Nas suas cartas de amor, ele era desmedidamente apaixonado. Apaixonado até ao extremo, até à mentira, como só pode ser mentiroso quem exacerba o sentimento ornamentando-o com palavras dóceis e frases requintadas e longas, mas fundamentalmente vazias. Nos seus desenhos de mulheres, ele era irrepreensivelmente cuidadoso. Cuidadoso até ao extremo, até ao irrealismo, como só pode ser irrealista quem ornamenta o traço com detalhes desprovidos de qualquer simétrico na realidade. E nos seus planos, ele era simplesmente mau. Mau até ao extremo do gratuito, como só pode ser gratuito ornamentar acções malévolas com um requintado sorriso perante o sofrimento desnecessário.
Ele era tudo isto num só. Usava cartas de amor para conquistar mulheres. Mulheres que desenhava. Desenhos que enviava aos maridos traídos. Na mesma carta, assinada com nome próprio, colocava uma foto sua a sorrir.
E todos os dias eu via-o. Saíamos os dois ao mesmo tempo de casa, entrávamos os dois ao mesmo tempo no metro e depois no autocarro. Reparávamos os dois nas mesmas mulheres. E desde um primeiro olhar trocado cúmplice eu entendi-lhe o jogo. Entendia muito bem quando o via a sacar do seu bloco de notas, a escrevinhar em letra impecavelmente arcaica e a esboçar em figuras geométricas irregulares os contornos do corpo de alguma vítima de aliança no dedo. Eu entendia tudo muito bem, sobretudo quando via a mesma aliança reluzir pela calada da noite, dias depois, em passo apressado escapando-se de casa dele.
“A aliança é o maior afrodisíaco”, foi a primeira frase que trocámos, apesar de ele a ter colocado numa forma bem mais vulgar. “Olha para qualquer mulher à tua volta. O anel transforma qualquer camafeu num drama potencial. E que te excita mais do que um bom drama?” Ele tinha a sua razão. “A culpa torna qualquer dona de casa num leão na cama. Acredita.” Ele não tinha que me convencer. Ele estava a pregar a um crente.
E por isso recebi as notícias com a maior tranquilidade e nem resquícios de surpresa. Com o tempo, passámos de vizinhos a companhias habituais, depois a amigos, depois a profundos confidentes. Ele mostrava-me as cartas e os desenhos, as fotos e os envelopes. Ele mostrava-me as reacções dos maridos. No final, era essa a sua grande conquista, a sua grande satisfação. Quando um marido lhe respondia com uma ameaça explícita de morte. Ele via isso como a grande validação do impacto que tinha na vida dos outros. Só que, um dia, a morte teria inevitavelmente que deixar de o ameaçar e vir mesmo enrolar-se-lhe como uma aliança num dedo.
“Sabes, eu não faço isto pelas mulheres”, foi o início da última conversa que tivémos, apesar de ele na altura não o saber. “Eu já tentei, mas não consigo sentir mulher nenhuma. E por isso a minha cruz é essa, andar a penar de mulher em mulher. Até um dia.” Eu só não entendia porquê mulheres casadas. “Ora, o ciúme torna qualquer homem num assassino.”
E agora, depois do funeral, consegui pela primeira vez entender que nada disto tinha a ver com as mulheres que ele conquistava como um general que acrescenta países às suas conquistas. As cartas, os desenhos, a maldade, eram a sua bandeira branca para a morte. Porque a morte é a única noiva de quem não consegue namorar a vida. E para ele, ser deposto no túmulo foi como um casamento.
Ele era tudo isto num só. Usava cartas de amor para conquistar mulheres. Mulheres que desenhava. Desenhos que enviava aos maridos traídos. Na mesma carta, assinada com nome próprio, colocava uma foto sua a sorrir.
E todos os dias eu via-o. Saíamos os dois ao mesmo tempo de casa, entrávamos os dois ao mesmo tempo no metro e depois no autocarro. Reparávamos os dois nas mesmas mulheres. E desde um primeiro olhar trocado cúmplice eu entendi-lhe o jogo. Entendia muito bem quando o via a sacar do seu bloco de notas, a escrevinhar em letra impecavelmente arcaica e a esboçar em figuras geométricas irregulares os contornos do corpo de alguma vítima de aliança no dedo. Eu entendia tudo muito bem, sobretudo quando via a mesma aliança reluzir pela calada da noite, dias depois, em passo apressado escapando-se de casa dele.
“A aliança é o maior afrodisíaco”, foi a primeira frase que trocámos, apesar de ele a ter colocado numa forma bem mais vulgar. “Olha para qualquer mulher à tua volta. O anel transforma qualquer camafeu num drama potencial. E que te excita mais do que um bom drama?” Ele tinha a sua razão. “A culpa torna qualquer dona de casa num leão na cama. Acredita.” Ele não tinha que me convencer. Ele estava a pregar a um crente.
E por isso recebi as notícias com a maior tranquilidade e nem resquícios de surpresa. Com o tempo, passámos de vizinhos a companhias habituais, depois a amigos, depois a profundos confidentes. Ele mostrava-me as cartas e os desenhos, as fotos e os envelopes. Ele mostrava-me as reacções dos maridos. No final, era essa a sua grande conquista, a sua grande satisfação. Quando um marido lhe respondia com uma ameaça explícita de morte. Ele via isso como a grande validação do impacto que tinha na vida dos outros. Só que, um dia, a morte teria inevitavelmente que deixar de o ameaçar e vir mesmo enrolar-se-lhe como uma aliança num dedo.
“Sabes, eu não faço isto pelas mulheres”, foi o início da última conversa que tivémos, apesar de ele na altura não o saber. “Eu já tentei, mas não consigo sentir mulher nenhuma. E por isso a minha cruz é essa, andar a penar de mulher em mulher. Até um dia.” Eu só não entendia porquê mulheres casadas. “Ora, o ciúme torna qualquer homem num assassino.”
E agora, depois do funeral, consegui pela primeira vez entender que nada disto tinha a ver com as mulheres que ele conquistava como um general que acrescenta países às suas conquistas. As cartas, os desenhos, a maldade, eram a sua bandeira branca para a morte. Porque a morte é a única noiva de quem não consegue namorar a vida. E para ele, ser deposto no túmulo foi como um casamento.
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