terça-feira, 14 de setembro de 2010

Desafio XXXVI - Resposta

And I want my anger to be healthy
And I want my anger just for me,
And I want my anger not to control me,
And I want my anger to be me
And I need to set my anger free
Saint Anger 'round my neck
He never gets respect



Nunca respeitaram a minha raiva. Porque a minha raiva existia, era uma pessoa, com o seu fato. A minha raiva acompanhava-me sempre, mas nunca a respeitaram. Como se ela não limpasse os pés quando entravamos em casas alheias e sujasse os delicados tapetes. Então ficava à porta, à minha espera.

“É só um momento”, diziam-me. “Não é muito apropriado”, diziam-me.



Passei todo o tempo de escola a escrever. Sempre gostei de observar as pessoas e os seus códigos morais. E as histórias nasciam-me como flores na primavera, num ciclo demasiado natural para eu conseguir evitar. Mas escrever era uma actividade demasiado inútil para que qualquer dos meus professores a considerasse. Ano após ano desacreditaram-me e instigaram-me a estudar outras matérias e a desistir deste vício escarnecido que era o que pegar numa caneta e escrevinhar sobre o Mundo na forma de um conto.

Nunca tiveram como me obrigar. Felizmente, era um fidalgo preso naquele orfanato e escrevia sempre que me apetecia. Os outros alunos gostavam das minhas histórias, repetiam-nas à noite e liam-nas aos mais novos.

O meu melhor amigo era um desses alunos mais novos, uma criança órfã que trabalhava no campo todo o dia. Não lhe era cedido o privilégio de aprender a ler. Deixavam-no respirar e por isso mesmo, ele tornara-se numa pessoa agradecida e calada. Mas os seus olhos perspicazes eram vorazes. Cercava-me silenciosamente e puxava-me a camisa “Escreveste mais histórias?”.

Porque ele não se limitava a respirar. E quebrava todos os limites quando se dispunha a sonhar através das minhas histórias. Um dia, dei por mim a escrever só para ele. Só para os sonhos dele, como se as minhas histórias o mantivessem vivo para além da respiração monótona de todos os dias que trazia do campo.

E quando voltava da sua lide, eu lia-lhe o que escrevia. E antes de adormecer, repetia-me freneticamente “Não deixes de escrever. Nunca deixes de escrever.” Quando estes gemidos se tornaram mais agrestes, coloquei-lhe a mão no ombro e destapei-lhe as equimoses. Com um único fio de palavra, ele disse “eles não querem que tu escrevas”.

Foi aí que a minha raiva nasceu. E era diplomática, bem vestida como eu. O professor olhava para mim de soslaio e perguntava-me se escrevera alguma coisa. Senti pela primeira vez as veias do meu pescoço a latejarem e uma vontade incontrolável de esmurrar tudo e todos à minha frente. Mas não escrevi mais.

E senti-me inútil e desprotegido. E não podia mais ajudar o meu amigo, que voltava ininterruptamente do seu trabalho do campo como se não houvesse distinção entre o dia e a noite. Afagava-lhe os ombros, beijava-lhe a testa e ele adormecia a dizer-me “Porque é que deixaste de me contar histórias?”

Adoeceu de tal forma que uma noite, à socapa me disse: “Não me importo com o que me possam fazer, já estou morto de qualquer forma. Mas tu, não deixes de escrever.” “Nem penses nisso”, disse-lhe rapidamente. E na sua infantilidade séria de criança agarrou-me na caneta “ Faz-me viver um pouco, pelo menos um pouco”. E foi quase como um suicídio assistido. Escrevi-lhe ali uma história, e no dia seguinte o meu amigo foi para o campo e já não voltou.



A minha raiva nunca foi respeitada. Sabiam que ela existia, mas exigiam-lhe que ficasse à porta, que se colocasse no seu lugar. E então eu entrava e sossegava-a à porta, prometia-lhe que não demorava. E deixava-a escrever por mim.

Um dia editei livros com as minhas histórias. E sem saberem, a minha raiva destruía-lhes directamente os sonhos. E nunca senti dó.

Sem comentários:

Enviar um comentário