Aos primeiros acordes de uma guitarra endiabrada, que chiando expira sons acústicos sintetizados,ela já sabia que estava perante algo de muito especial. Uma guitarra assim não se faz escutar em mais lado nenhum. Ninguém manobra assim as notas, como se conduzisse um carro sem travões a alta velocidade, tentando mantê-lo na estrada mas sempre fazendo deslizar a traseira. Quando entrou a bateira e o ritmo se estabeleceu, ela sentiu a necessidade de se levantar da cama. Depois, o silêncio breve. O coração dela gelou. E rapidamente, uma voz mais descontolada ainda, de uma melodia deslizante e descontrolada, apaixonada mas não sexual, soltou uma história. E quando esse timbre inigualavelmente flutuante do Morrissey perguntou, como quem geme,
ela soube que estava apaixonada.
Já passava das dez da noite de um Domingo qualquer. Ela já estava deitada, de olhos fechados, aguardando que o sono dolente lhe trouxesse outro plano de inexistência. Afinal, acabou por passar horas sobreerguida, um vulto enegrecido de costas na cabeceira da cama e olhos bem abertos para a escuridão do quarto, a deixar-se ser invadida por sons que não sabia existirem. Não era especial adepta de música, ou pelo menos da música do seu tempo, das suas amizades, do seu ambiente. Música de escola, música social. Muito menos música daquela. Seria antiga? Seria recente? Como se chamaria a banda?
Já passava da meia noite. O Morrissey estada a declarar, assertivamente, que
quando ela puxou o cobertor para os pés da cama e colocou pernas a caminho da janela semi-aberta. O ar fresco de Outono e o vento leve traziam-lhe a música que lhe batia na janela, como um Peter Pan que anuncia uma terra do nunca antes descoberto. Vinha de cima, de uma outra janela plenamente iluminada, aberta para uma cortina transparente esvoaçante e para um braço segurando um cigarro descontraído, preso por dois dedos, numa pose tão precária que parecia poder soltar-se a qualquer momento. A mão, grossa, oscilava desritmada, como um maestro solitário, enquanto o Morrissey avisava que
Aquela mão valeria uma sinfonia.
E de repente, um carro clássico, inidentificável para quem não tem sequer idade ou interesse de possuir carta de condução, detém-se na rua. Desliga-se, mas mantém os faróis ligados. E a música pára. E a cortina é encarcerada por um vidro que se fecha, e a luz que soprava o vento extingue-se naquele andar superior. Sempre na sua janela, ela escuta o tambor dos passos na escada e a porta da rua. Um vulto, pouco mais do que isso, de cabelo comprido e casaco preto, longo, dirige-se apressadamente para o banco do pendura no carro parado. O carro arranca, parte num sopro, e todo o som se extingue por esse dia. E ela voltou para a cama, e dormiu profundamente. Porque na vida nem tudo o que nos abala e intriga nos tira o sono.
O dia seguinte começou cedo, despertado pela curiosidade acesa de véspera por aquelas palavras, frases breves captadas esparsamente por entre as guitarras e ritmos que abriram caminho até aos seus jovens ouvidos. No computador aberto, procurou escrever essas palavras gravadas na memória. Porque a música movia-a, sim, mas era o verbo o princípio e o fim da sua ilusão, da sua devoção, da força vital que agitava aquela mão masculina no andar de cima. As palavras seriam a chave da porta acima, seriam o mapa para o dono daquela voz. Morrissey, The Smiths, banda antiga e acabada, dizia-lhe o computador. Seguiu para uma manhã de aulas com o ânimo de quem descobre um tesouro.
No caminho de todos os dias de regresso a casa, num prédio estreito, existia uma loja de música. Já tinha reparado nela noutras vezes, mas nunca tinha entrado. Na verdade, nunca tinha sequer espreitado para o interior. Naquele dia, porém, deteve-se a contemplar o interior escuro e poeirento. Um grande sofá central com uma caixa de discos de vinil parecia convidar a entrar e contemplar aqueles objectos antigos, quase como se fossem uma obra de arte em si mesma, aparte das gravações que codificam. Em prateleiras laterais, sentavam-se em ferros os CDs, resplandecentes e coloridos, que com o seu misto de desenhos e padrões formavam uma textura quase de animal selvagem de floresta tropical. E, logo à entrada, num balcão, um homem de meia idade ostentava um bigode e um olhar desconfiado, intimando-a a decidir-se. Entras, ou desapareces. E ela entrou.
A partir daí, o senhor do bigode, vagaroso e barrigudo, de camisa semi-aberta, tornou-se tão solícito quanto a postura lhe permitia. The Smiths, não tinha nada em CD; talvez alguns vinis, atrás do sofá. Então ela procurou, demoradamente mas sem sucesso, por entre nomes que nada lhe diziam, algo familiar. Estava já a sair quando o senhor da loja, remexendo no balcão, informou-a que a única coisa que tinha era um poster. Desenrolando-o, ela pôde pela primeira vez associar um rosto à sua noite. Pareceu-lhe atraente a forma tímida como aquela face a preto e branco se expunha para a câmara, olhando-a de lado, sem um sorriso, sem alegria ou ânimo, mas também sem tristeza nem passividade. O cabelo, liso mas desgrenhado, abundante no topo, estático mas cheio de vida, confundia-se com a nebulosidade negra do céu. E abaixo, por entre um casario desfocado, as riscas verticais de uma camisa faziam o olhar tombar perante a imponência estranha de toda a figura.

Pagou e levou-o para casa. E não mais fez do que pousar os cadernos antes de pousar o olhar desafiante do Morrissey na parede em frente à cama. Aquela face era o rosto com o qual identificava o seu vizinho desconhecido. Aquela face, aquela maravilhosa face. Passou toda a tarde em silêncio a contemplá-la, sem questionar, quase sem pensar, apenas julgando que seria capaz de olhar aquele rosto que lhe sugava a atenção durante a vida toda. E o que lhe dava a volta à cabeça era que, na sua cabeça, aquele vulto dizia-lhe sem parar
Com a noite regressou a música. Não seriam mais de nove horas quando a sua janela, convenientemente escancarada, lhe trouxe uma guitarra esgalhada e uma voz apaixonada, guinchante, irritante mas atraente, declarando com total presunção
Desta vez, no seu quarto não existia escuridão. Desta vez, ela partiu directa para a janela e olhou para cima. Nenhuma mão se agitava, nenhuma ponta de cigarro era visível. Pensou que seria talvez muito cedo, e como tal não podia fazer mais do que esperar. Recostou-se, tal como na noite anterior, na cabeceira da cama, e soltou todos os pensamentos, abrindo espaço para deixar que, de novo, os sons que vinham de cima e as palavras que descortinava lhe revelassem o seu sentido.
E assim se passaram horas. Passava já das onze horas quando o som de um carro a parar na rua a fez pular dos cobertores e precipitar-se para a janela. Já não captou mais do que um vislumbre rápido da mesma mão apagando sofregamente o cigarro contra o parapeito lá de cima. E, de novo, como na noite anterior, mal aquele chiar irritante acabou de se queixar que
a música parou, a luz apagou-se e a janela fechou-se. Como uma traça atraída por uma luz mais forte, os holofotes daquele carro desligado levaram o mesmo vulto, com o mesmo casaco, a fazer o mesmo percurso ruídoso pelas escadas e a precipitar-se para o lugar do pendura. Desapontada e frustrada, deitou-se sem entender o que se passaria naquele quarto andar, apenas três acima do seu. E, apesar de não o entender, nunca se sentira tão atraída por um ser humano.
Na manhã seguinte o ritual repetiu-se. Identificou pelas frases soltas o dono daquela voz tão simultaneamente repelente e irresistível, e ao regressar da escola passou pela loja de música. Nem se preocupou em perguntar por qualquer registo musical; talvez pela experiência recente, perguntou ao mesmo vendedor, com a mesma camisa e o mesmo ar dolente, se tinha algum poster do Billy Corgan. E sim, ali estava ele, de guitarra na mão e abrindo a boca como se tivesse vontade de devorar o microfone, de absorver tudo com a sua voz, de ultrapassar a sua figura menos que interessante e o seu cabelo em falta com uma paixão desmedida e uma violência abrasadora. Era como se o “zero” não estivesse estampado na sua camisola mas sim na sua testa quando se via ao espelho. E como se ele se odiasse por isso mesmo.

E, a partir desse mesmo dia, aquele “zero” aumentou a contagem de fotografias no seu quarto, passando a constar à direita do ar misterioso do Morrissey, e multiplicando em muito o seu gosto pelo seu próprio quarto. Ainda assim, em conjunto, aquelas duas figuras tão díspares pareciam interrogá-la. As perguntas somavam-se. Agora já não podia recortar a face suave do Morrissey e colá-la no vulto desconhecido. Agora, havia uma boca e um “zero” que a perturbavam. Afinal, qual dos dois seria ele? Quem seria aquela pessoa e porque nunca se tinha cruzado com ele no prédio? Afinal, um rapaz tão interessante tem que dar nas vistas. E o carro, o que significaria? Estaria comprometido, seria uma amante que o viesse buscar? Aquela tarde também foi passada numa intimidade cúmplice entre si mesma e as figuras erguidas na parede. Mas a perturbação era crescente.
Chegada essa noite, e todas as noites seguintes, o ritual repetiu-se. Nessa mesma terça-feira, era uma voz saída de outro planeta que lhe dizia que
e no dia seguinte a figura de um David Bowie jovem, esguio, tornava-se na terceira imagem quebrando o silêncio do seu quarto adolescente. E, como uma estação da Via Sacra, ela fez-lhe penitência durante uma tarde até prosseguir, nessa noite, a sua via dolorosa. Dolorosa, porque tornou-se doloroso todos os dias escutar a música calar-se e a luz desligar-se no apartamento do quarto andar, apenas para depois ver a mesma figura vestida da mesma maneira sair do seu prédio para entrar no mesmo carro e partir.

Passaram-se semanas. Seriam talvez onze da noite de um outro domingo quando uma voz diferente das outras lhe chegava lá do alto para a manter desperta. Não era diferente como todas as outras eram diferentes entre si. Esta, ela não sabia descrever nem sequer o que lhe despertava. Era simplesmente como se esta lhe estivesse a dizer para agir, para fazer alguma coisa, para não deixar que a sua vida se tornasse num caminho previsível, ladeado por medos e toldado por arrependimentos. Sentiu-se tremer quando a escutou dizer
e desencostou-se da sua cabeceira quase mecanicamente quando ouviu, em forma de aviso, que
Acendeu a luz do quarto e chegou-se à janela. E lá ficou a olhar. Esta noite, seria ela a aguardar que os holofotes familiares do carro se aproximassem. Ela sabia que eles viriam, na sua luminosidade desafiante, colocar o ponto final abrupto na sua noite. Ela sabia que tinha que enfrentar o que quer que se escondesse naquele carro. E por isso, quando o motor já tão familiar se anunciava, ela manteve-se de olhos postos na rua. Mesmo sabendo que lá em cima a mesma mão masculina se agitava, naquele momento já não lhe chegava o simples vislumbre de uma mão. Era preciso um rosto que substituísse todo aquele painel de outros rostos musicais.
Quando a voz em cima ordenava
ela olhava fixamente o vidro negro do carro. E esboçou um sorriso quase maldoso. Porque afinal era isso que acontecia sempre naquele prédio. E talvez esta derradeira voz fosse não a voz de um homem normal, mas sim a voz de um profeta.
O som de passos na escada começou a sua cavalgada desenfreada. E ela, certificando-se que os pais já dormiam, chegou-se à porta para interceptar aquele vulto na escada. Abriu a porta precisamente no momento exacto. O choque deixou-a sem palavras.
Boa noite.
Sem sequer pensar se tal seria rude, ela não respondeu. Voltou para dentro de casa fechando a porta ruidosamente. Dirigiu-se ao quarto, olhou todos os posters e todos os rostos que a fitavam. Olhou demoradamente a expressão do Morrisey. E, ao desligar as luzes e deitar-se, finalmente entendeu o que ele lhe queria dizer com aquele ar imperceptível ao cantar
Efectivamente é muito fácil enganar e enganar-se. Mesmo que seja sem querer.
Entretanto, o vulto entrava no carro, para o lugar do pendura. Cumprimentou o motorista com dois beijos no rosto, e tirou o casaco.
Epá, adorei os Doors! Acho que são os meus preferidos de todos os CDs que já me emprestaste.
Ainda bem. Eu sabia que ias gostar. E alguém que tem o interesse por música que tens, e a vontade de descobrir que tu tens, tinha que conhecer. Os Doors são sagrados!
Sim, mal posso esperar pelo que me vais emprestar para amanhã! Mas... onde me vais levar esta noite?
Vamos a um bar em Telheiras. Também têm música ao vivo, acho que vais gostar. Mas olha, antes disso... desculpa perguntar, mas quem é aquela rapariga que mora aqui no primeiro andar?
O quê?...
Estava aqui uma rapariga à janela. Ela tinha a luz acesa, e sorriu-me quando cheguei. Tem o quarto cheio de posters de grandes bandas... e eu fiquei curioso. Alguém tão conhecedor de música tem que ter tanto para contar... Enfim, gostava de a conhecer.
Não sei... Não faço ideia.
A desilusão era notória e o desconforto foi impossível de conter. O vulto afastava o cabelo comprido para trás da orelha, nervosamente, com as suas mãos masculinas, de veias salientes, talvez por tanto tocar guitarra. E, em nenhum momento, deixava de olhar em frente. Até no banco do pendura, mesmo com a sua pele tão confortável, é impossível ignorar a complexidade da vida.
Que foi? Não me digas que ficas chateada... Ouve, tu sabes bem que eu sou o teu professor de guitarra, e que somos amigos, e tu pediste-me que te mostrasse mais música. Mas é só isso, não pode haver mais, não é ético da minha parte. Tu és minha aluna! Eu pensava que o teu verdadeiro interesse era a música...
Sim, e é, desculpa. É só que... se arranjas namorada, acabam-se estas noites.
Não acabam, tens a minha promessa. Amanhã vou ver se saio do carro e cumprimento a tua vizinha!
E, de novo, como todas as noites, os holofotes afastaram-se da rua.
Naquela tarde, ela dirigiu-se à mesma loja, e comprou o poster que passaria a representar aquela última noite. Não havia mais espaço na parede. Mas tinha passado a haver espaço na sua vida para música, muita música. E, talvez por isso, o último rectângulo ficaria preenchido para sempre por um Jim Morrison de braços abertos.