domingo, 31 de janeiro de 2010

Desafio VI - Resposta

Apanhou o autocarro em fúria. O Inverno estava no fim, mas ela nem reparou na luminosidade brilhante de Lisboa naquela hora quente. Ignorava o cenário, como sempre ignorou as pessoas.
Tinha menos de cinco minutos para chegar ao aeroporto. Apertou as mãos com força e respirou fundo: nunca tinha sentido tanta adrenalina. Até porque nunca tinha sentido tanto medo.
Ele ia partir. Partir.
O autocarro parou à frente do aeroporto e ela atirou-se para a frente, sem se importar com as pessoas que empurrou e correu para a entrada. Sentiu que a olhavam como se ela fosse louca. Finalmente, no meio de Lisboa um filme entrara na sua vida.
Quando entrou no aeroporto aquele cheiro de viagens entorpeceu-lhe os músculos. Alimentou-lhe o coração. Ele ia partir. Ele ia partir. Ele ia partir.
E ela não.
Quando finalmente o encontrou, ele estava já perto da passagem à zona interdita. Viu-o com as suas malas de sempre. E adrenalina abandonou-a. Era um filme onde ela já não entrava.
Ele olhou-a sem agravo na voz. Disse-lhe “Adeus”. E automaticamente ela pensou “O passado é inútil como um trapo”. Não lhe chegou sequer a pedir para ficar.
Era um filme onde ela nunca entrara.
"Do it, or do not. The is no try."

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Desafio VI- Resposta

O silêncio é a expressao máxima da tua consciência. Se tens essa previsão de falhanço é porque o vais sentir na pele. É porque sabes que não vais ser duro o suficiente, resistente o suficiente. Humano o suficiente. Tu próprio o suficiente.
Lá no fundo sabes bem que a evolução respira em todas as casas, esconde-se em todas as calçadas. As noites de sono profundo gastas em insónias frívolas vêm dessa percepção aguda nocturna. Não serás o escolhido, não és suficientemente bom. Demasiado fraco para defenderes o teu ponto de vista único ou para conquistar coragem para criar um. Demasiado frágil para descodificares uma metáfora e viveres com o ideal que descobriste na forma como interpretas o que sentes. O que vês. O que ouves. É tão mais fácil deixares que o sonho de um alguém comande a forma como existes! Mas é por isso que o silencio te conta, pormenorizadamente, como e quando vais falhar. Fechas os olhos e desenha-se na tua mente o teu ser despedaçado pela tua mediocridade.
Podias ter-me ouvido. Podias ter escolhido não me crucificares por impor a minha presença inigualável no mundo sensível. Por resistir a essas correntes invisíveis que estrangulam a imaginação. Por ter persistido na dignidade de ser eu. Inteiramente eu. Inovadoramente eu.
Lamento. O silêncio diz-me que sobrevivo. Sobreviverei até ao fim. Porque a selecção crua existe em todos nós, em cada pedaço de palavra proferida. Mas ela escolheu-me.
E eu sempre soube. Porque a verdade funda é que fui eu que a escolhi. Enquanto tu te limitaste a deduzir que serias escolhido ( daí a tua banal fraqueza, daí o teu rosto ser o rosto da multidão ).
Morrerás tristemente. Ingloriamente. Porque sentiste-te a morrer enquanto ainda estavas vivo. Eu sei que vou continuar vivo .Até ao fim.

" Don't think you are. Know you are."

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Desafio VI

Tiago para Blue Storm:

"Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates."

Fernando Pessoa, in Tabacaria

Wings para Ricardo:

"Quem se senta no fundo do poço para contemplar o céu há de achá-lo pequeno"

Han Yu


Blue Storm para Alice in Wonderland:

"Do or do not, there is no try." Yoda, Star Wars



Alice in Wonderland para Wings:

"Dont't think you are. Know you are"

(Matrix)



Ricardo para Tiago:

"When I came out into society I was 15. I already knew that the role I was condemned to, namely to keep quiet and do what I was told, gave me the perfect opportunity to listen and observe. Not to what people told me, which naturally was of no interest, but to whatever it was they were trying to hide. I practiced detachment. I learned how to look cheerful while under the table I stuck a fork into the back of my hand. I became a virtuoso of deceit. It wasn't pleasure I was after, it was knowledge. I consulted the strictest moralists to learn how to appear, philosophers to find out what to think, and novelists to see what I could get away with, and in the end, I distilled everything to one wonderfully simple principle: win or die."
Choderlos de Laclos, "Dangerous Liaisons" (adaptação para o filme)

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Desafio V - Reposta

“Quando eu morrer voltarei para buscar
os instantes que não vivi junto ao mar”
Sophia de Mello Breyner Andresen

Eu conheço o mar. Eu posso dizer, com alguma vaidade mesmo à mistura, que conheço o mar. Não o conheço todo, como é óbvio. Mas conheço. Vejo-o ao acordar, e vejo-o ao adormecer. Vejo quando a luz rosa do nascer do sol se reflecte no mar, e vejo quando a luz laranja lhe deita os seus últimos raios do dia. Vejo a lua reflectir-se nas ondas, e medir a ondulação a partir fraca luz dos candeeiros da rua reflectida.

Eu conheço o mar no Verão e no Inverno. Nos dias de tempestade e de bonança, de luz e de névoa, de chuva e de seca. Nos dias de calor e nos dias de frio. Eu conheço o mar frio, e conheço o mar quente. E conheço o mar do Minho e o mar do Algarve. E o mar de Lisboa feita Império, e o da Beira feita Litoral e do Alentejo feito maresia. Sim, eu sei qual é a sensação de navegar, e a sensação de estar na praia, e a sensação de estar mergulhado a deixar-se levar ao sabor da corrente.

Eu sei, ainda mais do que isso, qual é a sensação de estar feliz. A sensação de não sentir nada senão a mais pura completude, a mais perfeita fusão, a mais infantil felicidade. É o mar. É o mesmo mar de quando era pequeno. O mesmo onde brinquei, onde mergulhei, onde ainda hoje mergulho. O mesmo onde curei feridas do corpo, e feridas da mente. O mesmo do qual nos afastamos, e o mesmo para o qual voltamos. Porque “melhor que ir, só mesmo voltar”.

E eu conheço, acima de tudo, a minha maior visão do paraíso. Se o paraíso for “a melhor coisa do mundo” para cada pessoa, o meu paraíso tem de ter mar. É impossível não ter. É impossível o meu paraíso não contemplar um dia de calor abrasador, com o sol no seu ponto mais alto, e um imenso mar à minha frente, calmo, sereno, tépido. É impossível eu não poder ficar eternamente por baixo do meu chapéu-de-sol, a ler todos os livros que queria ter lido antes de morrer, e em frente a este mar. A ouvir toda a música que não tive tempo para descobrir ou conhecer. Ocasionalmente uma onda mais marota num dia de maré mais cheia vir-me-á beijar delicadamente os pés, e relembrar-me como o mar é frio. E como o sol é quente.

No meu paraíso haverá mar. No meu paraíso eu poderei ver o mar todos os dias. Eu poderei ver o Sol a nascer no fundo do mar, e o Sol a pôr-se no fundo do mar. Eu poderei ver o mar tomar todas as cores, poderei ver o mar envelhecer enquanto eu, já morto, o acompanharei para sempre. E se o meu paraíso não tiver mar? Não faz mal. Nesse caso terei apenas de voltar a nascer, para de novo poder viver junto ao mar.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Desafio v- Resposta

Era a primeira vez que sentia aquilo em muito tempo. Aquela doce sensação de existir.
Era a primeira vez em muito tempo que a noite era tão agradável, tão tranquila. Tão iluminada. E tão friamente escura.
Mas apercebia-se que os transeuntes o olhavam com bastante desagradado, a um ponto de sentirem um profundo medo. O cabelo muito negro e desalinhado, o rosto muito branco e consciente de que o mundo ainda respira. A postura, segura, leve como uma pena, quase maliciosa.
Mas ocasionalmente o rosto dele ficava debaixo de um candeeiro e eles viam os olhos: azuis abertos, claros vivos, eram a metáfora do mar em tudo o que o mar significava. E temiam-no verdadeiramente quando o enfrentavam assim. Desumanamente belo. Inteiramente de si próprio.
E ele sorria. Não chegava sequer a importar-se. Estava vivo, existia. Sentia a noite a acariciar-lhe o rosto, as mãos. O espírito. Deixava-se deslumbrar pela beleza da lua envolvida no seu manto negro. Se o céu não fosse tão escuro e se o luar não fosse tão mais fraco que a luz do Sol a noite não era tão. Mágica.
Porque ele era o inverso dos outros. O Sol cansava-o , cegava-o. O dia tendia para a monotonia, para uma rotina inquebrável mesmo quando era quebrada. O dia tendia para um detalhado fingimento em garantir uma ilusão. Patética. De dia via-se tudo, fazia-se tudo. E ninguém está mais próximo do tudo do que o nada.
Sabia que os transeuntes naquela noite e qualquer pessoa durante o dia o olhavam como se fosse aberração.
Talvez fosse.
Mas era primeira vez que sentia aquilo em muito tempo: a beleza de um pormenor a quem só lhe é dada a devida importância quando o que resta é a simplicidade crua. Era a primeira vez em muito tempo que o vento fresco gélido lhe beijava a face. E como era deslumbrante observar a persistência patética de uma sociedade patética iluminado por um simples e tímido candeeiro! Os outros eram indefinidamente engolidos pela escuridão. Nasceram ignorantes e morrerão ignorantes porque a solução vive sempre no pormenor perdido na caótica escuridão. E vale a pena morrer por se ser um candeeiro numa noite negra, suficientemente forte para não ser absorvido pela depressão da noite, arruinando o Sol. A beleza está na simplicidade, a solução está no ponto brilhante que sobressai explosivamente no negro. Nada é mais necessário que amar a escuridão para se ser intrinsecamente feliz.
Era a primeira vez em muito, muito tempo que se lembrava de que amava a noite, aromática, fria ao som do tímido luar.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Desafio V - Resposta

"Quando falares procura que as tuas palavras sejam melhores que o silêncio."

Nunca fui uma pessoa de muitas palavras.

Nunca achei realmente necessário partilhar os meus pensamentos, comentar todas as situações. Se me falam eu respondo, senão não vejo motivo para o fazer.

E eles acham isso errado. Criticam-me, dizem-me para falar e dizer o que acho. Também tenho direito de me exprimir e dar opiniões, de tomar partidos. Eu sei que tenho. Também tenho o direito de preferir ficar silenciosa.

Mas não entendo uma coisa. A maioria das pessoas palra que nem papagaios e não diz nada de jeito. Impõe as suas perspectivas, mentem, gabam-se, magoam. Usam e abusam das palavras e não chegam a lado nenhum. Não era preferível ficarem caladas?

Não sei o que pensar sobre isso. Aliás, prefiro manter-me calada neste assunto.

domingo, 24 de janeiro de 2010

Desafio V - Resposta

"É sem qualquer terror que eu vejo a desunião das moléculas da minha existência."

Adoro janelas.
Faço viagens em janelas. Quem eu sou sempre esteve numa janela. Quem eu deixar de ser, vai estar numa janela.
À janela sempre ouvi música. Sempre senti o cheiro do Mar. Sempre soube onde estava o infinito.
À janela sempre senti vontade de voar.
Hoje estava a chover. E a vida são estas gotas de água que me caiem na cara enquanto corro pela rua, desenfreada. A consciência absoluta de que a vida está em mim.
E dizes tu que vou eu morrer...
Eu sei que vou.
Mas os meus átomos dissociados vão juntar-se ao Mar e à música. Vão juntar-se ao infinito amor pelo desconhecido. Vão viajar no vento.

Quando eu morrer, procura-me numa janela. É lá que os meus átomos se juntam.

Desafio V - Resposta

Não me bateria tão fundo se eu não o conhecesse tão bem. Era um lutador, um atirador dos melhores, movia-se no ringue como quem flutua. Tinha um gancho de esquerda sem comparação. Costumava vê-lo por entre flashes de máquinas fotográficas e fumo de cigarros quando me sentava nas filas da frente dos combates. Daqueles, dos quais ele saía sempre vencedor. Depois começou a perder. Não sei porquê. Eu continuei a vê-lo, mas só espalmado no ecrã da televisão. É irónico como um homem tão intenso e corpulento ficava tao pequenino e frágil a duas dimensões. Parecia que eram os fotógrafos e os cigarros quem lhe dava volume. Isto não me bateria tão fundo se ele nao fosse familiar como um primo distante, que só vemos de tempos a tempos, quando há boxe na televisão. E que um dia descobrimos que morreu pelo obituário de um jornal que apanhamos no metro. Foi assim que eu soube da morte dele.

A morte dele bateu-me fundo porque ele é daquelas pessoas que olhamos, e reparamos, e pensamos de todas as maneiras, e nunca lhes conseguimos adivinhar um fim. A vida que os anima é como que uma electricidade que os agita e nunca os abandona. E, tal como o sol que todas as manhãs se levanta de novo, assim esperava que ele nunca se deitasse. Mesmo quando começou a perder, e eu comecei a perder o interesse no boxe também, lembro-me de ver uma entrevista dele na televisão. Ele dizia que os pais eram advogados e o tinham obrigado a tirar o curso de direito contrariado. E então ele tinha começado a frequentar o ginásio da universidade para descarregar a frustração que vem com o ter que aprender a mentir sofisticadamente. Foi ficando bom, e entrou assim no Mundo do boxe. Mas também não era o boxe que o fazia sentir preenchido. Para isso, quando descalçava as luvas, tinha a pintura e o jardim de casa. O que foi terrível, não é de todo o que se espera estar na génese de um lutador, de um devastador de oponentes, de um aglomerado de músculo que tatuava no peito, sobre a esquerda, um tracinho por cada combate que fazia. Como um presidiário a contar os dias.

E foi exactamente como um preso à espera do dia da liberdade que o ouvi, na continuação da entrevista, dizer que aquilo que o boxe lhe dá é a possibilidade de sentir o fio da navalha. No ringue, tudo lhe poderia acontecer, e cada soco que lhe agitava o cérebro dentro do crânio, e cada nódoa negra vista ao espelho na manhã seguinte, mostravam-lhe a precariedade da vida. E ensinavam-no a viver todos os instantes intensamente, a não se perder em convenções ou em vícios. Na verdade, dizia ele, no boxe não lhe interessava vencer, porque aquilo que ele retirava do boxe era verdade na vitória e na derrota. O que ele retirava era o derradeiro segredo da vida. Aquele que só se descobre quando ela se pode perder. E no peito cravava o número de vezes que tinha enfrentado a morte nos olhos, e a tinha derrotado.

E aquilo bateu-me fundo. Nenhum lutador fala assim, nem quer saber daquelas coisas. Provavelmente era um discurso que lhe tinha sido dado antes. Mas quando estava sentado no funeral dele, voltaram a repetir essas mesmas palavras. Não estava lá família nenhuma; só jornalistas e alguns outros lutadores e pessoas que, pelo tamanho, também pertenciam ao mundo do boxe. Havia um homem em particular que me chamou a atenção, que me dizia que esperava poder usar a figura dele como um símbolo de força, como um exemplo de vida inesperada, para que as pessoas soubessem que ainda há quem não passe metade da vida alheado do Mundo, preso aos sonhos que têm para si e ao caminho que os outros lhe traçam. Aproximei-me desse homem, que em surdina se comentava ser "o companheiro dele", e, lembrando-me do meu próprio alheamento nos meus pensamentos que nem me deixaram ler a notícia até ao fim, perguntei-lhe: "como é que ele morreu?"

"Infecção. Escolheu a loja de tatuagens errada. A tatuagem infectou, e a infecção apanhou-lhe o coração e os pulmões. Não houve nada a fazer. Afinal a batalha dele com a morte tinha a ver com o ringue, mas de uma maneira que ele não imaginava."

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Desafio V

Tiago para Wings:

"At night a candle is brighter than the sun."
(Sting, in Englishman in New York)


Wings para Blue Storm:

"Quando falares procura que as tuas palavras sejam melhores que o silêncio"
Proverbio Indiano


Ricardo para Alice in Wonderland:

"C'est sans aucune terreur que j'aperçois la désunion des molécules de mon existence."
("É sem qualquer terror que eu vejo a desunião das moléculas da minha existência.")
Marquês de Sade


Alice in Wonderland para Tiago:

“Quando eu morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto ao mar”
Sophia de Mello Breyner Andresen


Blue Storm para Ricardo:

"Passamos mais de metade da vida alheados do mundo."


Desafio IV - Resposta

"The evil uses very masks, but the most atrocious is the virtue"

Enquanto conduzia, grossas lágrimas rolavam pela sua face, embora ela não chorasse realmente. O seu estado de apatia era, na verdade, o mais incomodativo. Fazia aquele caminho mecanicamente, sem nunca ter pensado no que estava a fazer desde que saíra de casa.

Enquanto conduzia, pensava no que tinha acontecido. As suas malas à porta. A cara fria dele, impenetrável. Nem um pingo de tristeza, de humanidade. Nem um pingo do homem que amava. E era isso que lhe doía mais. Ela amava-o. Ela ainda o amava. E não o conseguia tirar da cabeça, por maior que tivesse sido a maldade que ele fizera.

Foi o amor que a cegou. Foi o ver nele a sua alma gémea, a pessoa perfeita. Conseguira lidar com os seus defeitos, e amava as suas qualidades. E ele retribuía. Retribuíra sempre. Ela sentia que viveram felizes. Muito felizes. Um com o outro. Anos. E nem quando ele lidava mal com situações adversas ela compreendeu a real profundidade do seu ser. Da sua máscara. Daquilo que ele escondia no dia-a-dia, e que apenas não conseguia esconder quando sentia a necessidade de se defender, ou de rápida e fatalmente atacar um inimigo.

Não, ele não era animal. Ou seria, talvez, enfim, um pouco animalesco. Defendia-se quando pressentia o perigo. E defendia-se atacando. Ela vira por várias vezes as suas explosões. E apaziguava-as. E chorava à noite, justificando-se que era apenas a personalidade dele, mas nada de grave. O amor por ele cegou o seu sexto sentido. Ela devia ter sentido.

E ele sentia-se bem. Tinha a sua mulher. Tinha uma boa vida. Tinha a vida que queria ter, porque quando não tinha lutava contra isso. Lutava veementemente, intensamente. E foi aquela carta que despoletou tudo. Ele próprio não conseguia justificar o que sentia. Era algo superior a si. Era uma crueldade que ele não compreendia, que ele não controlava, mas que no entanto o fazia sentir-se bem consigo mesmo.

E depois foi tudo o que aconteceu. As acusações, os berros, os vizinhos a vir à porta, a estalada final, uma porta a bater. Ela lembrava-se apenas de uma mancha vaga e difusa de tudo o que aconteceu. Não compreendia ainda como tinha acontecido. No banco ao seu lado no carro, a carta amarrotada que ele tinha na mão quando ela entrou em casa. Era estéril. E o seu marido reagiu com ela como reagira com qualquer outro que o tivesse ameaçado. Ferozmente. Sem piedade.

A virtude dele cegara-a. E foi assim, cega, que negou todos os sinais da forma como ele via o mundo. Da forma como ele era cruel para todos os que o rodeavam.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Desafo IV - resposta

Dizes-me que me faz mal beber?

Deixa-me contar-te o que faz mal beber. O que faz mal é beber da garrafa mágica da auto-ilusão. É-te dada para as mãos antes de nasceres, sabias? E dizem-te para a usares com cuidado, que não é para abusar. Mas tu abusas na mesma. As drogas não são de uso, são de abuso. E a auto-ilusão é a maior droga de sempre. Lá porque nos vem agarrada à cabeça e todos bebemos dela, não deixa de ser uma droga. Potentíssima.

Mal nasces e já estás a beber dela. Primeiro és um miúdo dependente, um bebé igual a todos os bebés que só os pais é que acham que é diferente. E por isso tratam-te como se fosses único. Começas a auto-iludir-te logo ali. Não passas de mais uma porra de um bebé genérico, como na vida serás um adulto genérico, mas mesmo assim fazem-te crer que és a reencarnação de algum semi-messias. E, mesmo sem teres sentido de ti, acabaste de provar pela primeira vez o líquido da auto-ilusão. E bebes alegremente enquanto soluças.

Depois começas a ter noção que existes, e começam a encher-te de brinquedos e parvoíces para te distraíres. És estimulado pelo lixo, numa versão mais plástica e colorida. Aliás, tudo te estimula. Achas que quando os objectos desaparecem da tua vista, deixaram de existir. Puxas uma toalha de mesa porque não sabes o que está lá em cima. És um bicho primário, mais burro que um macaco. Não chegas a ser ainda uma pessoa. Mas és pequeno e querido, e todos te fazem sentir apetecível porque dá vontade de te agarrar, porque estamos programados por anos de evolução biológica a gostar do que é pequeno. Pena as noites a chorar, as alturas na mesa em que não queres comer e os teus pais se impacientam contigo. E tu, pode ser por um biberão, mas não páras de beber o teu líquido precioso. Auto-ilusão, acto contínuo.

Tornas-te menos miúdo, mais chorão, birrento, insuportável. Queres mais brinquedos, mais brincadeiras de adultos, bebeste tanto da auto-ilusão que te achas muito mais importante do que a tua condição miserável de corpo meio desenvolvido e mente banal te permitem. Tens um desejo mórbido de agradar aos teus pais. Isto, claro até ao dia em que os teus pais te desiludem pela primeira vez, e aí subitamente reparas que eles já não são perfeitos. Os teus pais também erram. Não poderás sempre contar com eles para te dizerem o que é verdade e mentira, correcto e errado. Estás a ressacar da auto-ilusão. Precisas de mais uma dose. Bebes mais um pouco, e subitamente esqueceste que os teus pais não mais serão os mesmos. Cresceste, mas enganas-te, e continuas agarrado a pessoas que já não te dizem nada. A auto-ilusão ajuda-te a agarrares-te mais a uma infância à qual só estás agarrado porque a auto-ilusão te disse que ela era uma coisa boa.

Isto, claro, até ao momento em que reparas que os teus pais não têm nada a ver contigo. Descobres que os teus pais são só teus pais. Ponto. Que se não fossem teus pais, nem sequer seriam teus amigos. Seriam quanto muito um casal de estranhos a quem dizias "bom dia" se por acaso os conhecesses de algum lado quando se cruzassem na rua. Estás na adolescência. E achas que vês tudo errado porque estás na adolescência. Quando na verdade vês tudo errado porque tudo é errado. Por breves instantes durante o teu crescimento, perdes a turvidez na visão, causada pela bebedeira de auto-ilusão, e és capaz de reparar no Mundo como ele é. Revoltas-te, cansas-te, dás voltas e voltas no interior de ti. Passas meses, por vezes anos, em guerra. Dizes que nunca mais beberás da garrafa da auto-ilusão. Mas relaxa. Mais cedo ou mais tarde, vais colaborar. Se não beberes auto-ilusão voluntariamente, eles vão lá a casa buscar-te, atiram-te para uma cama e injectam-te directamente na veia a forma mais doentia de auto-ilusão que existe: a universidade.

Sim, claro, porque no meio de tudo isto, andaste na escola. E que belo meio de conheceres pessoas esse foi. Foste aleatoriamente emparelhado com gente que não tem qualquer relação contigo. Criaste amizades dentro dessa rede completamente arbitrária de contactos, e acreditaste que aqueles são mesmo amigos, amigos a sério, pessoas únicas. Ah, maravilhosa auto-ilusão! Ela não te deixa ver que, como os teus pais, não há razão nenhuma para acreditares que aqueles seriam teus amigos se os conhecesses noutras circunstâncias, em outros lugares. Mas a escola, esse viveiro de amigos, é a melhor altura para beber auto-ilusão. Como por exemplo a auto-ilusão de que estás a aprender algo significativo, útil. Algo ensinável. Algo que te diferenciará. Algo que quem não está onde tu estás, simplesmente não aprende. A auto-ilusão nunca falha.

E na universidade, é aí que levas a maior dose. Porque te fazem sentir um adulto com 18 anos. Porque te dizem que estás a preparar o teu futuro, porque te colocam perante o emprego, o dinheiro, a responsabilidade. Naturalmente que perante isso queres fugir. Procuras o álcool. Mas o que é o álcool? Durante o tempo em que o estás a beber, tu estás é com uma overdose de auto-ilusão. Nos anos antes, leste poesia e aprendeste filosofias que achaste que podiam mudar o Mundo. Na adolescência, andaste embriagado de poesia. Na universidade, a única coisa que te ensinam é técnica. O que andas a aprender é uma profissão. Fechaste os livros de poesia e selaste as páginas com pingos da tua auto-ilusão. Foi ela que te fez dizer que as vidas dos poetas são falsas.

E as mulheres! Nem te vou falar das mulheres. Achas sempre que aquela que te interessa, é por algum motivo profundo. Contaram-te nas histórias infantis e nos filmes da Disney que o amor é uma coisa profunda que acontece quando no momento exacto duas exactas pessoas trocam um olhar e BOOM! É como uma explosão nuclear, e nesta história também há um martelo que cai sobre a história. E vivem felizes para sempre. Tu nunca consegues isso. Mas a vida é assim, um sem fim de expectativas quebradas. Tens que te adaptar, resignar às pessoas que estão ali à mão. Dá jeito namorar com colegas de turma, com amigos de amigos. Nunca pensas do porquê de serem aquelas pessoas e não outras. Nunca esperas pelo teu próprio sonho - adaptas a tua história Disney-higiénica a quem está ali ao pé, e é tão fácil. Mas lembra-te, todas as noites tomas a tua dose de auto-ilusão. Não há religião mais potente do que esta droga. Até mulheres banais te parecem princesas de desenho animado.

E, agora que acabaste o teu curso, tens que ter namorada fixa. Têm que preparar o futuro juntos. Têm que arranjar casa, e casar. Não necessariamente por esta ordem: tudo depende do teu primeiro salário. Sim, porque agora és responsável, conseguiste finalmente brincar aos adultos. Sentes-te poderoso dentro do teu fato, estrangulado pela tua gravata. Os sapatos queimam-te os pés e são secos como uma tábua, mas lembram-te a figura do teu pai, e de todos os pais do Mundo. Esse é o desígnio que procuras desde que eras um miúdo ranhoso que só queria agradar aos pais. E és tão demente que gostas dessa sensação, ainda que na verdade falhes da mesma forma patética que eles falharam. Tantas vezes esta ideia te assalta, tantas vezes te esmaga esse peso da verdade que te persegue na escuridão que para ti arrastam os teus colegas que vão à procura de vidas diferentes. Os que não seguem o teu rumo. Os coitados, que nunca cresceram. Tantas vezes desejas ser como eles. Mas hei! Para que tens a tua garrafa, senão para esses momentos? Venha mais auto-ilusão para a tua mesa.

Naturalmente casaste, naturalmente a tua esposa está longe de ser o que desejas. Naturalmente têm uma relação disfuncional, naturalmente foi demasiado cedo, ou demasiado tarde, ou demasiado alguma coisa. O mal, vais dizendo a ti mesmo nos teus picos de êxtase de auto-ilusão, é dela, ou de alguma circunstância da vida. Sob o efeito de auto-ilusão, nunca vês que claramente o mal é do casamento em si, é do peso da casa, das taxas de juro no empréstimo, do número de quartos, do escritório que será o quarto do miúdo, da decoração Gato Preto, dos móveis Ikea, da iluminação com focos, das paredes assimétricas pintadas com cores diferentes, dos dias semanais de limpezas, dos planos de refeições para a semana, dos dias e das horas para comer e para beber e para dormir e para falar e para ver TV e para falar ao telefone e para ler jornais e para foder e para receber amigos e para ir a casa de amigos e para visitar os teus pais e para visitar os pais dela e para tudo, tudo o que se possa meter nos interstícios do vosso emprego. Nenhuma destas obrigações é minimamente produtiva, nenhuma te faz crescer, te desenvolve como pessoa. Nenhuma delas te transfigura. Nenhuma delas é mais do que reverência da normalidade. É admirável o que fazes sob o efeito de auto-ilusão. Efeitos permanentes, mesmo perante utilização repetida.

Quer complementes o teu tratamento de auto-ilusão com outras drogas, como amantes, ou puras traições emocionais, mais cedo ou mais tarde algum contraceptivo irá acidentalmente falhar de propósito, e ver-te-ás com um bebé chorão, banal e igual a todos os outros, nos teus braços. E nessa altura vais sentir o que os teus pais sentiram quando te tiveram, e vais tratá-lo como se fosse único. Não porque o seja, uma vez que afinal todos os bebés são iguais. Mas porque estás a beber auto-ilusão como um louco. E a auto-ilusão faz-te achar que aquela coisinha é tua, que podes fazer com ela o que bem desejares, vomitar para cima dela as tuas expectativas e os teus preconceitos, e sujeitá-la à mesma vida a que foste sujeito. O teu filho é o teu apêndice. Portanto ele é único, portanto ele é melhor que os outros. Estás tão viciado em auto-ilusão que cometes a maior das indecências: achas que outra vida te pertence.

Provavelmente por esta altura já começaste a odiar o teu emprego. Já viste que ele é essencialmente inútil, que nada de significativo é gerado, que não estás a fazer nada de bom por ninguém, e que nunca te vais sentir realizado. Começa a ser uma tarefa mecânica, mais papel menos papel, mais impressão menos impressão, mais projecto menos projecto, mais cliente menos cliente. Arrastas-te 8 horas por dia, até teres o teu tempo livre. E aí sim. Aí estás bem. Aí tens a tua família. E que pode haver de errado nisso? Gostas de tudo, até do cheiro da fralda que mudas, do humor da tua mulher que já não vês como vias, da reverência que prestas à tua família, da angústia de te sentires preso, cheio de laços que não podes desfazer, da falta de perspectivas, daquela sensação esquisita de que o teu tempo para decisões já passou. Gostas disso? Ah, claro. É o efeito da auto-ilusão. Não tarda, começas até a dizer que não sentes nada do que eu disse.

Depois, achas que o tempo te está a passar muito rápido. E está. É o que acontece quando sentimos que o nosso bem mais preciso, a juventude, escasseia enquanto a tentamos agarrar pelo pescoço, matar, esfolar e usar como capa para sempre. Vem mais uma casa, mais um carro, mais um filho, mais um cão, mais um gato, mais um Natal e uma árvore de Natal, mais família, menos família. Tudo se resume a uma lista. Tens uma lista de haveres, tens uma lista de pessoas que ficarão a saciar a fome com a parte mais deliciosa do teu cadáver, que são os teus bens, e quando dás conta disso já alguém rasgou a lista que tinhas com os teus sonhos adolescentes, que invariavelmente ficaram pelo caminho porque eram "imaturos". E achas e defendes que isto sim, é a vida, que isto sim, era o teu sonho maior de todos. Porque a auto-ilusão, quando consumida em excesso, torna-se um efeito perene. E pode ter consequências nocivas. Dizia isso na garrafa que nos foi dada antes de nascermos. Mas ninguém lê rótulos, pois não?

Só quanto te aproximas do final da vida deixas de sentir o peso da auto-ilusão. Aí, ela já não te faz falta. Tornas-te amargo, resingão, e estás sempre a dizer que só querias voltar atrás e saber o que sabes. Para quê? Apenas beberias mais auto-ilusão. E passarias a vida ainda mais pedrado. E quando morres, levas o resto da garrafa contigo. Mas não te preocupes. O consumo da auto-ilusão é um hábito socialmente adquirido. O maior legado que deixas é o teres ajudado a perpetuar o ciclo interminável de pessoas que bebem para esquecer a realidade, sendo que essa realidade se tornou o que é porque eles ou outros bebem também. Quando começamos a distorcer a verdade e a privilegiar a mentira, não conseguimos evitar a necessidade de mais mentiras para cobrir as primeiras.

Por isso, dizes que me faz mal beber?

Já o outro dizia que nos podemos embebedar com vinho, com poesia ou com virtude. Bebedeiras de poesia já passaram o seu tempo, e tu e os teus têm o monopólio das bebedeiras com virtude, que é a mesma coisa que auto-ilusão. Eu escolhi o álcool. O álcool ajuda-me a esquecer. Eu, para aguentar o dia-a-dia, preciso de esquecer que existem pessoas como tu. Mas tu, ao beberes da tua auto-ilusão, o que precisas para aguentar o dia-a-dia é de esquecer que precisas de auto-ilusão para aguentares o dia-a-dia. Se tivesses consciência disso, nem que fosse por um instante, tudo te caía. Por isso não me venhas julgar. Sou bêbado, mas auto-ilusão é coisa em que não toco. Deitei a garrafa fora há muito tempo.

...

Pronto, desculpa-me tudo isto. Dá-me um desconto. Claramente estou bêbado.

Desafio IV- Resposta

A tua ausencia dá-me um sorriso demasiado triste. Aqueles dias de sol quentes e cheios de uma qualquer esperança. Uma qualquer nova liberdade. E agora, morremos os dois. E sinto-me menos triste do que esperei sentir-me. O relembrar trémulo da tua doce memória faz-me sorrir. É um sorriso triste mas não é duro ou cru. Deste-me esta morte, tranquila. Esta morte em nome de algo . Belo.
E o cansaço anula-me. Esgotou-me. O meu corpo é quase oco, sinto-me a perder o meu próprio espírito. Porque eles nunca vão perceber, as suas mentes são inexpressivas, os seus rostos são inexpressivos. Ate as suas tímidas atitudes e clandestinas lágrimas são isentas de um verdadeiro propósito. O melhor que me aconteceu foste tu, o melhor que me aconteceu foram aqueles dias em que a vida era algo muito simples e muito bonito, em que a nossa existência cheirava a amoras de Verão e tinha o som do mar.
A minha ausência dá-me um sorriso demasiado triste. O mundo arruinou-me. O convencional esgotou-me. A inexpressao no rosto deles , linhas faciais aparentemente únicas que se repetem em cada um deles, cada traço único repetido em cada um dos rostos inexpressivos. São todos iguais, como é que são todos iguais? Nós éramos diferentes! Morremos por isso.
Foram o melhor que me aconteceu, aqueles dias em que observava-mos o Sol a pôr-se enquanto planeávamos uma nova vida. Fresca e límpida.
Morremos. Não é irónico? Morrer foi o melhor que nos aconteceu. Aquele momento crucial em que escolhemos oficialmente não ser como eles. Não sobrevivemos à sua inexpressão mas o nosso sonho ficou enterrado na praia onde costumávamos ser leves e tranquilos ao som do mar. Alguém um dia encontrá-lo-á e fá-lo-à singrar .
Não sabe tão bem, termos morrido por algo que tenha valido a pena e continuarmos vivos para sentir isso em cada pedaço de pele?

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Desafio IV - Resposta

Ela folheava o álbum de fotografias, um sorriso nostálgico na cara. Voltava a viver aqueles episódios, com todas aquelas pessoas que lhe eram tão especiais.

Revivia os momentos marcantes, hilariantes, tristes ou inesquecíveis. Relembrava o motivo dos risos, das lágrimas felizes ou infelizes, dos olhares cúmplices. E qualquer que fosse essa razão, fazia-a feliz, por ter podido viver aquelas oportunidades.

E então tentava imaginar aqueles episódios sem as outras pessoas. Estaria lá ela nas fotografias ou existiriam sequer elas de todo? Se não fossem aqueles companheiros de viagem, aqueles fortes pilares, aqueles portos de segurança, onde estaria ela? Com certeza que não teria chegado tão longe.

Ao longe da nossa viagem pelos territórios da vida, passamos por muitas fases. E não devemos fazer nenhuma delas sozinhos. Podemos, se quisermos optar pelo caminho mais difícil, talvez até quase impossível. Mas se o percorrermos com os ditos amigos, os penhascos irão parecer mais suaves, as tempestades menos avassaladoras. Todo o mundo irá parecer mais convidativo.

Tudo isto não passa de palavras muito bonitas, pensava ela. Sentimentos muito engraçados, situações muito imaginárias. No entanto, se se visse isso na prática, ir-se-ia revelar verdadeiro. Nós somos parte o que nós construímos e parte o que é construído pelos amigos que escolhemos. Se não fossem eles, não seríamos metade do que somos.


"Life is partly what we make it, and partly what it is made by the friends we choose."

Desafio IV - resposta

Ele é assim. Não sabe quem é.
Às vezes é mendigo. Outras é um senhor de negócios. Outras é um estado intermédio entre todas as coisas e nenhuma.
Costuma vaguear pela cidade. Um dia, parou à minha porta e disse-me:”A vida é só isto”. E eu não compreendi. A vida não era só isto. Isto da minha vida é que era pouco. Eu via sempre o mesmo, diziam-me sempre o mesmo. A única novidade era a forma como o Tejo falava comigo todos os dias. E se até o Rio era mais interessante do que a minha vida, havia de certeza mais. Não era só isto.
Mas ele disse “ A vida é só isto. Todos os países para visitar. Todas as pessoas. Todos os livros. Todas as músicas. Todas as paisagens. Todos os sentimentos. Não há mais nada.”
Não. Eu vivia ali todos os dias. No meu café de sempre. Com as mesmas pessoas. As mesmas frases. Os mesmos futuros.
Às vezes invadia-me um frenesim. Queria ir por aí sem destino experimentar todos os perigos, todas as facas. Deixar este lugar único, que de único só tem o de ser único para mim. Queria saltar de pontes. Andar na montanha russa. Deitar-me no chão do deserto. Ouvir a Lua. Sentir cada veia de sangue a latejar. Ou não senti-las propositadamente.
Não, a vida é inesgotável. E eu perco segundos irreversíveis cada vez que sirvo mais um café.
“ Mas há coisas mais impossíveis do que não morrer. Viver é uma delas.”
Porque é que ele fazia isto? Porque é que ele me sugava este frenesim? Eu acabava sempre por não ir. Acabava sempre por falar com o Tejo ainda mais uma vez. “E seja o que for, era melhor não ter nascido”. Porque ele dizia:
“Tu sabes que a vida é só isto. E ainda por cima, todo este pouco é demais para ti”.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Desafio IV

Tiago para Alice in Wonderland:

(...)
Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,
Consanguinidade com o mistério das coisas, choque
Aos contactos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,
Ou se há outra significação para isto mais cómoda e feliz.

Seja o que for, era melhor não ter nascido,
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs (...)

(in Passagem das Horas - Álvaro de Campos)

Alice in Wonderland para Ricardo:

"- Por que é que bebes? perguntou-lhe o principezinho.
- Para esquecer, respondeu o bêbado
- Esquecer o quê?


- Esquecer que eu tenho vergonha

- Vergonha de quê?
- Vergonha de beber"


Adaptado de "Le petit prince - Antoine Saint Exupéry"

Ricardo para Blue Storm:
"Life is partly what we make it, and partly what it is made by the friends we choose."
Tennesse Williams

Blue Storm para Wings:

"(...)
Their tears are filling up their glasses
No expression, no expression...
Hide my head I want to drown my sorrow
No tomorrow, no tomorrow...
And I find it kind of funny,
I find it kind of sad.
The dreams in which I'm dying
Are the best I've ever had.
(...)"


Mad World, Gary Jules


Wings para Tiago:

" The evil uses very masks, but the most atrocious is the virtue"



Sleepy Hollow

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Desafio III - Resposta

Dissertação

Tema: Emoções humanas

Começo por apresentar a frase que deu origem o trabalho em seguida apresentado:

“Mais longe do que o fim do mundo está o fim do coração”

Dir-me-ão os racionalistas que não há grandes temas a abordar a partir desta frase. Está errada, o coração está aqui bem perto de nós, sinto-o neste momento a bater compassado no meu peito. O fim do mundo, a linha do horizonte, é algo que nunca vamos alcançar, por mais que andemos estará sempre muito, muito longe. Deduzimos então que pouco deve haver que esteja ainda mais longe.

Ah, mas a beleza da língua! A profundidade da simples expressão “fim do coração”. A metáfora que nós humanos damos a um órgão, a responsabilidade que lhe damos sobre os nossos sentimentos, as nossas emoções.

Digo desde já que por mais páginas que acrescente a este trabalho, nunca conseguirei chegar ao verdadeiro significado de todas estas emoções. Ao fundo do coração, por assim dizer. Acho que ninguém consegue.

Podia descrever, analisar, cortar os sentimentos aos pedaços e tentar compreendê-los. Impossível. Eles são algo que sentimos, mas não sabemos explicar. Algo que nos dá arrepios, que nos faz chorar, que nos faz rir. Que nos faz matar, que nos faz viver. Que nos faz correr pela chuva berrando em desespero, ou ficarmos felizes com um simples abraço. Não é algo material, nem imaterial. Existe mas não existe, porque não se pode prender, tocar ou ver. Eles aparecerem, tornam-nos loucos e obrigam-nos a fazer coisas impensáveis.

Agora que penso bem no assunto, onde é que eu vou com estas divagações todas? Já cheguei à conclusão: nunca conseguiremos compreender os sentimentos na sua totalidade. Não dá, é uma regra. Nem sei porque continuo a escrever. Talvez o som da caneta no papel me faça sentir bem. Me encha algum vazio no coração. No entanto, acho que ele já está sobrecarregado com tudo por que o faço passar.

Não vale a pena continuar. Ninguém há-de ler isto, pois vou amachucá-lo e atira-lo para o lixo. Penso apenas que estava a precisar de divagar.

Dou então a tese por concluída, há demasiado a dizer sobre os sentimentos e eu nunca conseguiria fazê-lo bem.


P.S.: Penso que este ainda agora se chama desamparo. É já alguma coisa.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Desafio III - Resposta

"Faithless is he that says farewell when the road darkens."
J. R. R. Tolkien

A neve cercava-os. E enterrava-os até muito acima do tornozelo. A pequena floresta onde estavam, apenas um pequeno aglomerado de árvores que conheciam desde a infância nas traseiras da casa, estava coberta de neve pela primeira vez em muitos anos. Nenhum deles realmente se lembrava de alguma vez a ter visto assim, embora aquele não fosse o motivo que os levava ali. O silêncio, como sempre numa paisagem branca, era avassalador. Era como que uma amostra do fim do mundo, do fim do desenho, quando não há mais história nem mais tinta, e fica apenas o papel branco.
A infância já lá ia há muitos anos, e ambos tinham crescido. Ambos tinham seguido diferentes caminhos, ambos abandonaram a aldeia com diferentes objectivos. O namoro dos tempos de escola passara, assim como muitas paixões depois dessa. Ambos tinham vivido muito desde o namoro da escola. Ambos tinham vivido mais de quinze anos desde então. Por vezes tinham-no vivido juntos. Por vezes às escondidas de tudo e de todos. Nem todos os caminhos foram os melhores. Nem sempre nos cruzamentos da vida tinham tomado os melhores caminhos.

Ela lembrava-se perfeitamente daquela noite, dois anos antes. O telefone tocou enquanto ela trabalhava horas extraordinárias que nunca lhe seriam pagas, à luz de um velho candeeiro, olhos cansados postos no computador. Não reconheceu o número. Atendeu. Do outro lado, uma sombra de homem pedia-lhe ajuda. Não era longe. Não tinha mais ninguém. Vergonha demais para pedir ajuda. Onde estava? Não estava… A sombra em que ele se tinha transformado jazia num velho vão de escada de um velho prédio na zona velha da cidade. E ela não teve como dizer que não. Eram quatro da manhã quando finalmente o recolheu, o aqueceu, e lhe emprestou a sua casa. Nunca o faria se não nutrisse por ele a maior das amizades e o maior dos carinhos. Apenas ela, sabia-o agora, viu na sombra dele o homem que ele fora, e o homem que ele poderia ter sido. Apenas ela sentiu um profundo amor por ele. De novo.

Depois ele ficou melhor. O calor dela aqueceu-o, não só por fora mas também por dentro. Recompôs-se. Voltou para a aldeia, foi recebido pelos pais que o acharam magro, mas bem. Desconheciam tudo o resto. E tudo ficou bem.

Mais que o branco e o silêncio, o frio enregelava-os. Ela trazia a sua roupa de Lisboa, e ele vestia uma coçada roupa de campo. Mas ele já não era de novo o mesmo homem. Ela tinha sabido assim que o vira naquele Inverno. Tinha sentido. Sentido a sombra de novo a apoderar-se dele. Mas desta vez ela não estaria cá para ele. E sim, ela sabia como ele precisava dela. Como ela era o seu pilar, presente ou ausente do seu dia-a-dia.

Tinham ido à floresta conversar naquele dia de rigoroso Inverno. Ela arranjou uma oportunidade de trabalho. “Em Lisboa?”, perguntou ele. “No Japão”, respondeu ela, sem conseguir esconder o quanto lhe custava dar a notícia. Na cara dele viu-se o choque, depois a profunda tristeza e desespero. Depois o silêncio. O longo silêncio. Depois veio a revolta. A impotência.

- “Desleal é aquele que se despede quando o caminho escurece.”

Uma lágrima criou-se e desceu pela cara dela. Grossa, longa. Tão longa quanto a tristeza de de novo o ver assim. Tão longa quanto a desilusão de de novo ver cair sobre ele uma escura e profunda sombra. Mas já tinha decidido. Não iria voltar atrás. Não desta vez.

- “Talvez. Mas não jure caminhar no escuro aquele que não viu cair a noite.”

De novo o silêncio. Antes de voltar para casa, ele olhou de novo em volta. A neve cercava-os.

Desafio III- Resposta

Ela está só. E isso doi-lhe mais do que lhe dói a mediocridade que é. A solidão corrói-a , acrescenta rancor e agressividade a uma existência que , por si só, já era pateticamente dependente. Dependente da ilusão de não estar só.
Mas ele deixou-a só! Era certo que ela o não amava, era certo que ele a fazia sentir pouco. Demasiado pouco. Mas ela so queria não estar só e os homens existem para isso. Para as mulheres não se sentirem sós dentro da sua solidão (ridícula), para as mulheres se sentirem bem consigo próprias.
Mas ele deixou-a só e ela não aguenta a projecção da realidade crua no espelho. Estar só. Ela queria ultrapassar isto, esta dor insuportável de um fim que não existe, queria ser melhor que ele. E então sentiu-se bem, com poder, sentiu que gostava de si própria. O suficiente para se vingar dele.
E então tornou-se numa fonte inesgotável de estupidez, de vingança e de um qualquer conceito de vazio que se apoderou dela. Tornou-se num quadro triste, horrível e pitoresco.
Ela nunca o perdoo por te-la deixado so. Ela não o amava mas era suposto? Ela so desejava companhia e estabilidade. E amor. De um qualquer tipo.
Um dia procurou-o. Encontrou-o com uma outra mulher. Bonita na sua simplicidade, exótica na sua inteligente e perspicaz espiritualidade. E viu-o a ele, ainda mais bonito. Estava completo, ela completava-o, ela não lhe era pouco. Então olhou-o nos olhos e disse-lhe que os homens não passavam de um acidente biológico, de um erro a nível de cromossomas. Eram uma aberração andante, emocionalmente incapazes, eram a doença da humanidade.
E ele limitou-se a olha-la nos olhos e a rir-se. Demasiado e demasiado alto. A rapariga que o acompanhava olhou-a com verdadeira compaixão.E pena. Por isso é que lhe pôs a mão no ombro como se lhe desse uma péssima noticia.
Ela era pouco. Ate para ela própria.


"The male is a biological accident(...). In other words, the male is an incomplete female, a walking abortion, aborted at the gene stage. To be male is to be deficient, emotionally limited; maleness is a deficiency disease ..."
(Valerie Solanas, Scum Manifesto, London, Olympia Press, 1971)

Desafio III - resposta

Depois do quinto cigarro e do terceiro whiskey, comecei a achar que algo estava errado. Comecei a estranhar esta sala, comecei a não reconhecer as palavras fáceis na música do pior pop que ouço. Comecei lentamente a esquecer o que me fez chegar aqui. Já passei por todas as fases. Já juntei a tua roupa num saco e já compilei as nossas fotografias num maço único. Já pus o maço na arrumação das recordações em desuso, onde agora permaneces repousando na companhia de cartas de amigos de infância, de algumas revistas pornográficas, e de alguns carrinhos e outros brinquedos espalhados. Deitei a tua escova de dentes ao lixo, despejei o teu perfume na sanita, e parti o teu corta-unhas num gesto só. Atirei o teu arroz, aquele da única marca de que gostas mas que eu odeio, pela janela. E foi um efeito bonito. Foi como uma celebração do casamento que nunca tivemos. Juntei todas as tuas bebidas num copo só, provei e cospi. Nunca te soube tragar inteira. Tive sempre que te beber aos poucos.

Servi a mim mesmo três whiskeys, acendi o quinto cigarro, e aqui estou, a perguntar-me o que há de estranho e de menos familiar no estuque destas paredes que quiseste tingir, uma de cada cor, e que me vai sendo menos familiar de cada vez que para ele olho. Foi como se me tivesses manchado para sempre. E agora é como se a parte que manchaste, e que foi ficando adormecida, estivesse a tomar conta de mim e eu já nem me conheça. Ou então sou eu quem já esquece, porque o passado já é passado e o que de ti em mim existia começa a abandonar-me. Este sou eu despido de ti. Este sou eu, que já não sabe quem era antes de o cobrires com a tua vida, assim como cobriste a minha casa com as tuas tintas, as tuas bebidas, o teu arroz, o teu corta-unhas, o teu perfume, a tua escova de dentes, as tuas fotografias de nós, a tua roupa, e o teu tabaco de enrolar. O tabaco de que não gostaste, que me pediste para manter cá em casa em caso de necessidade. Como eu. É esse tabaco que agora fumo. Como se fumasse as nossas últimas memórias enquanto marco o teu número de telefone.

“Encontrei aqui o teu velho tabaco de enrolar. Tentei fazer um cigarro e fumei-o mesmo sem filtro. Já não havia.”

“Pára. Pára de fazer isso a ti mesmo! Esse tabaco, já o tinhas aí quando te conheci.”

Quem era eu antes de ti, afinal? Se nos esquecemos dos nossos erros, estamos condenados a repeti-los para sempre. Talvez o tabaco afinal fosse meu, ou talvez fosse daquela que te precedeu, ou talvez da que a precedeu a ela. Talvez a vida seja uma sucessão de máscaras que vamos pondo, umas em cima das outras, para nos convencer que a peça em que entramos efectivamente muda de cena. Para não vermos que a cena é sempre a mesma. Porque se nos lembrássemos sempre, então lembraríamos também a repetição.

Seja como for, nada disto vale a pena. Levantei-me da cadeira, larguei o telefone, os cigarros e o copo. Fui ao quarto tirar o pijama e vestir a minha roupa da rua. Vi-me ao espelho. Estava mesmo a precisar de cortar a barba, de pentear o cabelo. Meti-me no banho. A água que me escorria pela face purificou-me. Apeteceu-me sentir-me novo. Reparei nas minhas unhas enorme e escurecidas por baixo. Fui ao armário, mas não tinha corta-unhas. Suponho que terei de comprar um novo amanhã.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Desafio III - resposta

Ele acompanhou a multidão que seguia o cortejo do caixão, de forma paralela. Sem intercepção.
Caminhou debaixo das árvores do cemitério verde e húmido. A multidão seguia calma, sem entender o cemitério.
Perfeitamente sincronizados pararam perto da cova castanha, também ela húmida e fresca. Ele via agora perfeitamente o caixão mexer-se como se ela tivesse vida outra vez.
Reparou que não havia lápide junto à cova. Ela perderia o seu nome. O nome que ele repetira tantas vezes. Mas ganhara aquela multidão que a transportava. E que se esqueceria dela mais depressa do que o cemitério.
Baixou a cabeça, o vento suave enrolou-lhe os cabelos no pescoço. Tentara matá-la tantas vezes... E ela morrera assim, a dormir na frescura duma Primavera. Ele sabe que a tentara salvar tantas vezes...
Quando levantou a cabeça, a cova estava finalmente fechada. A multidão chorava em perfeito silêncio. Ela desaparecera para sempre.
Mas o coração dele endureceu. A morte dela desencantava-o. E quem desapareceu para sempre foi o amor dele. Saiu do cemitério sem olhar para trás.

Ele não seria assim. Ele morreria vivo.

My lifestyle determines my death style.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Desafio III

Tiago para Ricardo:


"Those who cannot remember the past are condemned to repeat it."
(George Santayana)

Ricardo para Wings:



"The male is a biological accident: the Y (male) gene is an incomplete X (female) gene, that is, it has an incomplete set of chromosomes. In other words, the male is an incomplete female, a walking abortion, aborted at the gene stage. To be male is to be deficient, emotionally limited; maleness is a deficiency disease and males are emotional cripples."
(Valerie Solanas, Scum Manifesto, London, Olympia Press, 1971)





Wings para Alice in Wonderland:

"My life style determines my death style"


(Metallica)





Alice in Wonderland para Blue Storm:


"Mais longe do que o fim do mundo está o fim do coração"



(Provérbio dinamarquês)





Blue Storm para Tiago:

"Faithless is he that says farewell when the road darkens."

J. R. R. Tolkien


Desafio II - Resposta

"The things you own end up owning you."
(Chuck Palahniuk, Fight Club)

Ele só voltou a sentir-se realmente sozinho muito depois de ter deixado Lisboa. Com a azáfama do aeroporto, e do avião, e de novo do aeroporto, só voltou a sentir-se sozinho quando saiu pela porta do aeroporto e inspirou pela primeira vez o frio de França. Estavam exactamente menos dez graus que em Lisboa, e a roupa de meia estação que trazia protegiam-no apenas o mínimo razoável para o frio que agora sentia. Olhou em volta. Conhecia tudo aquilo muito bem, tudo bem demais.

Esperou pelo primeiro táxi. Ele não era um turista qualquer. Não, ele nem sequer era um turista. “Saint Nicolas, côté Pont Neuf”. A determinação nas palavras e na voz deixavam para trás qualquer dúvida. E foi aí, foi ao falar pela primeira vez na “sua” França, que em vez de frio sentiu calor. Sentiu o mesmo calor que sentia de cada vez que voltava a Lisboa. “Melhor que ir, só mesmo voltar”, ouvira uma vez, e com que razão. Sentiu-se em casa. E assim que este pensamento se materializou na sua cabeça, sentiu um arrepio. Sentiu-se em casa. Casa.

Viu pela enésima vez passar a auto-estrada periférica, depois entrar na cidade, as ruas e ruelas. Em tempos sentiu-se um turista naquela cidade. Muito mais que um estudante. Sentiu-se perdido, depois campónio numa azáfama desconhecida de uma cidade que não era sua. E que foi descobrindo aos poucos. O castanho. As vielas. As pequenas lojas, as pessoas, a voz. A língua. Que aos poucos e poucos tomou como sua. Era a sua cidade, era a cidade onde agora passava os dias, com quem partilhava alegrias e tristezas. E foi a sua cidade até ao dia em que se foi embora, e de novo voltou a Lisboa. E o voltar soube-lhe bem.

O táxi parou sem que ele desse por isso. Tinha chegado. A casa era mesmo ali. Pagou e saiu. Sentiu-se de novo sozinho, e de novo inspirou. Sentiu o frio que lhe entrava pelo corpo. Sentiu o calor de estar em casa. Pensou apenas escassos segundos no que tinha feito. No que estava a fazer. Depois tocou à campainha, e ouviu-a ressoar lá dentro. Abriram. Entrou pelo pátio interior, direito à casa. Ouviu a porta da rua fechar-se atrás de si. Sentiu outro arrepio. Mais do que a sua cidade, ele fazia agora parte da cidade.

Quando finalmente a viu, ambos sorriram. Mesmo que fosse por pouco tempo, agora ele era dali. E o voltar soube-lhe tão bem.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Desafio II - resposta

Então eu comecei logo por lhe dizer "sabe, senhor doutor, se é que você é médico mesmo... eu não acredito em nada disto". E ele respondeu-me "então estás curado", vê lá se isto se entende. Eu repeti que não acreditava nesta coisa da anti-psicologia, que tinha sido um amigo nosso a dar-me o contacto. Ele perguntou-me "e porque te deu esse teu amigo o meu contacto?", e sempre assim, a tratar-me por tu, como se me conhecesse há anos ou como se não me respeitasse. Mesmo assim, eu lá lhe contei, já que ali estava.

"Porque ele acha que se calhar eu senti que a minha vida estava demasiado orientada. A empresa onde trabalho propôs-me ficar como sócio. Isso implica um ordenado maior. Mas eu tenho 26 anos. A minha mulher está grávida de 6 meses. Casei-me aos 24 anos. E no momento em que me propuseram ser sócio, senti um peso enorme. Saí a correr da sala e fui vomitar. Passei três dias de cama sem vontade de voltar ao meu emprego. Comecei a pensar que se passava alguma coisa de mal comigo. Então comentei com um amigo meu que já cá veio que talvez precisasse de ir a um psicólogo. Mas ele disse-me que com os meus sintomas, do que precisava mesmo era de um anti-psicólogo. Eu nem sei o que é isso, se quer que lhe diga. O senhor é doutor?"

Depois ele perguntou-me se nunca tinha ouvido falar da anti-psicologia. Eu disse que não. E pronto, ele lá começou a falar e eu praticamente já não disse mais nada. Disse-me que numa consulta normal seria eu a falar. Naquela, eu estava ali para ouvir. Que numa consulta normal eu iria chegar às minhas próprias conclusões, e assim conhecer-me melhor. Mas eu estava ali para ser destruído. Ele iria destruir tudo o que tenho por adquirido de uma vez só, para que eu me pudesse depois reconstruir a partir do nada. Eu disse-lhe apenas que...

"... o senhor doutor não entendeu! Eu não me sinto infeliz. Sim, é verdade que senti um peso naquela sala, mas eu gosto muito da minha vida. Eu sinceramente não poderia ser mais feliz."

E isso enfureceu-o. Levantou-se da cadeira e já gritava que eu sei lá o que posso, que "a felicidade é o caminho dos inconscientes", que "felicidade nenhuma leva ninguém a superar-se" e que a única felicidade que me esperava se me entregasse ao emprego do vómito seria "tornar a minha vida em vomitado".

"Mas não é esse o objectivo das nossas vidas, ser feliz?"

Parece-me óbvio que sim. E se eu sou feliz, mesmo com um ou outro momento mau ou de indecisão, para quê pôr isso em causa? Ele respondeu-me com qualquer coisa estranha sobre pedaços de carvão. Acho que queria dizer que só conhecendo as alternativas podemos avaliar o caminho que escolhemos, que entregarmo-nos muito facilmente e sem qualquer reflexão à primeira felicidade que nos aparece no caminho só gera angústia. Que a felicidade é um objectivo de longo prazo que só se mede no final da vida, e que não conseguimos nunca avaliar com clareza no presente. E acho que ele queria também dizer que só perguntando à realidade o que acontece quando arriscamos é que verdadeiramente podemos saber quão felizes os novos caminhos serão. E por isso, nunca devo ter medo de correr riscos. Nunca devo tornar sagradas as coisas que me fazem felizes. Elas podem estar apenas a esconder uma realização muito maior. Porque nunca se está tão bem quanto se poderia estar.

"Mas tu és feliz comigo, não és?"

"Claro que sou. Sou feliz por ter casado contigo. Sou feliz no meu emprego. Simplesmente sou. E nem penso demasiado nisso. Simplesmente sinto-o."

"Ainda bem."

"Mas olha, vou lá mais uma vez ver como corre. Ah, já me lembrei do que ele disse sobre carvão. Era qualquer coisa como que é possível que um pedaço de carvão no forno não se queime. Ele depois repetiu antes de eu vir embora. Mas nessa altura, mesmo antes de eu fechar a porta, acrescentou qualquer coisa. Disse "mas andar a meter carvão num fogo que não acende é simplesmente estúpido".

"Vou fazer o jantar, já são horas."

Desafio II - Resposta

"Medo"

Gosto de estudar o Medo, de ver as reacções das pessoas às mais diversas situações. Há quem me chame louco, há quem me chame demónio. Eu chamo-me estudioso, pois tal como toda a gente tenho direito de investigar o que me interessa.

Fecho as pessoas em salas escuras e vejo-as perder o norte e o sul, estender os braços á procura de apoio que está lá, mas que o medo destrói, dando a ideia de um lugar sem paredes, nem tecto, nem chão. Vejo-as agacharem-se e enrolarem-se em si, para se protegerem de algo que na realidade não existe: os seus demónios interiores. Talvez isso lhes dê confiança, essa que de alguma maneira as trevas levaram. Não compreendo.

Vejo um certo indivíduo a atravessar uma multidão. O modo como olha em redor, os seus olhos brilhando de pressa e urgência, o animal que foge do caçador. Vejo como a respiração se apressa, como treme, como corre para fugir daquele aperto, de todas as vozes que o perseguem e enlouquecem. Não compreendo.

Observo como estremecem ao ouvir trovões. Como se afastam dos parapeitos de grandes altitudes. Como fogem de pequenos animais que lhes zumbem aos ouvidos. Como fecham os olhos e se agarram aos bancos quando o avião se levanta. Não compreendo, não consigo compreender.

No entanto, há algo que percebo de todos estes estudos. Os humanos têm medo de tudo, quer seja grande, pequeno, material ou imaterial. Têm medo da morte, do fim, do desconhecido, e até arrisco dizer que têm medo da vida. Tentam ignorá-lo e ele apenas cresce, limitando-lhes o horizonte. Passam a vida limitados pelo medo.

A Humanidade vive com medo de si própria. Mas parece não se importar, e continua assim. Acho que nunca poderei compreender.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Desafio II - resposta

"I accept chaos, I'm not sure whether it accepts me"

Ele disse: “Existimos para transformar o caos em ordem, percebes?”
Ela não percebia.
Talvez tivessem os conceitos trocados. Talvez a ordem fosse o caos dele.
“Queremos facilitar a vida das pessoas, percebes?”
Ela não percebia. Olhava as barreiras estruturadas. As fronteiras delgadas. Um arco-íris que morria entre as suas sete cores.
Talvez o caos dela fosse a ordem dele. Talvez tivessem os conceitos trocados. Talvez o caos fosse esse.
“Precisamos conhecer o fim para construir o início”
Mas ela não percebia. Construía o fim sendo o início. E o início era o meio. Ou o Nada.
Talvez não fossem os conceitos. Talvez fosse ela quem estivesse trocada.
“Eu sei que consegues fazer isto. É apenas colocar o caos em ordem”
Mas ela não conseguia.
Aquela ordem não a entendia.
Aquele caos não estava preparado para ela.

Desafio II- resposta

Penteou o cabelo ruivo vivo. Não era culpa nem sequer era arrependimento. Não era uma lenta e triste teimosia perfumada com uma legítima crença. Não. Então de onde vinha o aperto no coração, a lágrima que a mente não encontrava maneira de libertar?
Porque o amor é a forma máxima de Narcisismo. E ele sabe-o, Narciso era suavemente ingénuo – não se conhecia. Mas ele penteava seguramente o cabelo ruivo, dominava-se, dominou-se ate ao fim. De mais. Porque ela amou-o coerente e ingenuamente: ele era a libertação dela, a emoção primitiva extasiante do conforto e da insegurança. A perfeição inexistente na razão pela qual os contos de fada não são inócuos. E educam as crianças.
Mas ele não era assim. Penteou o cabelo ruivo, a claustrofobia de ter sido amor.E ele lamentar. Duramente , estridentemente. Não o reconheceu logo, deixou-se comover e perder-se se na esperança inócua de ter a ingénua e adorável ignorância dela.( Antes que seja demasiado tarde.)
Porque o amor é a forma máxima de Narcisismo. E ele sabe-o, porque quando a olhava nos olhos via a pessoa melhor que podia ser, via a compactação do tradicional conceito de bem. Ela era o reflexo da sua própria beleza.
Aprisionou a tristeza , o aperto claustrofóbico que tornava o coração pesado e velho. Dominou-se de mais porque não se conhecia. Mas ela sempre o reconheceu muito bem, sempre o amou . Ela sempre teve razão. Via o reflexo da sua própria beleza quando olhava para o cabelo vermelho-sangue dele, daí o êxtase.
Mas já era demasiado tarde para ele. Viu-a a chorar.
Foi assim que soube que tinha morrido.


"Choro por Narciso, porque todas as vezes que ele se debruçava sobre as minhas margens eu podia ver, no fundo dos seus olhos, a minha própria beleza reflectida "