domingo, 15 de agosto de 2010

Desafio XXXII - Resposta

Aquela folha caiu-me algures entre as páginas dos melhores destinos de férias para o Verão e as páginas contendo os mais apetecíveis preparados refrescantes para refeições leves. Era um pedaço de papel gasto, em folha pautada. Olhei em volta, não sei se desconfiando estar a fazer algo ilícito ou se para me certificar que não era uma brincadeira, e baixei-me para o elevar do chão por baixo da minha cadeira de aeroporto. Decidi guardá-lo no bolso do casaco e aproximar-me do terminal do meu voo, pousando pelos caminhos amplos de Orly a revista francesa que o albergava numa prateleira de revistas.

Estava já a muitas milhas do solo quando o desembrulhei. O papel era frágil. Vários riscos e palavras enfeitavam-no em toda a sua extensão. Havia muitas datas, nomes de locais. Nenhuma área ficara por preencher, dir-se-ia mesmo que eram as zonas brancas a traçar os padrões pelo meio da tinta colorida em fundo. Numa caixa bem identificada, em torno da qual todos os outros riscos partiam, um texto escrito a azul brilhante chamava a atenção.

“One love can be bigger than the World if it’s worth more than its own context. But if one love is bigger than countries, bigger than families, bigger than ideologies, bigger than jobs, then it needs to fly away. One such love is not enclosed in artifacts, or even in its own memories. To save something that reminds one such love means that the possibility is there for it to be forgotten. But one such love is forever. One such love spreads, expands, and touches everything and everyone. And one such love may even burn out in the hearts of the two people where it was born, and still it will not die.
We ask you to be the airplane that flies this great love. Make sure this letter never stops travelling. Don’t keep it, but don’t pass it to anybody else either. Just let it be found by whoever it wants to be found. Because true love also happens that way.”

Senti que devia rir. Mesmo sendo bem mais criativa, não passava de uma evolução no correio electrónico em cadeia, na correspondência do tipo “envia-me a 10 pessoas e encontrarás a felicidade”. Mas não ri, talvez por ver ali tão explícito o número de pessoas cujas mãos tocaram aquelas letras e cujos espíritos se sentiram tocados pelo conteúdo. Quando recebo uma mensagem que me pede para ser reenviada, quase literalmente um vírus ao propagar-se, ela não me revela quantos hospedeiros já habitou. Aqui, no entanto, estavam todas as datas, os nomes, os locais, tantas vezes com pequenas mensagens pessoais, em tantas, tantas línguas. Identifiquei dezenas de nacionalidades, centenas de caligrafias, mais centenas de simples riscos bem no final do verso da página, quando o espaço claramente já se havia extinto para escrever algo com nexo. Guardei-a no bolso e no espírito. E assim cheguei ao aeroporto onde a minha namorada me esperava.

Não lhe falei na carta. O meu espírito prático e a minha visão desprovida de floreados e romantismos bacocos foram sempre o que mais a atraiu em mim. Sobretudo por ela ser tão diferente, sempre com um “amo-te” colado à boca. Sentia que o facto da carta, de alguma maneira, ter perdurado no meu pensamento e ter-se mantido no bolso do meu casaco, iria desiludi-la. Iria fazer-me parecer demasiado com ela.

Os presentes que lhe oferecia já eram concessão demasiada. Uma concessão que me habituei a fazer, tranquilamente. Com um contentamento orgulhoso, já em casa, estendi-lhe o meu presente de viagem. Estava embrulhado em papel dourado, impecável. Lá dentro, um pequeno globo escondia uma Torre Eiffel mergulhada em água e em pequenas partículas brancas, simulando neve. Era a minha pequena evocação de Paris, onde estivera em trabalho. Era um túnel escavado na memória da cidade onde nos conhecemos ainda como estudantes. Era a nossa saudade daqueles tempos de amor sôfrego, de devoção completa ao outro. Era o amor submerso em paixão, perfeitamente misturados como dentro daquele globo que ela agora agitava.

Nos seus olhos não vi gosto, alegria nem interesse. Mas também não vi desgosto. Vi apenas o notório desinteresse do costume, coroado por um abraço fraco e um ténue “obrigado”. Pegou no globo, sorrindo distraída, e colocou-o na estante que nos ocupa toda uma parede de casa e onde ela colecciona todos os artefactos que nos marcaram em cada momento, todas as cartas que trocámos, todas as fotografias de todos os sítios onde já estivémos. Um estranho seria capaz de reconstruir o nosso amor estudando aquela estante. Voltou-se, abriu mais o sorriso e disse-me: “amo-te”.

E eu relembrei-me da carta, e perguntei-me se um amor que se recorda constantemente de si mesmo pode ser amor de todo. E questionei-me, como quem dá já uma resposta, se o armário das nossas recordações seria, para ela, uma forma de garantir que o nosso amor viveria nas nossas memórias muito depois de se extinguir nos nossos corações. Mas talvez um sentimento que se recorda seja um sentimento que esquece. É um sentimento que nunca se corporiza em algo exterior ao seu próprio contexto, e por isso é meramente circunstancial, não se pode dizer que tenha propriamente existência. Não se pode dizer que seja amor. E perguntei-me se foi por isso que aquele casal escreveu aquela carta e a pôs a correr o Mundo. Perguntei-me se eles saberiam algo que eu nunca soube. Se amariam de uma forma que eu não sei amar.

No dia seguinte, fui ao aeroporto. Abri uma revista portuguesa e coloquei cuidadosamente a carta, no mesmo estado em que a encontrei, algures entre as páginas dos melhores destinos de férias para o Verão e as páginas contendo os mais apetecíveis preparados refrescantes para refeições leves. Voltei para casa, e nunca mais pensei no assunto.

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