segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Desafio II - resposta

Então eu comecei logo por lhe dizer "sabe, senhor doutor, se é que você é médico mesmo... eu não acredito em nada disto". E ele respondeu-me "então estás curado", vê lá se isto se entende. Eu repeti que não acreditava nesta coisa da anti-psicologia, que tinha sido um amigo nosso a dar-me o contacto. Ele perguntou-me "e porque te deu esse teu amigo o meu contacto?", e sempre assim, a tratar-me por tu, como se me conhecesse há anos ou como se não me respeitasse. Mesmo assim, eu lá lhe contei, já que ali estava.

"Porque ele acha que se calhar eu senti que a minha vida estava demasiado orientada. A empresa onde trabalho propôs-me ficar como sócio. Isso implica um ordenado maior. Mas eu tenho 26 anos. A minha mulher está grávida de 6 meses. Casei-me aos 24 anos. E no momento em que me propuseram ser sócio, senti um peso enorme. Saí a correr da sala e fui vomitar. Passei três dias de cama sem vontade de voltar ao meu emprego. Comecei a pensar que se passava alguma coisa de mal comigo. Então comentei com um amigo meu que já cá veio que talvez precisasse de ir a um psicólogo. Mas ele disse-me que com os meus sintomas, do que precisava mesmo era de um anti-psicólogo. Eu nem sei o que é isso, se quer que lhe diga. O senhor é doutor?"

Depois ele perguntou-me se nunca tinha ouvido falar da anti-psicologia. Eu disse que não. E pronto, ele lá começou a falar e eu praticamente já não disse mais nada. Disse-me que numa consulta normal seria eu a falar. Naquela, eu estava ali para ouvir. Que numa consulta normal eu iria chegar às minhas próprias conclusões, e assim conhecer-me melhor. Mas eu estava ali para ser destruído. Ele iria destruir tudo o que tenho por adquirido de uma vez só, para que eu me pudesse depois reconstruir a partir do nada. Eu disse-lhe apenas que...

"... o senhor doutor não entendeu! Eu não me sinto infeliz. Sim, é verdade que senti um peso naquela sala, mas eu gosto muito da minha vida. Eu sinceramente não poderia ser mais feliz."

E isso enfureceu-o. Levantou-se da cadeira e já gritava que eu sei lá o que posso, que "a felicidade é o caminho dos inconscientes", que "felicidade nenhuma leva ninguém a superar-se" e que a única felicidade que me esperava se me entregasse ao emprego do vómito seria "tornar a minha vida em vomitado".

"Mas não é esse o objectivo das nossas vidas, ser feliz?"

Parece-me óbvio que sim. E se eu sou feliz, mesmo com um ou outro momento mau ou de indecisão, para quê pôr isso em causa? Ele respondeu-me com qualquer coisa estranha sobre pedaços de carvão. Acho que queria dizer que só conhecendo as alternativas podemos avaliar o caminho que escolhemos, que entregarmo-nos muito facilmente e sem qualquer reflexão à primeira felicidade que nos aparece no caminho só gera angústia. Que a felicidade é um objectivo de longo prazo que só se mede no final da vida, e que não conseguimos nunca avaliar com clareza no presente. E acho que ele queria também dizer que só perguntando à realidade o que acontece quando arriscamos é que verdadeiramente podemos saber quão felizes os novos caminhos serão. E por isso, nunca devo ter medo de correr riscos. Nunca devo tornar sagradas as coisas que me fazem felizes. Elas podem estar apenas a esconder uma realização muito maior. Porque nunca se está tão bem quanto se poderia estar.

"Mas tu és feliz comigo, não és?"

"Claro que sou. Sou feliz por ter casado contigo. Sou feliz no meu emprego. Simplesmente sou. E nem penso demasiado nisso. Simplesmente sinto-o."

"Ainda bem."

"Mas olha, vou lá mais uma vez ver como corre. Ah, já me lembrei do que ele disse sobre carvão. Era qualquer coisa como que é possível que um pedaço de carvão no forno não se queime. Ele depois repetiu antes de eu vir embora. Mas nessa altura, mesmo antes de eu fechar a porta, acrescentou qualquer coisa. Disse "mas andar a meter carvão num fogo que não acende é simplesmente estúpido".

"Vou fazer o jantar, já são horas."

2 comentários:

  1. Mesmo não concordando com algumas coisas deixas implícitas (ou explícitas para mim, não sei bem) o teu texto deixa-me a pensar.

    Consigo imaginar perfeitamente a tua personagem e consigo imaginar "sê-la".

    E gostei da forma como terminaste. Foi o toque subtil num texto duro.
    =)

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  2. "felicidade que me esperava se me entregasse ao emprego do vómito seria "tornar a minha vida em vomitado".

    Do teu texto, o que guardo melhor é a tua reflexão sobre a questao de se ser ou nao feliz. Porque, de facto, a felicidade é uma das maiores e melhores utopias. Procuramos algo que nos faça mais feliz ou um qualquer pormenor que nao nos torne tao inuteis.

    E fizeste, a meu ver, aqui a ligação á frase: o que da um pequeno sentido à nossa vida é o carvao que nao arde.O que nos dá uma certa tranquilidade, um sentimento de lar é o carvao que nao arde.

    E tens toda a razao, "meter carvao num fogo que nao arde" é simplesmente estupido.

    Gostei!

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