Algum desgosto prova muito amor mas muito desgosto revela demasiada falta de espírito
Lembro-me perfeitamente do dia em que ouvi contar a história dela. Era um dia de Primavera, apetecível como algodão doce. Sentei-me no banco do jardim a observar aquele pequeno Mundo tão feio ao lado da minha esperança de que em algum lugar ele fosse bonito.
E conheci-a há muito tempo. Era uma velhota simples, com um andar arrastado, umas gargalhadas bem-dispostas de mais para quem é velho antes do tempo. E quando ela passou, naquele dia, voltei a fixar-me nela, talvez porque ela fosse um Mundo feio que já albergou em tempos uma esperança de beleza.
E talvez porque fixei de mais os meus olhos no traço de caminho que ela fazia ao atravessar a rua suja, surgiu uma voz no fundo da minha cabeça, que recordei mais tarde. “Sabe, ela nunca se recompôs, foi um choque para todos nós, mas ela, ela nunca se recompôs verdadeiramente. Sabe que ela é muito mais nova do que parece?” Rodei alguns graus, e subitamente uma cabeça tapou o meu sol de Primavera. “Conhece-a?”, perguntei. “Toda a gente a conhece aqui”, disse a voz impaciente, destapando o sol e sentando-se ao meu lado no banco. “Sabe aquelas histórias de filmes, que parecem impossíveis? Não são. Aquela senhora que viu passar foi abandonada pelo noivo no dia do casamento, quando tinha dezoito anos. Foi aqui mesmo, na igreja lá de cima” e olhou para mim. Mas eu fitava o rasto do caminho que ela tinha deixado, um rasto triste e sujo como o sítio. E a verdade desceu sobre mim, porque a realidade era essa e é isso que os filmes não contam: as histórias tristes acontecem em sítios feios e sujos e cheiram mal.
O meu coração contraiu-se pela vida desgastada e desperdiçada que atravessara aquela rua. E antes de arquivar este caso na minha cabeça, perguntei-lhe “Ela nunca se voltou a casar? Nunca se voltou a apaixonar? Nunca?” E a voz encolheu os ombros e de novo, respondeu aquilo que já tinha dito, que ela nunca se recompôs. Que o noivo a deixou, à porta da igreja.
E foi assim que me esqueci dela. Ironicamente, não demorou muito até que eu encontrasse a beleza pela qual tantas vezes suspirara. O amor e as vertigens vieram nas asas do vento, sopravam do estrangeiro e bateram na minha janela com estrondo. Agarrei na mochila que já tinha feito anos antes e saltei pronta para recolher a essência destilada da flor mais perfeita. E o Mundo revelou-se perfeito, com todas as pétalas abertas, vigorosas, coloridas. O Mundo era sonoro e vibrante, longe daquele lugar sujo e decrépito onde se morria em bancos ou à procura de uma brisa que sabia a algodão doce.
E fugi. Fugi com o meu amor para um lugar onde a electricidade se bebia ao pequeno-almoço. E onde à noite, trincávamos a Lua, trocando de lugares no grande labirinto de espelhos. Dávamos as mãos e separávamo-nos em seguida, respirando intensamente para imagens desfocadas, vários “nós” difusos que por ali vagueavam. E fizemos amor ali, deixando de saber quem éramos. Foi quando nos perdemos que encontramos a essência única e irrepetível. O sabor primeiro, doce e amargo de tão efémero. E nesse momento, sentimo-nos na ponta do Mundo. Como se tivéssemos nos nossos corpos a chave para aquele sítio misterioso do Mundo que só existe por segundos breves, uma vez na vida.
E por isso, quando um dia a porta do labirinto se fechou e não mais senti electricidade no meu corpo, que voltei para trás, coberta de uma vergonha pegajosa. A minha mochila pesava-me como pedras e sentia a boca seca, como se tivesse atravessado um deserto cheio de miragens. Olhei para a minha janela, e fechei as portadas. Deixei a escuridão entrar no meu quarto e deitei-me na cama.
Nos meses seguintes, por várias vezes sonhei com aquele labirinto. Mas quando acordava, os móveis toscos e uma realidade com cheiro a mofo envolviam-me. Sentia os olhos molhados e voltava a deitar-me, agarrava-me com força à almofada e esperava que o sonho chegasse de novo. Ainda que não fosse verdade, era melhor do que a verdade.
E só os sonhos, só uma realidade que já não existia, me fez correr sangue nas veias. De resto, perdi a capacidade de ter esperança e com isso, o mundo feio onde vivi relevou-se em toda a sua tímida e crua realidade, onde o algodão doce é demasiado doce para não ser enjoativo. E quando me obrigavam a levantar da cama, levantava-se um nevoeiro em mim. Porque tudo aquilo era demasiado pouco, demasiado repetível, para quem já tinha tido no corpo a primeira chave. A única, a irrepetível. A que se perdera e para qual não haveria volta. Porque quando me obrigavam a levantar da cama, eu sabia em todos os meus poros o que era a morte.
E um dia desistiram de mim. Deixaram-me, como se deixa um corpo em coma, ligado á máquina. Com o passar do tempo, fui comendo e bebendo para não deixar a minha carcaça apodrecer. Com o tempo, fui-me levantando e habituando àquele nevoeiro constante e à morte que vinha com ele.
E assim, um dia fui capaz de me arrastar da cama até ao banco do jardim. Deixei um rasto triste e sujo atrás de mim. Quando me sentei, ela voltou a passar à minha frente, no passo arrastado que eu agora tão bem conhecia. Agora também eu era uma história de filme, horrorosa e decrépita, feia e triste. Agora também eu definhava sem qualquer propósito, engolida por uma tristeza solitária que desaparecia da minha lápide mal chegasse a primeira chuva. Porque ela era eu.
Só nunca contei que me amasse tanto a mim mesma. Por isso, quando ela desapareceu eu resolvi fazer a minha história, realizar o meu filme, fabricar uma nova chave, decidir quantas vezes é que se atinge o inatingível do Mundo. Decidi mudar as regras, já que não conseguia cumprir as que existiam. E por isso, esvaziei as pedras da mochila e saltei da janela. Desta vez, sem ilusão nenhuma, levava comigo a determinação de fabricar o mundo à minha maneira. E nenhum amor conhece esse poder.
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