, é por algum motivo profundo. Contaram-te nas histórias infantis e nos filmes da Disney que o amor é uma coisa profunda que acontece quando no momento exacto duas exactas pessoas trocam um olhar e BOOM! É como uma explosão nuclear, e nesta história também há um martelo que cai sobre a história. E vivem felizes para sempre. Tu nunca consegues isso. Mas a vida é assim, um sem fim de expectativas quebradas. Tens que te adaptar, resignar às pessoas que estão ali à mão. Dá jeito namorar com colegas de turma, com amigos de amigos. Nunca pensas do porquê de serem aquelas pessoas e não outras. Nunca esperas pelo teu próprio sonho - adaptas a tua história Disney-higiénica a quem está ali ao pé, e é tão fácil. Mas lembra-te, todas as noites tomas a tua dose de auto-ilusão. Não há religião mais potente do que esta droga. Até mulheres banais te parecem princesas de desenho animado.

E, agora que acabaste o teu curso, tens que ter namorada fixa. Têm que preparar o futuro juntos. Têm que arranjar casa, e casar. Não necessariamente por esta ordem: tudo depende do teu primeiro salário. Sim, porque agora és responsável, conseguiste finalmente brincar aos adultos. Sentes-te poderoso dentro do teu fato, estrangulado pela tua gravata. Os sapatos queimam-te os pés e são secos como uma tábua, mas lembram-te a figura do teu pai, e de todos os pais do Mundo. Esse é o desígnio que procuras desde que eras um miúdo ranhoso que só queria agradar aos pais. E és tão demente que gostas dessa sensação, ainda que na verdade falhes da mesma forma patética que eles falharam. Tantas vezes esta ideia te assalta, tantas vezes te esmaga esse peso da verdade que te persegue na escuridão que para ti arrastam os teus colegas que vão à procura de vidas diferentes. Os que não seguem o teu rumo. Os coitados, que nunca cresceram. Tantas vezes desejas ser como eles. Mas hei! Para que tens a tua garrafa, senão para esses momentos? Venha mais auto-ilusão para a tua mesa.

Naturalmente casaste, naturalmente a tua esposa está longe de ser o que desejas. Naturalmente têm uma relação disfuncional, naturalmente foi demasiado cedo, ou demasiado tarde, ou demasiado alguma coisa. O mal, vais dizendo a ti mesmo nos teus picos de êxtase de auto-ilusão, é dela, ou de alguma circunstância da vida. Sob o efeito de auto-ilusão, nunca vês que claramente o mal é do casamento em si, é do peso da casa, das taxas de juro no empréstimo, do número de quartos, do escritório que será o quarto do miúdo, da decoração Gato Preto, dos móveis Ikea, da iluminação com focos, das paredes assimétricas pintadas com cores diferentes, dos dias semanais de limpezas, dos planos de refeições para a semana, dos dias e das horas para comer e para beber e para dormir e para falar e para ver TV e para falar ao telefone e para ler jornais e para foder e para receber amigos e para ir a casa de amigos e para visitar os teus pais e para visitar os pais dela e para tudo, tudo o que se possa meter nos interstícios do vosso emprego. Nenhuma destas obrigações é minimamente produtiva, nenhuma te faz crescer, te desenvolve como pessoa. Nenhuma delas te transfigura. Nenhuma delas é mais do que reverência da normalidade. É admirável o que fazes sob o efeito de auto-ilusão. Efeitos permanentes, mesmo perante utilização repetida.

Quer complementes o teu tratamento de auto-ilusão com outras drogas, como amantes, ou puras traições emocionais, mais cedo ou mais tarde algum contraceptivo irá acidentalmente falhar de propósito, e ver-te-ás com um bebé chorão, banal e igual a todos os outros, nos teus braços. E nessa altura vais sentir o que os teus pais sentiram quando te tiveram, e vais tratá-lo como se fosse único. Não porque o seja, uma vez que afinal todos os bebés são iguais. Mas porque estás a beber auto-ilusão como um louco. E a auto-ilusão faz-te achar que aquela coisinha é tua, que podes fazer com ela o que bem desejares, vomitar para cima dela as tuas expectativas e os teus preconceitos, e sujeitá-la à mesma vida a que foste sujeito. O teu filho é o teu apêndice. Portanto ele é único, portanto ele é melhor que os outros. Estás tão viciado em auto-ilusão que cometes a maior das indecências: achas que outra vida te pertence.

Provavelmente por esta altura já começaste a odiar o teu emprego. Já viste que ele é essencialmente inútil, que nada de significativo é gerado, que não estás a fazer nada de bom por ninguém, e que nunca te vais sentir realizado. Começa a ser uma tarefa mecânica, mais papel menos papel, mais impressão menos impressão, mais projecto menos projecto, mais cliente menos cliente. Arrastas-te 8 horas por dia, até teres o teu tempo livre. E aí sim. Aí estás bem. Aí tens a tua família. E que pode haver de errado nisso? Gostas de tudo, até do cheiro da fralda que mudas, do humor da tua mulher que já não vês como vias, da reverência que prestas à tua família, da angústia de te sentires preso, cheio de laços que não podes desfazer, da falta de perspectivas, daquela sensação esquisita de que o teu tempo para decisões já passou. Gostas disso? Ah, claro. É o efeito da auto-ilusão. Não tarda, começas até a dizer que não sentes nada do que eu disse.

Depois, achas que o tempo te está a passar muito rápido. E está. É o que acontece quando sentimos que o nosso bem mais preciso, a juventude, escasseia enquanto a tentamos agarrar pelo pescoço, matar, esfolar e usar como capa para sempre. Vem mais uma casa, mais um carro, mais um filho, mais um cão, mais um gato, mais um Natal e uma árvore de Natal, mais família, menos família. Tudo se resume a uma lista. Tens uma lista de haveres, tens uma lista de pessoas que ficarão a saciar a fome com a parte mais deliciosa do teu cadáver, que são os teus bens, e quando dás conta disso já alguém rasgou a lista que tinhas com os teus sonhos adolescentes, que invariavelmente ficaram pelo caminho porque eram "imaturos". E achas e defendes que isto sim, é a vida, que isto sim, era o teu sonho maior de todos. Porque a auto-ilusão, quando consumida em excesso, torna-se um efeito perene. E pode ter consequências nocivas. Dizia isso na garrafa que nos foi dada antes de nascermos. Mas ninguém lê rótulos, pois não?

Só quanto te aproximas do final da vida deixas de sentir o peso da auto-ilusão. Aí, ela já não te faz falta. Tornas-te amargo, resingão, e estás sempre a dizer que só querias voltar atrás e saber o que sabes. Para quê? Apenas beberias mais auto-ilusão. E passarias a vida ainda mais pedrado. E quando morres, levas o resto da garrafa contigo. Mas não te preocupes. O consumo da auto-ilusão é um hábito socialmente adquirido. O maior legado que deixas é o teres ajudado a perpetuar o ciclo interminável de pessoas que bebem para esquecer a realidade, sendo que essa realidade se tornou o que é porque eles ou outros bebem também. Quando começamos a distorcer a verdade e a privilegiar a mentira, não conseguimos evitar a necessidade de mais mentiras para cobrir as primeiras.

Por isso, dizes que me faz mal beber?

Já o outro dizia que nos podemos embebedar com vinho, com poesia ou com virtude. Bebedeiras de poesia já passaram o seu tempo, e tu e os teus têm o monopólio das bebedeiras com virtude, que é a mesma coisa que auto-ilusão. Eu escolhi o álcool. O álcool ajuda-me a esquecer. Eu, para aguentar o dia-a-dia, preciso de esquecer que existem pessoas como tu. Mas tu, ao beberes da tua auto-ilusão, o que precisas para aguentar o dia-a-dia é de esquecer que precisas de auto-ilusão para aguentares o dia-a-dia. Se tivesses consciência disso, nem que fosse por um instante, tudo te caía. Por isso não me venhas julgar. Sou bêbado, mas auto-ilusão é coisa em que não toco. Deitei a garrafa fora há muito tempo.

...

Pronto, desculpa-me tudo isto. Dá-me um desconto. Claramente estou bêbado.

1 comentário:

  1. "O álcool ajuda-me a esquecer. Eu, para aguentar o dia-a-dia, preciso de esquecer que existem pessoas como tu"

    Toda a gente, lá no fundo precisa de uma bebedeira qualquer. Eu prefiro esta, a do alcool puro.

    Gostei muito do teu texto, não só porque me revejo nas críticas que fazes, como respondes correctamente à ideia do Desafio: provar que um bêbado é mais coerente do que o Senhor de Negocios que o Principezinho visitou.

    =)

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