Depois do quinto cigarro e do terceiro whiskey, comecei a achar que algo estava errado. Comecei a estranhar esta sala, comecei a não reconhecer as palavras fáceis na música do pior pop que ouço. Comecei lentamente a esquecer o que me fez chegar aqui. Já passei por todas as fases. Já juntei a tua roupa num saco e já compilei as nossas fotografias num maço único. Já pus o maço na arrumação das recordações em desuso, onde agora permaneces repousando na companhia de cartas de amigos de infância, de algumas revistas pornográficas, e de alguns carrinhos e outros brinquedos espalhados. Deitei a tua escova de dentes ao lixo, despejei o teu perfume na sanita, e parti o teu corta-unhas num gesto só. Atirei o teu arroz, aquele da única marca de que gostas mas que eu odeio, pela janela. E foi um efeito bonito. Foi como uma celebração do casamento que nunca tivemos. Juntei todas as tuas bebidas num copo só, provei e cospi. Nunca te soube tragar inteira. Tive sempre que te beber aos poucos.
Servi a mim mesmo três whiskeys, acendi o quinto cigarro, e aqui estou, a perguntar-me o que há de estranho e de menos familiar no estuque destas paredes que quiseste tingir, uma de cada cor, e que me vai sendo menos familiar de cada vez que para ele olho. Foi como se me tivesses manchado para sempre. E agora é como se a parte que manchaste, e que foi ficando adormecida, estivesse a tomar conta de mim e eu já nem me conheça. Ou então sou eu quem já esquece, porque o passado já é passado e o que de ti em mim existia começa a abandonar-me. Este sou eu despido de ti. Este sou eu, que já não sabe quem era antes de o cobrires com a tua vida, assim como cobriste a minha casa com as tuas tintas, as tuas bebidas, o teu arroz, o teu corta-unhas, o teu perfume, a tua escova de dentes, as tuas fotografias de nós, a tua roupa, e o teu tabaco de enrolar. O tabaco de que não gostaste, que me pediste para manter cá em casa em caso de necessidade. Como eu. É esse tabaco que agora fumo. Como se fumasse as nossas últimas memórias enquanto marco o teu número de telefone.
“Encontrei aqui o teu velho tabaco de enrolar. Tentei fazer um cigarro e fumei-o mesmo sem filtro. Já não havia.”
“Pára. Pára de fazer isso a ti mesmo! Esse tabaco, já o tinhas aí quando te conheci.”
Quem era eu antes de ti, afinal? Se nos esquecemos dos nossos erros, estamos condenados a repeti-los para sempre. Talvez o tabaco afinal fosse meu, ou talvez fosse daquela que te precedeu, ou talvez da que a precedeu a ela. Talvez a vida seja uma sucessão de máscaras que vamos pondo, umas em cima das outras, para nos convencer que a peça em que entramos efectivamente muda de cena. Para não vermos que a cena é sempre a mesma. Porque se nos lembrássemos sempre, então lembraríamos também a repetição.
Seja como for, nada disto vale a pena. Levantei-me da cadeira, larguei o telefone, os cigarros e o copo. Fui ao quarto tirar o pijama e vestir a minha roupa da rua. Vi-me ao espelho. Estava mesmo a precisar de cortar a barba, de pentear o cabelo. Meti-me no banho. A água que me escorria pela face purificou-me. Apeteceu-me sentir-me novo. Reparei nas minhas unhas enorme e escurecidas por baixo. Fui ao armário, mas não tinha corta-unhas. Suponho que terei de comprar um novo amanhã.
Servi a mim mesmo três whiskeys, acendi o quinto cigarro, e aqui estou, a perguntar-me o que há de estranho e de menos familiar no estuque destas paredes que quiseste tingir, uma de cada cor, e que me vai sendo menos familiar de cada vez que para ele olho. Foi como se me tivesses manchado para sempre. E agora é como se a parte que manchaste, e que foi ficando adormecida, estivesse a tomar conta de mim e eu já nem me conheça. Ou então sou eu quem já esquece, porque o passado já é passado e o que de ti em mim existia começa a abandonar-me. Este sou eu despido de ti. Este sou eu, que já não sabe quem era antes de o cobrires com a tua vida, assim como cobriste a minha casa com as tuas tintas, as tuas bebidas, o teu arroz, o teu corta-unhas, o teu perfume, a tua escova de dentes, as tuas fotografias de nós, a tua roupa, e o teu tabaco de enrolar. O tabaco de que não gostaste, que me pediste para manter cá em casa em caso de necessidade. Como eu. É esse tabaco que agora fumo. Como se fumasse as nossas últimas memórias enquanto marco o teu número de telefone.
“Encontrei aqui o teu velho tabaco de enrolar. Tentei fazer um cigarro e fumei-o mesmo sem filtro. Já não havia.”
“Pára. Pára de fazer isso a ti mesmo! Esse tabaco, já o tinhas aí quando te conheci.”
Quem era eu antes de ti, afinal? Se nos esquecemos dos nossos erros, estamos condenados a repeti-los para sempre. Talvez o tabaco afinal fosse meu, ou talvez fosse daquela que te precedeu, ou talvez da que a precedeu a ela. Talvez a vida seja uma sucessão de máscaras que vamos pondo, umas em cima das outras, para nos convencer que a peça em que entramos efectivamente muda de cena. Para não vermos que a cena é sempre a mesma. Porque se nos lembrássemos sempre, então lembraríamos também a repetição.
Seja como for, nada disto vale a pena. Levantei-me da cadeira, larguei o telefone, os cigarros e o copo. Fui ao quarto tirar o pijama e vestir a minha roupa da rua. Vi-me ao espelho. Estava mesmo a precisar de cortar a barba, de pentear o cabelo. Meti-me no banho. A água que me escorria pela face purificou-me. Apeteceu-me sentir-me novo. Reparei nas minhas unhas enorme e escurecidas por baixo. Fui ao armário, mas não tinha corta-unhas. Suponho que terei de comprar um novo amanhã.
"Quem era eu antes de ti, afinal?"
ResponderEliminarÉ o erro repetido pelo qual o passado nos condena: esquecermos quem somos.
Porque ás vezes é mais fácil repetir o passado. E de cada vez que se repete o erro é como se fosse a primeira vez. Ainda assim menos doloroso do que um espelho limpo.
é um texto muito interessante =)