segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Desafio XXXV - Resposta

A Hidra de Lerna dia apareceu-lhe em sonhos. A primeira vez era ainda criança e o Monstro horrível assustou-a tanto que deixou de conseguir adormecer na escuridão do seu quarto ondulante.

Habituou-se a distrair a mente com um livro antes de as pálpebras se fecharem. E dormia com uma mão pousada na transparência da almofada, filtrada pela luz ténue e discreta dum candeeiro bordado que fabricava sombras pelo tecto. Quer fizesse calor, quer fizesse frio, dormia sempre tapada, como para se proteger do monstro sôfrego que a perseguia e era capaz de derrotar o Reino de Luz frágil que ela tecera como origamis.

E como o Monstro era horrendo. Quando já era mais velha, descobriu-lhe uma imagem num velho livro que tinha lá por casa. Tinha a mesma boca sedenta de dentes mal afiados, dois olhos redondos e fixos com uma íris negra demasiado pequena. Um corpo fino e bem delineado cheio de escamas azuis claras e escuras que brilhavam no papel impresso, tal como no seu sonho. Um corpo feroz de silêncio que a perseguia sem piedade desde o começo dos tempos. E tal como no livro, em todos os seus sonhos o monstro tinha aquela peculiaridade que tanto a perturbava: três cabeças imponentes brotavam dos seus três pescoços estreitos e independentes. Três cabeças que a fitavam impiedosamente de todos os cantos do quarto, quando a persiana fazia balançar as sombras no tecto e o Monstro saia do armário. Três cabeças que a ameaçavam e nunca desprendiam os olhos magnéticos do seu corpo, como que a exigindo.

O êxtase daquele medo evoluiu até à noite, em que já não sendo mais criança, decidiu deixar o Monstro sair do armário e enfrentá-lo. Nessa noite dourada de sombras percebeu a razão do medo enraizado nas veias geladas do seu coração; pois Monstro era invencível: quando lhe cortou a primeira cabeça nasceram três pescoços hirtos no lugar do coto. Não tinha por onde fugir nem como matar o monstro.

E este êxtase irreversível e horroroso atravessou-a de tal forma que o medo tomou posse dela, entrou-lhe no corpo e misturou-se com as suas entranhas.

E um dia quando deu conta já não precisava de candeeiros para conseguir dormir. Era no escuro que as rendas da imaginação lhe decoravam o quarto. Era no medo fermentado que encontrava uma armadura resistente ao choque de se encontrar com a sua morte de vez em quando.

E sempre que lhe cortavam um sonho, nasciam três.

1 comentário:

  1. Precisamente. E é essa mesmo a arte de bem sonhar. Cada vez que um sonho é cortado ele não deve desaparecer, deve fragmentar-se, deve tornar-se em múltiplos outros sonhos pequenos. Mesmo que esses sonhos sejam monstruosidades para outras crianças. Gostei. :)

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