terça-feira, 28 de setembro de 2010

Desafio XXXVIII - Resposta

A vida é escorregadia. Se pisamos num chão incerto, enregelado pela frieza das lágrimas e da solidão, deslizamos sem fim. O gelo resfria-nos os ossos e enrija-nos a ternura.

Estávamos ambos resignados em deslizes sucessivos quando os nossos corpos chocaram e se colaram. O fogo que ateámos foi tanto que, brincando, até a nós queimou. Olhámos em volta, e não havia mais nada senão a nossa luz a iluminar o Mundo, de repente mais colorido. A calçada portuguesa por onde dançámos ficou chão em brasas, e cada memória era uma pedra incandescente.

A vida tinha tons de rosa.

O problema é que neste Mundo nenhum movimento é perpétuo, nenhuma luz se conserva, nenhuma energia se auto-alimenta, nenhum perfume se concentra. Não poderia durar.

Muitos anos passaram. O anjo da morte do amor, tão negro e opressivamente omnipresente como aquele que rouba o sopro aos vivos, corria atrás de nós. Ele veio pelos nossos suspiros. Era urgente correr. Se ficássemos parados ele apanhava-nos, deixava-nos cicatrizes, cortes nos braços feitos de queimaduras de cigarro.

Por isso, peguei-te na mão e apressei-me para o aeroporto.

Levámos na bagagem o nosso amor de bem-querer e a nossa saudade deslocalizada. Sentados no avião, parecíamos caminhar pelo ar, desejosos do futuro e sedentos por sonhos.

E estivemos tão perto de o conseguir. Se pelo menos não tivéssemos desenhado a imprevisibiliade a régua e esquadro, talvez tivéssemos ido a Paris mudar de pele. Mas não. Fomos sempre nós. O monstro dormia cá dentro.

Nós sabíamos ao mais pequeno detalhe de que forma Paris nos surpreenderia. Fomos em busca de acordeões nas janelas e cheio a croissants entre as árvores. Mas quando saímos em Orly o chão queimou-nos os pés. Afinal, a música ainda soava a elevador e o ar ainda tresandava a esturricado. O teu peito colapsou perante tamanha expectativa. A realidade era um pequeno comprimido que trouxéramos de Lisboa na mala e nos obrigavam agora a tomar à chegada. A realidade começou logo a fazer efeito.

Cozinhámos os dias em lume brando. Convertemos os acordeões em música de bar, e aceitámos pão com chocolate no lugar de croissants. Caminhámos de mãos dadas por ruas estranhas repletas de nostalgia. Visitávamos todos os museus dos nossos primeiros dias, quando semeámos a semente de Paris nos nossos desejos. Neles estão expostas as nossas obras-primas, recolhendo pó. Porque em tempos fomos grandes artistas, pintando nos corpos um do outro traços auspiciosos. Os nossos sonhos e os nossos instantes de perfeição estavam tão cristalizados na nossa História, que naquela altura pensei que talvez tivéssemos sido os primeiros a pisar o Sol. Um pequeno passo para um homem como eu, um passo gigante para uma mulher como tu.

Mas a memória é velha, e pouco se mexe. Nessa altura, até a palavra amor começou a cansar. Esse foi o momento em que nos amparámos na lealdade para não cair no esquecimento. Paris tinha que se esgotar antes de nós.

Paris.

O lugar onde guardámos a inocência de julgar que algum dia faríamos daqueles primeiros momentos de Arte o nosso pleno quotidiano. Agora, finalmente lá, manchávamos o sonho com lágrimas. Já nenhum de nós sabia sequer porque chorava. Parece ridículo lavar-se assim medos e mágoas quando devíamos estar a espremer a vida, exigindo-lhe mais algumas gotas de gosto de viver. Como um perfume requintado obriga a torturar nas flores tanta beleza, assim também nos vemos obrigados a triturar pessoas e cidades em troca de uma simples amostra do rosa da vida. E também como qualquer fragrância, também em pouco tempo se dissipa a felicidade aguda. E depois estamos de volta ao nosso inferno gelado. E depois acordamos num quarto de hotel e com um anjo negro dormindo enroscado ao fundo da cama.

Na última noite, torcemos o ar de Paris, sôfregos por algumas gotas de esperança. Caminhando, unimos pontos do mapa da cidade como uma criança desenhando bairros e colorindo telhados laranja, desdobrámos os interesses e gostos de ocasião, levantámos e sentámos em bancos e passeios públicos. Cada novo sítio, cada nova face, era uma última oportunidade de bater a uma porta e perguntar onde está o amor que nos tocou à campainha e fugiu.

Demos por nós numa pequena loja de recordações em Montmartre. Perfilavam-se pequenos pedaços de lixo com um preço agarrado. Submergi no seu colorido disforme e perdi-te o rasto.

Por um instante, esqueci-me efectivamente que também te encontravas no Mundo. E, como uma corda, lançaste-me uma melodia que me içou de volta até ti. Com os teus dedos pequenos, mexias uma alavanca curta que, com a mesma cadência, fazia soltar-se notas soltas de uma pequena caixa metálica. E foi como se tivesses movido alguma alavanca curta no meu coração. Fizeste com que belas notas se soltassem dele também. Podia escutar, ao longe mas cá dentro, em alguma janela aberta da memória, Edith Piaf a cantar que, pelo amor, a vida se transforma numa flor. Nos teus braços a vida é rosa, uma rosa, ou cor-de-rosa.

Afastei-me, quis ver-te ao longe sem que te desses conta. E tu, olhando atenta para a caixa, com um certo fascínio inocente, repetias o gesto ininterruptamente. Quase te incentivava a fazê-lo, a que mantivesses suspenso aquele instante de beleza extrema. “Finalmente encontrámos Paris”, apetecia-me dizer-te. Eu era a tua serpente. Encantavas-me deliciosamente. Nunca te amei tanto como naquele momento.

Chorei nesse momento. Fez-me confusão como algo tão simples podia criar um canal de comunicação entre duas pessoas. É o poder da música. Éramos os dois bonitos, grandiosos, poéticos, dentro daquela loja feia, pequena, prosaica, que estava numa cidade bonita, grandiosa, poética, que está num Mundo feio, pequeno, prosaico.

O Mundo. O sítio onde nada dura. Uma imensidão de desilusão.

Naturalmente, paraste. O silêncio cortou a magia, e quando te moveste para pousar a caixinha de música eu vi-o atrás de ti. O anjo da morte do nosso amor não desistia de nós.

Abracei-te com força quando saímos da loja.
Não para te fazer sentir a força com que o teu cheiro aperta o meu coração, mas antes para me despedir. Assim como te despediste de mim tão poucas semanas depois de, caminhando pelo ar num banco de avião, termos regressado à calçada portuguesa, então amorfa e morna.

Um ano passou. Fui capaz de regressar a Paris sozinho. Fui capaz de regressar à mesma loja de recordações. Fui capaz de pegar na mesma caixa de música, com a mesma melodia. Não a comprei. Mesmo sendo barata, senti que devia roubá-la. Fui capaz de a colocar no bolso. Fui capaz de a trazer. Fui capaz de te oferecer. Fui capaz de te surpreender. Não contavas que eu tivesse partilhado aquele momento de perfeição contigo. Nunca me viste lá nesses momentos, porque eu vivi-os contigo na sombra.

E assim para a sombra me retirei, e não mais te vi. Tornaste-me incapaz de chorar e fizeste muito difícil rir. Gastei todas as lágrimas contigo, assim como gastei as poucas gotas de felicidade que resgatei. Mas ainda não gastei o perfume de rosa que o teu amor me deixou. Ele é tão abundante que eu penso que me chegará para a minha vida toda. E tenho a Edith a cantar para mim de novo, uma vez mais, sempre uma última vez, que um dia, nos teus braços, a vida foi cor de rosa.

Sem comentários:

Enviar um comentário