Wings para Alice in Wonderland:
Discordo daquilo que dizes mas defenderei até à morte o teu direito de o dizeres
Voltaire
Alice in Wonderland para Ricardo:
Intensamente atenta, Lúcia admirava-os, invejava-os, mirava cada pormenor, fixava a eficácia de cada feitio.
- Se um daqueles vestidos, o azul ou o branco, pudesse ser o meu! - murmurou.
De súbito irritou-se. Levantou-se e, virando as costas à sala, debruçou-se sobre o jardim.
A noite poisou a sua mão fresca sobre a sua cara afogueada.
(...)
O rapaz encostou-se à janela.
Lúcia não sabia o que havia de dizer. Por fim murmurou:
- Estava a ver a noite.
- Vamos continuar a ver a noite - respondeu ele.
E virando as costas à sala debruçou-se sobre o jardim, respirou fundo e exclamou:
- Cheira bem, cheira a erva cortada, a buxo, a tílias, a madressilva.
- É - aprovou Lúcia debruçando-se também na janela.
- Tudo parece tão misterioso: o brilhar do luar entre as sombras e as folhas das árvores, o reflexo da lua no lago. O lago parece um espelho. É uma noite mágica.
- Está lindo - murmurou Lúcia um tanto perplexa.
- Ainda é Primavera e já é Verão. As noites, neste tempo do ano, são uma maravilha, apetece vivê-las minuto a minuto, não perder nem um instante delas, nem um suspiro da brisa.
- É maravilhoso - aprovou Lúcia tentando mais uma vez captar o estilo da conversa.
Houve um longo silêncio. De súbito o rapaz acordou da contemplação e com um leve arrebatamento perguntou:
- Estas noites assim não a assustam? Assustar? Porquê?
- Tanto azul, tantos brilhos, brisas, perfumes, parecem a promessa de uma vida deslumbrada que é a nossa verdadeira vida. Mas, ao mesmo tempo, há nestas noites uma angústia especial - há no ar o pressentimento de que nos vamos despistar, nos vamos distrair, nos vamos enganar e não vamos nunca ser capazes de reconhecer e agarrar essa vida que é a nossa verdadeira vida.
Lúcia hesitou, suspeitosa. Duvidava simultaneamente do estilo da conversa e do seu próprio entendimento. O rapaz parecia-lhe tonto e lunático. Compreendeu que não poderia dizer que para ela a verdadeira vida seria estar naquele baile com um vestido lindíssimo. Essas coisas não se dizem. Por isso respondeu:
- Pois é, está uma noite extraordinária.
Mas, depois, abruptamente perguntou:
- Porque é que me diz essas coisas? Não me conhece, não sabe como eu sou.
- Porque você estava a olhar para a noite em vez de estar a olhar para os vestidos.
- Como é fácil enganar - pensou Lúcia.
Sophia de Mello Breyner Andresen - A História da Gata Borralheira - Histórias da Terra e do Mar
Ricardo para Wings:
“Show me a man who lives alone and has a perpetually clean kitchen, and 8 times out of 9 I'll show you a man with detestable spiritual qualities.”
Charles Bukowski
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