sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Desafio XXXI - Resposta

Tenho momentos em que, deitado na cama ou sentado em qualquer posição de ócio, fico somente contemplativo perante as veias salientes das minhas mãos que tremem. Veias por onde escorrem rios subterrâneos que um dia, não muito longe daqui, secarão. A juventude esvai-se pelos poros que engrossam e pelas ossos que enfraquecem. As ideias esgotam-se quando a terra puxa pelo corpo, e já nem a morte é futuro, mas sim um presente cada vez mais intenso.

Tenho momentos em que me tento mexer. Mas o próprio movimento já só me é permitido em dois sentidos: de pé para o chão, e da cama para a cadeira. Sinto-me um fantasma preso a um Mundo que o expeliu, aprisionado numa existência espectral que atemoriza os que ainda não a sentem próxima, mas demasiado empedernido para mudar. A impotência física, que me tolhe e me dá um certo desespero de abandono, não rivaliza jamais com a impotência para pegar nesta pele enrugada, quase transparente, e transfigurar-me. Nasci um tronco, avistei em frente ramos de possibilidades, escolhi um, e agora aqui estou, uma folha amarelada que olha para o caminho feito atrás enquanto espera pelo final do Outono, por cair à terra e ser enterrada juntamente com o lixo dos vivos.

Tudo o que a moleza do corpo e do pensamento ainda me permite nesses momentos, é recordar carinhosamente as pessoas que fui. Recordo como fui múltiplo em tantos momentos, e quantos sentimentos habitaram este corpo resignado ao cansaço. Recordo com especial saudade a pessoa que era quando a minha mulher se apaixonou por mim. Por ela, estiquei-me até ao melhor de mim. E a ela, que ainda hoje se deita ou se senta junto com a minha figura de papel, toco no braço e pergunto quem é. Eu sei quem ela diz ser: ela diz ser a mesma que foi nessa altura. Mas eu questiono sempre como pôde ela amar um homem jovem e irrequieto, que raramente se detinha em momentos de contemplação, e agora amar este velho imóvel, este monumento vivo da sua própria vida. E digo-lhe que eu não a amo. Que quem eu amo é a mulher que também ela foi quando a paixão nos visitou. Como posso reconhecê-la se a sua face é outra, a sua voz é diferente, se é agora tão menos livre nas ideias e nos pensamentos, se os seus actos são já os de outra? Quem eu amava era a outra, não esta. Por muito que ela me diga que são uma só.

E medito um pouco sobre esse sentido de identidade que nos faz ligar todas as pessoas que fomos, e chamar a esse elo o “Eu”. o “Eu” é uma mentira. Não somos senão uma colecção de personagens fingindo que a vida é permanente e contínua. Mas a vida é provisória. A vida é um soluço.

E no fim desses momentos, num suspiro da consciência, adormeço, e logo salto de regresso à casa da partida. Vejo-me sugado para uma realidade mais sensível e deparo-me com a visão das minhas mãos animadas pelo pleno vigor da juventude. A velhice, em mim, é um fantasma de mim mesmo. Um fantasma que chegou antes do seu tempo devido, para me assombrar só a mim. Afinal, estou no tronco, e até conhecer a idade que me atemoriza haverá ainda muitos ramos por onde escolher. Por agora, vou imaginando como será esse fantasma, na certeza porém de que, quando lhe vestir a pele flácida, serei já outra pessoa que não eu mesmo. Afinal, a velhice para mim é transparente, e não lhe adivinho mais do que os contornos mais simples. Mas tê-la sempre presente ajuda-me a nunca me julgar uma tábua onde estão e sempre estarão escritos os mesmos sentimentos e pensamentos.

Quem me amar, que me ame hoje. Amanhã será outro a ocupar o meu corpo.

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