terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Desafio II - Resposta

"The things you own end up owning you."
(Chuck Palahniuk, Fight Club)

Ele só voltou a sentir-se realmente sozinho muito depois de ter deixado Lisboa. Com a azáfama do aeroporto, e do avião, e de novo do aeroporto, só voltou a sentir-se sozinho quando saiu pela porta do aeroporto e inspirou pela primeira vez o frio de França. Estavam exactamente menos dez graus que em Lisboa, e a roupa de meia estação que trazia protegiam-no apenas o mínimo razoável para o frio que agora sentia. Olhou em volta. Conhecia tudo aquilo muito bem, tudo bem demais.

Esperou pelo primeiro táxi. Ele não era um turista qualquer. Não, ele nem sequer era um turista. “Saint Nicolas, côté Pont Neuf”. A determinação nas palavras e na voz deixavam para trás qualquer dúvida. E foi aí, foi ao falar pela primeira vez na “sua” França, que em vez de frio sentiu calor. Sentiu o mesmo calor que sentia de cada vez que voltava a Lisboa. “Melhor que ir, só mesmo voltar”, ouvira uma vez, e com que razão. Sentiu-se em casa. E assim que este pensamento se materializou na sua cabeça, sentiu um arrepio. Sentiu-se em casa. Casa.

Viu pela enésima vez passar a auto-estrada periférica, depois entrar na cidade, as ruas e ruelas. Em tempos sentiu-se um turista naquela cidade. Muito mais que um estudante. Sentiu-se perdido, depois campónio numa azáfama desconhecida de uma cidade que não era sua. E que foi descobrindo aos poucos. O castanho. As vielas. As pequenas lojas, as pessoas, a voz. A língua. Que aos poucos e poucos tomou como sua. Era a sua cidade, era a cidade onde agora passava os dias, com quem partilhava alegrias e tristezas. E foi a sua cidade até ao dia em que se foi embora, e de novo voltou a Lisboa. E o voltar soube-lhe bem.

O táxi parou sem que ele desse por isso. Tinha chegado. A casa era mesmo ali. Pagou e saiu. Sentiu-se de novo sozinho, e de novo inspirou. Sentiu o frio que lhe entrava pelo corpo. Sentiu o calor de estar em casa. Pensou apenas escassos segundos no que tinha feito. No que estava a fazer. Depois tocou à campainha, e ouviu-a ressoar lá dentro. Abriram. Entrou pelo pátio interior, direito à casa. Ouviu a porta da rua fechar-se atrás de si. Sentiu outro arrepio. Mais do que a sua cidade, ele fazia agora parte da cidade.

Quando finalmente a viu, ambos sorriram. Mesmo que fosse por pouco tempo, agora ele era dali. E o voltar soube-lhe tão bem.

2 comentários:

  1. Porque eu te conheço e sei de onde vem a inspiração para esta história... =)

    Because France owns you. ;)

    Gostei =)

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  2. A forma como eu interpreto a frase tem a ver com a filosofia geral do livro. O vazio espiritual que a nossa geração sente tem a ver com a falta de grandes causas próximas - não tivémos uma grande guerra, por exemplo. Esse vazio é-nos colmatado consumindo. Temos as nossas vidas IKEA, e até viajar para a generalidade das pessoas é tido como um objecto de consumo. Com isso, varremos para baixo do tapete os nossos instintos mais primários. Pior - achamos isso bom. Mas as coisas que consumimos, e de que tomamos posse, acabam por ganhar a posse sobre nós mesmos. Somos escravizados pelos objectos: pelo carro, pela casa - todos gritam desesperadamente pela nossa atenção quando precisam de manutenção, de limpezas, de cuidados. Todos absorvem o nosso tempo. Tornamo-nos escravos do que possuímos. E, no livro, isso começa por ser referido sobre objectos, mas acaba por se aplicar aos nossos próprios desejos e vontades, aos quais também nos escravizamos.

    Ao ler o teu texto, tomei consciência que também os lugares podem tornar-se tão parte de nós que começam a definir-nos, a ser um elemento de quem somos e a integrar o conjunto de coisas com um ascendente feliz ou infeliz sobre nós. E quanto mais não fosse só por isso já valeu muito a pena ter-te lançado este tema. Obrigado pela forma como pegaste nele e pelo que me fizeste entender. :)

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