segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Desafio XXXIV - Resposta


Discordo daquilo que dizes mas defenderei até à morte o teu direito de o dizeres


Ela estava deitada no chão, à chuva e chorava enquanto a água a sacudia. Era livre agora para não continuar presa.
Era difícil compreenderes.
Tinhas na mão o poder de evoluir, de educar com a força da mente que impele os músculos numa brutalidade demasiado física para um qualquer corpo banal repelir.
Tinhas razão. A variabilidade, a troca, a confusão. Isso sim é a vida, é a progressão. Uma estrada para a frente tem que ter muitas bifurcações e muitos cruzamentos e principalmente, muitos caminhos proibidos ou inexistentes que são inventados, quando sem querer, afastamos um ramo de folhas.
E ela foi um filho desses caminhos, uma estrada irregular e incerta que se elevou numa montanha de poder prestes a ribombar e explodiu como um vulcão desgarrado sobre os pobres de espírito que nunca souberam o que significa andar para a frente sem ser às voltas.
Tinhas razão. A progressão não contempla os incultos ou os fracos, sem qualquer tipo de habilidade que os marque nesta vida. O poder dela era demasiado grande para que lhe resistissem. E a petulância deles em destrui-la, tornou patético e justificável, toda a tua existência e toda a tua determinação em tornar o mundo livre. Livre deles.
Porque eles podiam ao menos, implorar pela liberdade de existirem. Mas como nunca o fizeram, o mundo tornou-se acorrentado pelos ideais invejosos de quem despreza o poder que não lhe nasceu nos genes.
Sempre tiveste razão. Não concederes a liberdade, foi uma forma de seres livre. Porque se não os prenderes e os resumires ao pó que representam na evolução da Humanidade, eles castrarão e afogarão essa Humanidade em miséria e em falta de originalidade que só a promiscuidade e a loucura prometem.
Sempre tiveste tanta razão em querer salvar o mundo da não-evolução, que nunca compreenderás porque é que ela escolheu aquela liberdade. Foi uma aberração, disseste tu, um desperdício. Ela podia tornar o Mundo livre.
O que não sabes é ser ela. O que não sabes é ter o poder dela. Saber que está num patamar de evolução solitário, e que poder moldar a Humanidade como plasticina, sem obstrução. Ela matar-te-ia pelos mesmos motivos, porque perante ela, não és nada, tal como eles.
Perante ela, ninguém é nada. Por isso, perdoa-lhe que tenha escolhido a liberdade reconfortante de não estar absolutamente só no mundo.

Nunca vais compreender que a liberdade não se dobra a nada, nem à evolução.

                                                                     (Rogue - XMEN)

sábado, 28 de agosto de 2010

Desafio XXXIV - Resposta

Aos primeiros acordes de uma guitarra endiabrada, que chiando expira sons acústicos sintetizados,ela já sabia que estava perante algo de muito especial. Uma guitarra assim não se faz escutar em mais lado nenhum. Ninguém manobra assim as notas, como se conduzisse um carro sem travões a alta velocidade, tentando mantê-lo na estrada mas sempre fazendo deslizar a traseira. Quando entrou a bateira e o ritmo se estabeleceu, ela sentiu a necessidade de se levantar da cama. Depois, o silêncio breve. O coração dela gelou. E rapidamente, uma voz mais descontolada ainda, de uma melodia deslizante e descontrolada, apaixonada mas não sexual, soltou uma história. E quando esse timbre inigualavelmente flutuante do Morrissey perguntou, como quem geme,


ela soube que estava apaixonada.

Já passava das dez da noite de um Domingo qualquer. Ela já estava deitada, de olhos fechados, aguardando que o sono dolente lhe trouxesse outro plano de inexistência. Afinal, acabou por passar horas sobreerguida, um vulto enegrecido de costas na cabeceira da cama e olhos bem abertos para a escuridão do quarto, a deixar-se ser invadida por sons que não sabia existirem. Não era especial adepta de música, ou pelo menos da música do seu tempo, das suas amizades, do seu ambiente. Música de escola, música social. Muito menos música daquela. Seria antiga? Seria recente? Como se chamaria a banda?

Já passava da meia noite. O Morrissey estada a declarar, assertivamente, que


quando ela puxou o cobertor para os pés da cama e colocou pernas a caminho da janela semi-aberta. O ar fresco de Outono e o vento leve traziam-lhe a música que lhe batia na janela, como um Peter Pan que anuncia uma terra do nunca antes descoberto. Vinha de cima, de uma outra janela plenamente iluminada, aberta para uma cortina transparente esvoaçante e para um braço segurando um cigarro descontraído, preso por dois dedos, numa pose tão precária que parecia poder soltar-se a qualquer momento. A mão, grossa, oscilava desritmada, como um maestro solitário, enquanto o Morrissey avisava que


Aquela mão valeria uma sinfonia.

E de repente, um carro clássico, inidentificável para quem não tem sequer idade ou interesse de possuir carta de condução, detém-se na rua. Desliga-se, mas mantém os faróis ligados. E a música pára. E a cortina é encarcerada por um vidro que se fecha, e a luz que soprava o vento extingue-se naquele andar superior. Sempre na sua janela, ela escuta o tambor dos passos na escada e a porta da rua. Um vulto, pouco mais do que isso, de cabelo comprido e casaco preto, longo, dirige-se apressadamente para o banco do pendura no carro parado. O carro arranca, parte num sopro, e todo o som se extingue por esse dia. E ela voltou para a cama, e dormiu profundamente. Porque na vida nem tudo o que nos abala e intriga nos tira o sono.

O dia seguinte começou cedo, despertado pela curiosidade acesa de véspera por aquelas palavras, frases breves captadas esparsamente por entre as guitarras e ritmos que abriram caminho até aos seus jovens ouvidos. No computador aberto, procurou escrever essas palavras gravadas na memória. Porque a música movia-a, sim, mas era o verbo o princípio e o fim da sua ilusão, da sua devoção, da força vital que agitava aquela mão masculina no andar de cima. As palavras seriam a chave da porta acima, seriam o mapa para o dono daquela voz. Morrissey, The Smiths, banda antiga e acabada, dizia-lhe o computador. Seguiu para uma manhã de aulas com o ânimo de quem descobre um tesouro.

No caminho de todos os dias de regresso a casa, num prédio estreito, existia uma loja de música. Já tinha reparado nela noutras vezes, mas nunca tinha entrado. Na verdade, nunca tinha sequer espreitado para o interior. Naquele dia, porém, deteve-se a contemplar o interior escuro e poeirento. Um grande sofá central com uma caixa de discos de vinil parecia convidar a entrar e contemplar aqueles objectos antigos, quase como se fossem uma obra de arte em si mesma, aparte das gravações que codificam. Em prateleiras laterais, sentavam-se em ferros os CDs, resplandecentes e coloridos, que com o seu misto de desenhos e padrões formavam uma textura quase de animal selvagem de floresta tropical. E, logo à entrada, num balcão, um homem de meia idade ostentava um bigode e um olhar desconfiado, intimando-a a decidir-se. Entras, ou desapareces. E ela entrou.

A partir daí, o senhor do bigode, vagaroso e barrigudo, de camisa semi-aberta, tornou-se tão solícito quanto a postura lhe permitia. The Smiths, não tinha nada em CD; talvez alguns vinis, atrás do sofá. Então ela procurou, demoradamente mas sem sucesso, por entre nomes que nada lhe diziam, algo familiar. Estava já a sair quando o senhor da loja, remexendo no balcão, informou-a que a única coisa que tinha era um poster. Desenrolando-o, ela pôde pela primeira vez associar um rosto à sua noite. Pareceu-lhe atraente a forma tímida como aquela face a preto e branco se expunha para a câmara, olhando-a de lado, sem um sorriso, sem alegria ou ânimo, mas também sem tristeza nem passividade. O cabelo, liso mas desgrenhado, abundante no topo, estático mas cheio de vida, confundia-se com a nebulosidade negra do céu. E abaixo, por entre um casario desfocado, as riscas verticais de uma camisa faziam o olhar tombar perante a imponência estranha de toda a figura.


Pagou e levou-o para casa. E não mais fez do que pousar os cadernos antes de pousar o olhar desafiante do Morrissey na parede em frente à cama. Aquela face era o rosto com o qual identificava o seu vizinho desconhecido. Aquela face, aquela maravilhosa face. Passou toda a tarde em silêncio a contemplá-la, sem questionar, quase sem pensar, apenas julgando que seria capaz de olhar aquele rosto que lhe sugava a atenção durante a vida toda. E o que lhe dava a volta à cabeça era que, na sua cabeça, aquele vulto dizia-lhe sem parar


Com a noite regressou a música. Não seriam mais de nove horas quando a sua janela, convenientemente escancarada, lhe trouxe uma guitarra esgalhada e uma voz apaixonada, guinchante, irritante mas atraente, declarando com total presunção


Desta vez, no seu quarto não existia escuridão. Desta vez, ela partiu directa para a janela e olhou para cima. Nenhuma mão se agitava, nenhuma ponta de cigarro era visível. Pensou que seria talvez muito cedo, e como tal não podia fazer mais do que esperar. Recostou-se, tal como na noite anterior, na cabeceira da cama, e soltou todos os pensamentos, abrindo espaço para deixar que, de novo, os sons que vinham de cima e as palavras que descortinava lhe revelassem o seu sentido.

E assim se passaram horas. Passava já das onze horas quando o som de um carro a parar na rua a fez pular dos cobertores e precipitar-se para a janela. Já não captou mais do que um vislumbre rápido da mesma mão apagando sofregamente o cigarro contra o parapeito lá de cima. E, de novo, como na noite anterior, mal aquele chiar irritante acabou de se queixar que


a música parou, a luz apagou-se e a janela fechou-se. Como uma traça atraída por uma luz mais forte, os holofotes daquele carro desligado levaram o mesmo vulto, com o mesmo casaco, a fazer o mesmo percurso ruídoso pelas escadas e a precipitar-se para o lugar do pendura. Desapontada e frustrada, deitou-se sem entender o que se passaria naquele quarto andar, apenas três acima do seu. E, apesar de não o entender, nunca se sentira tão atraída por um ser humano.

Na manhã seguinte o ritual repetiu-se. Identificou pelas frases soltas o dono daquela voz tão simultaneamente repelente e irresistível, e ao regressar da escola passou pela loja de música. Nem se preocupou em perguntar por qualquer registo musical; talvez pela experiência recente, perguntou ao mesmo vendedor, com a mesma camisa e o mesmo ar dolente, se tinha algum poster do Billy Corgan. E sim, ali estava ele, de guitarra na mão e abrindo a boca como se tivesse vontade de devorar o microfone, de absorver tudo com a sua voz, de ultrapassar a sua figura menos que interessante e o seu cabelo em falta com uma paixão desmedida e uma violência abrasadora. Era como se o “zero” não estivesse estampado na sua camisola mas sim na sua testa quando se via ao espelho. E como se ele se odiasse por isso mesmo.


E, a partir desse mesmo dia, aquele “zero” aumentou a contagem de fotografias no seu quarto, passando a constar à direita do ar misterioso do Morrissey, e multiplicando em muito o seu gosto pelo seu próprio quarto. Ainda assim, em conjunto, aquelas duas figuras tão díspares pareciam interrogá-la. As perguntas somavam-se. Agora já não podia recortar a face suave do Morrissey e colá-la no vulto desconhecido. Agora, havia uma boca e um “zero” que a perturbavam. Afinal, qual dos dois seria ele? Quem seria aquela pessoa e porque nunca se tinha cruzado com ele no prédio? Afinal, um rapaz tão interessante tem que dar nas vistas. E o carro, o que significaria? Estaria comprometido, seria uma amante que o viesse buscar? Aquela tarde também foi passada numa intimidade cúmplice entre si mesma e as figuras erguidas na parede. Mas a perturbação era crescente.

Chegada essa noite, e todas as noites seguintes, o ritual repetiu-se. Nessa mesma terça-feira, era uma voz saída de outro planeta que lhe dizia que


e no dia seguinte a figura de um David Bowie jovem, esguio, tornava-se na terceira imagem quebrando o silêncio do seu quarto adolescente. E, como uma estação da Via Sacra, ela fez-lhe penitência durante uma tarde até prosseguir, nessa noite, a sua via dolorosa. Dolorosa, porque tornou-se doloroso todos os dias escutar a música calar-se e a luz desligar-se no apartamento do quarto andar, apenas para depois ver a mesma figura vestida da mesma maneira sair do seu prédio para entrar no mesmo carro e partir.


Passaram-se semanas. Seriam talvez onze da noite de um outro domingo quando uma voz diferente das outras lhe chegava lá do alto para a manter desperta. Não era diferente como todas as outras eram diferentes entre si. Esta, ela não sabia descrever nem sequer o que lhe despertava. Era simplesmente como se esta lhe estivesse a dizer para agir, para fazer alguma coisa, para não deixar que a sua vida se tornasse num caminho previsível, ladeado por medos e toldado por arrependimentos. Sentiu-se tremer quando a escutou dizer


e desencostou-se da sua cabeceira quase mecanicamente quando ouviu, em forma de aviso, que


Acendeu a luz do quarto e chegou-se à janela. E lá ficou a olhar. Esta noite, seria ela a aguardar que os holofotes familiares do carro se aproximassem. Ela sabia que eles viriam, na sua luminosidade desafiante, colocar o ponto final abrupto na sua noite. Ela sabia que tinha que enfrentar o que quer que se escondesse naquele carro. E por isso, quando o motor já tão familiar se anunciava, ela manteve-se de olhos postos na rua. Mesmo sabendo que lá em cima a mesma mão masculina se agitava, naquele momento já não lhe chegava o simples vislumbre de uma mão. Era preciso um rosto que substituísse todo aquele painel de outros rostos musicais.

Quando a voz em cima ordenava


ela olhava fixamente o vidro negro do carro. E esboçou um sorriso quase maldoso. Porque afinal era isso que acontecia sempre naquele prédio. E talvez esta derradeira voz fosse não a voz de um homem normal, mas sim a voz de um profeta.

O som de passos na escada começou a sua cavalgada desenfreada. E ela, certificando-se que os pais já dormiam, chegou-se à porta para interceptar aquele vulto na escada. Abriu a porta precisamente no momento exacto. O choque deixou-a sem palavras.

Boa noite.

Sem sequer pensar se tal seria rude, ela não respondeu. Voltou para dentro de casa fechando a porta ruidosamente. Dirigiu-se ao quarto, olhou todos os posters e todos os rostos que a fitavam. Olhou demoradamente a expressão do Morrisey. E, ao desligar as luzes e deitar-se, finalmente entendeu o que ele lhe queria dizer com aquele ar imperceptível ao cantar


Efectivamente é muito fácil enganar e enganar-se. Mesmo que seja sem querer.

Entretanto, o vulto entrava no carro, para o lugar do pendura. Cumprimentou o motorista com dois beijos no rosto, e tirou o casaco.

Epá, adorei os Doors! Acho que são os meus preferidos de todos os CDs que já me emprestaste.

Ainda bem. Eu sabia que ias gostar. E alguém que tem o interesse por música que tens, e a vontade de descobrir que tu tens, tinha que conhecer. Os Doors são sagrados!

Sim, mal posso esperar pelo que me vais emprestar para amanhã! Mas... onde me vais levar esta noite?

Vamos a um bar em Telheiras. Também têm música ao vivo, acho que vais gostar. Mas olha, antes disso... desculpa perguntar, mas quem é aquela rapariga que mora aqui no primeiro andar?

O quê?...

Estava aqui uma rapariga à janela. Ela tinha a luz acesa, e sorriu-me quando cheguei. Tem o quarto cheio de posters de grandes bandas... e eu fiquei curioso. Alguém tão conhecedor de música tem que ter tanto para contar... Enfim, gostava de a conhecer.

Não sei... Não faço ideia.

A desilusão era notória e o desconforto foi impossível de conter. O vulto afastava o cabelo comprido para trás da orelha, nervosamente, com as suas mãos masculinas, de veias salientes, talvez por tanto tocar guitarra. E, em nenhum momento, deixava de olhar em frente. Até no banco do pendura, mesmo com a sua pele tão confortável, é impossível ignorar a complexidade da vida.

Que foi? Não me digas que ficas chateada... Ouve, tu sabes bem que eu sou o teu professor de guitarra, e que somos amigos, e tu pediste-me que te mostrasse mais música. Mas é só isso, não pode haver mais, não é ético da minha parte. Tu és minha aluna! Eu pensava que o teu verdadeiro interesse era a música...

Sim, e é, desculpa. É só que... se arranjas namorada, acabam-se estas noites.

Não acabam, tens a minha promessa. Amanhã vou ver se saio do carro e cumprimento a tua vizinha!

E, de novo, como todas as noites, os holofotes afastaram-se da rua.

Naquela tarde, ela dirigiu-se à mesma loja, e comprou o poster que passaria a representar aquela última noite. Não havia mais espaço na parede. Mas tinha passado a haver espaço na sua vida para música, muita música. E, talvez por isso, o último rectângulo ficaria preenchido para sempre por um Jim Morrison de braços abertos.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Desafio XXXIV

Wings para Alice in Wonderland:

Discordo daquilo que dizes mas defenderei até à morte o teu direito de o dizeres

Voltaire



Alice in Wonderland para Ricardo:

Intensamente atenta, Lúcia admirava-os, invejava-os, mirava cada pormenor, fixava a eficácia de cada feitio.

- Se um daqueles vestidos, o azul ou o branco, pudesse ser o meu! - murmurou.
De súbito irritou-se. Levantou-se e, virando as costas à sala, debruçou-se sobre o jardim.
A noite poisou a sua mão fresca sobre a sua cara afogueada.
(...)
O rapaz encostou-se à janela.
Lúcia não sabia o que havia de dizer. Por fim murmurou:
- Estava a ver a noite.
- Vamos continuar a ver a noite - respondeu ele.
E virando as costas à sala debruçou-se sobre o jardim, respirou fundo e exclamou:
- Cheira bem, cheira a erva cortada, a buxo, a tílias, a madressilva.
- É - aprovou Lúcia debruçando-se também na janela.
- Tudo parece tão misterioso: o brilhar do luar entre as sombras e as folhas das árvores, o reflexo da lua no lago. O lago parece um espelho. É uma noite mágica.
- Está lindo - murmurou Lúcia um tanto perplexa.
- Ainda é Primavera e já é Verão. As noites, neste tempo do ano, são uma maravilha, apetece vivê-las minuto a minuto, não perder nem um instante delas, nem um suspiro da brisa.
- É maravilhoso - aprovou Lúcia tentando mais uma vez captar o estilo da conversa.
Houve um longo silêncio. De súbito o rapaz acordou da contemplação e com um leve arrebatamento perguntou:
- Estas noites assim não a assustam? Assustar? Porquê?
- Tanto azul, tantos brilhos, brisas, perfumes, parecem a promessa de uma vida deslumbrada que é a nossa verdadeira vida. Mas, ao mesmo tempo, há nestas noites uma angústia especial - há no ar o pressentimento de que nos vamos despistar, nos vamos distrair, nos vamos enganar e não vamos nunca ser capazes de reconhecer e agarrar essa vida que é a nossa verdadeira vida.
Lúcia hesitou, suspeitosa. Duvidava simultaneamente do estilo da conversa e do seu próprio entendimento. O rapaz parecia-lhe tonto e lunático. Compreendeu que não poderia dizer que para ela a verdadeira vida seria estar naquele baile com um vestido lindíssimo. Essas coisas não se dizem. Por isso respondeu:
- Pois é, está uma noite extraordinária.
Mas, depois, abruptamente perguntou:
- Porque é que me diz essas coisas? Não me conhece, não sabe como eu sou.
- Porque você estava a olhar para a noite em vez de estar a olhar para os vestidos.
- Como é fácil enganar - pensou Lúcia.

Sophia de Mello Breyner Andresen - A História da Gata Borralheira - Histórias da Terra e do Mar

Ricardo para Wings:

“Show me a man who lives alone and has a perpetually clean kitchen, and 8 times out of 9 I'll show you a man with detestable spiritual qualities.”
Charles Bukowski



segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Desafio XXXIII - Resposta

Dizem que há mais nada do que tudo. Dizem que que o espaço entre átomos é maior do que o tamanho de cada átomo em si; que o espaço entre moléculas é maior do que a soma dos tamanhos dos átomos; que as ligações entre moléculas as mantêm a uma distância maior umas das outras do que todos os seus tamanhos juntos; que há mais espaço entre planetas do que o raio de um qualquer sol. Dizem que passa mais tempo num segundo entre movimentos do ponteiro do que o próprio tempo que o ponteiro demora a mover-se; que por muitos ramos tenham as árvores da floresta, há sempre mais espaços do que folhas; que por muitas que sejam as estrelas que furam o céu com a sua luz, a esfera celeste continua a ser um manto escuro.

E têm razão. Por muitas voltas que se dê ao problema, o Mundo é feito de vazios. Espaços em branco. Páginas por escrever. Panos de fundo genéricos. Desenhos em negativo. Hiatos. Lacunas.

And the things you can't remember
Tell the things you can't forget.

Por isso, dizem que devemos aproveitar o ócio, que devemos descansar, viver os momentos vazios da vida em pleno. E assim sentir-nos-emos em comunhão com o Universo oco. Dizem que existe algo de criativo na inacção, que se simplesmente pararmos quietos as ideias cair-nos-ão aos pés como pardais num campo de tiro, abatidos pela monotonia. Dizem que se baixarmos o ruído de fundo das actividades laboriosas com as quais nos entretemos de sol a sol, vamos ser capazes de nos escutar a nós mesmos a gritar desde o fundo das nossas memórias. E aí teremos a razão.

Eu, digo que não. Não quero a razão. Quando é tempo de parar e ficar em casa a reflectir, eu saio disparado e bato com a porta. Quando é tempo de abraçar o ócio como a um velho amigo chegado de viagem, eu dou-lhe um soco na face. Quando é tempo de abrandar, eu acelero, até na via da direita. Quando me contam uma verdade, eu passo-a de volta como uma mentira. As razões passivas mastigadas pelo intelecto pouco me dizem. O meu caminho sou eu que trilho com a força das minhas pernas, sou eu que escalo com as minhas mãos. Para abrir um caminho é preciso falhar, tornar a falhar, e falhar de novo; abrir túneis com dinamite onde antes só existia rocha. Não há estradas direitas nem troços pré-feitos nem nada que se faça bem por um desenho de régua e esquadro. Os caminhos lineares e as respostas que o silêncio nos traz não passam de soluções assépticas, laboratoriais, intocadas pela dura chapada na cara da realidade. É preciso espremer a vida de todas as maneiras possíveis para que ela brote alguma réstia de satisfação ou de gosto.

I can't get no satisfaction
'Cause I try and I try and I try and I try.

Dizem-me muitas coisas, e eu não acredito em nenhuma. Nem quando me pedem para navegar tranquilamente pelos enormes espaços vazios, pelos hiatos e pelas lacunas dos outros; que observe as florestas e os planetas e as estrelas, e veja quanta beleza deles radia. Não me peçam que me afaste; que me acalme; que relaxe. A minha vida é um universo em plena expansão, acelerando até ao abismo que está para além do infinito. E se há tempo que gosto de perder é apenas este, em que nestas linhas escrevo as crónicas do que será sempre o meu grande, eterno falhanço. Falhar é o maior prazer que há na vida.

Desafio XXXIII - Resposta

"It's a long time since I had champaigne."
(Últimas palavras de Anton Checkov)



Desde sempre que na minha cabeça
martela o som das borboletas
ou o rumor imprescindível do conhecimento

E a vida tornou-se nestas asas salgadas
de desejos incontroláveis
Páginas de livros soltas que se esmagam
contra as nuvens

Máquinas vibrantes, fábricas e compotas
de amoras colhidas dos campos
Vidas em corações e em fígados
A correria ainda que estática do tempo.

Mas de vez em quando procurava a reversibilidade
do espelho,
A calma exacta do Universo em equilíbrio.
Aquele momento de consciência que não dói.
Como aquela frescura concreta
Daquele champanhe na minha garganta
polida.
Em que todos os segredos do mundo
são bebidos.


Sempre quis morrer de madrugada
Quando tudo começa.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Desafio XXXII- Resposta

O meu amor tem duas vidas para amar-te
Por isso te amo quando nao te amo
e por isso te amo quando te amo



Há momentos em que não te amo. Em que te desprezo, em que fluis na direcção contrária à minha. Em que me entorpeces os músculos. Em que os meus cigarros parecem flores ao pé do teu hálito.

Nesses momentos pondero silenciosamente colocar as minhas mãos no teu pescoço e com uma carinhosa maldade ver-te deixar a minha vida. Expurgá-la das tuas ideias e das tuas não-ideias que não deixam um centímetro de vazio dentro de mim. E eu gosto de uma boa explosão no vácuo do meu cérebro de vez em quando.

E vejo-te a desaparecer do meu horizonte com toda a minha solidão espalmada. A plenitude da minha tristeza mais áspera do que agressiva a crescer-me pelo corpo. A mágoa do meu destino infeliz enraizada nesta ideia de que ele é infeliz.

Sempre foi assim, eu sempre fui esta pessoa triste. Demasiado igual aos outros para conseguir argumentar a sua diferença. Demasiado só.

E demasiado qualquer coisa para mudar o que quer que seja. A vida feliz e o céu azul são pedaços esporádicos duma vida que espreito pela janela, mas que nunca poderá ser minha. Que nunca quero que seja minha.

E quando quebras este meu amor desmiolado, eu sinto a urgência feroz de um contra-amor que destrua tudo.

Mas o meu destino é tão infeliz, que nos meus poucos momentos lúcidos compreendo que não há altura em que te ame mais do que esta, em que não te amo.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Desafio XXXIII

Alice in Wonderland para Wings:


"A questão de as leis da matemática estarem relacionadas com a realidade não é uma certeza; o estarem correctas não faz com que estejam necessariamente relacionadas com a realidade."


Albert Einstein



Ricardo para Alice in Wonderland:

"It's a long time since I had champaigne."
(Últimas palavras de Anton Checkov)


Wings para Ricardo:


" O tempo que gostas de perder nao é tempo perdido"

Bertrand Russel

Desafio XXXII- Resposta

Tu mentes e às vezes a mentira é inocente, é ingénua. Ás vezes a mentira é uma ilusão que gostavas que fosse verdade. Tu mentes as vezes para não teres a consciencia bruta de que o fogo consome a tua existencia, de que vai consumir a tua vida. Entao mentes, talvez procures mais tempo para descobrires como consertar-te. Talvez queiras acordar já queimado e desfeito e dedicaras-te a lamentar e a sobreviver.
Mas não ele. Bem, talvez procure enganar-se tanto como tu ( não tentamos todos?). Talvez tambem seja invadido por esse conceito de um melhor ideal que sustenta a mentira mais simples. Mas tem momentos de dura lucidez, de consciencia em estado cristalino e bruto. E apercebe-se que mente, mente para fugir à dor. Tenta enganar-se a si proprio para não descobrir que é um animal civilizado. Mais, que somos todos isso. E quase endoidece e depois apercebe-se que é a verdade que o endoidece, a realidade irrefutavel. Ao menos que fosse a mentira a trai-lo. E ele perde-se na traição cuja ignição foi a cobardia legitima dele. E entao pega na folha de papel a sentir-se doido. Não, doido não. Louco. Absolutamente louco. E escreve, escreve até a verdade que o traiu por ser demasiado feia em comparação com a mentira tao bela sair da pele dele. Da mente. Da consciencia aguda .
Tu mentes e esperas que a mentira te consuma, esperas que essa ilusao se apodere da tua vida e que a queime. Quando acordas para lavares o rosto em vergonha já é demasiado tarde. O fogo já consumiu tudo e tu nem sabes quem é a cinza que inicou o processo.
Ah mas ele sabe. Foi aquela fracção de segundos em que teve consciencia que a verdade enlouquecia.Aquele momento curto e singular em que se apercebeu que teria sido mais facil se nunca tivesse cedido a tentaçao da mentira salvadora que é sempre ilusao. E escreveu, escreveu sobre os pensamentos à flor da pele. E libertou-se porque desmentiu a verdade crua e incisiva que vive em qualquer boa mentira.
Tu mentes e queres convence-lo de que ele e tu são iguais. Mas ele nada tem que ver contigo, separa-se no momento em que escreve. Porque ele é um poeta e tu não passas de alguem que não aguenta e suporta ser quem é. Mas ele é um poeta, quando a vida arde irremediavelmente, a poesia magnifica que escreve em momentos que se sente louco é a cinza desse fogo clarividente. É nesse momento que descobre que não é louco, minimamente. Quando tudo o resto arde, a poesia é a evidencia elegante da vida. É a pequena cinza irrefutavel que tu não consegues descobrir em ti porque preferes uma mentira boa a uma verdade dura.

domingo, 15 de agosto de 2010

Desafio XXXII - Resposta

Aquela folha caiu-me algures entre as páginas dos melhores destinos de férias para o Verão e as páginas contendo os mais apetecíveis preparados refrescantes para refeições leves. Era um pedaço de papel gasto, em folha pautada. Olhei em volta, não sei se desconfiando estar a fazer algo ilícito ou se para me certificar que não era uma brincadeira, e baixei-me para o elevar do chão por baixo da minha cadeira de aeroporto. Decidi guardá-lo no bolso do casaco e aproximar-me do terminal do meu voo, pousando pelos caminhos amplos de Orly a revista francesa que o albergava numa prateleira de revistas.

Estava já a muitas milhas do solo quando o desembrulhei. O papel era frágil. Vários riscos e palavras enfeitavam-no em toda a sua extensão. Havia muitas datas, nomes de locais. Nenhuma área ficara por preencher, dir-se-ia mesmo que eram as zonas brancas a traçar os padrões pelo meio da tinta colorida em fundo. Numa caixa bem identificada, em torno da qual todos os outros riscos partiam, um texto escrito a azul brilhante chamava a atenção.

“One love can be bigger than the World if it’s worth more than its own context. But if one love is bigger than countries, bigger than families, bigger than ideologies, bigger than jobs, then it needs to fly away. One such love is not enclosed in artifacts, or even in its own memories. To save something that reminds one such love means that the possibility is there for it to be forgotten. But one such love is forever. One such love spreads, expands, and touches everything and everyone. And one such love may even burn out in the hearts of the two people where it was born, and still it will not die.
We ask you to be the airplane that flies this great love. Make sure this letter never stops travelling. Don’t keep it, but don’t pass it to anybody else either. Just let it be found by whoever it wants to be found. Because true love also happens that way.”

Senti que devia rir. Mesmo sendo bem mais criativa, não passava de uma evolução no correio electrónico em cadeia, na correspondência do tipo “envia-me a 10 pessoas e encontrarás a felicidade”. Mas não ri, talvez por ver ali tão explícito o número de pessoas cujas mãos tocaram aquelas letras e cujos espíritos se sentiram tocados pelo conteúdo. Quando recebo uma mensagem que me pede para ser reenviada, quase literalmente um vírus ao propagar-se, ela não me revela quantos hospedeiros já habitou. Aqui, no entanto, estavam todas as datas, os nomes, os locais, tantas vezes com pequenas mensagens pessoais, em tantas, tantas línguas. Identifiquei dezenas de nacionalidades, centenas de caligrafias, mais centenas de simples riscos bem no final do verso da página, quando o espaço claramente já se havia extinto para escrever algo com nexo. Guardei-a no bolso e no espírito. E assim cheguei ao aeroporto onde a minha namorada me esperava.

Não lhe falei na carta. O meu espírito prático e a minha visão desprovida de floreados e romantismos bacocos foram sempre o que mais a atraiu em mim. Sobretudo por ela ser tão diferente, sempre com um “amo-te” colado à boca. Sentia que o facto da carta, de alguma maneira, ter perdurado no meu pensamento e ter-se mantido no bolso do meu casaco, iria desiludi-la. Iria fazer-me parecer demasiado com ela.

Os presentes que lhe oferecia já eram concessão demasiada. Uma concessão que me habituei a fazer, tranquilamente. Com um contentamento orgulhoso, já em casa, estendi-lhe o meu presente de viagem. Estava embrulhado em papel dourado, impecável. Lá dentro, um pequeno globo escondia uma Torre Eiffel mergulhada em água e em pequenas partículas brancas, simulando neve. Era a minha pequena evocação de Paris, onde estivera em trabalho. Era um túnel escavado na memória da cidade onde nos conhecemos ainda como estudantes. Era a nossa saudade daqueles tempos de amor sôfrego, de devoção completa ao outro. Era o amor submerso em paixão, perfeitamente misturados como dentro daquele globo que ela agora agitava.

Nos seus olhos não vi gosto, alegria nem interesse. Mas também não vi desgosto. Vi apenas o notório desinteresse do costume, coroado por um abraço fraco e um ténue “obrigado”. Pegou no globo, sorrindo distraída, e colocou-o na estante que nos ocupa toda uma parede de casa e onde ela colecciona todos os artefactos que nos marcaram em cada momento, todas as cartas que trocámos, todas as fotografias de todos os sítios onde já estivémos. Um estranho seria capaz de reconstruir o nosso amor estudando aquela estante. Voltou-se, abriu mais o sorriso e disse-me: “amo-te”.

E eu relembrei-me da carta, e perguntei-me se um amor que se recorda constantemente de si mesmo pode ser amor de todo. E questionei-me, como quem dá já uma resposta, se o armário das nossas recordações seria, para ela, uma forma de garantir que o nosso amor viveria nas nossas memórias muito depois de se extinguir nos nossos corações. Mas talvez um sentimento que se recorda seja um sentimento que esquece. É um sentimento que nunca se corporiza em algo exterior ao seu próprio contexto, e por isso é meramente circunstancial, não se pode dizer que tenha propriamente existência. Não se pode dizer que seja amor. E perguntei-me se foi por isso que aquele casal escreveu aquela carta e a pôs a correr o Mundo. Perguntei-me se eles saberiam algo que eu nunca soube. Se amariam de uma forma que eu não sei amar.

No dia seguinte, fui ao aeroporto. Abri uma revista portuguesa e coloquei cuidadosamente a carta, no mesmo estado em que a encontrei, algures entre as páginas dos melhores destinos de férias para o Verão e as páginas contendo os mais apetecíveis preparados refrescantes para refeições leves. Voltei para casa, e nunca mais pensei no assunto.

sábado, 14 de agosto de 2010

Desafio XXXI- Resposta

O amor corre-lhe nas veias misturado com o proprio sangue. Flui no espirito dele desde que se lembra de quem é ele, do que é ele. O amor é a sombra que o acompanha quando não há Sol , o amor é a solidao que existe tao docemente entrelaçada com o coraçao dele que nunca o deixa só. O amor que o torna individualista, que o deixa só garante que nunca vai ter uma morte vã e triste . Porque o amor , este amor, define-o.
O amor era descontrolado, era fugaz. Ouvia-o como eco das suas proprias palavras, ouvia-o nas ausencias de respiraçao, oferecia ao silêncio uma voz aromatica e fresca. Às vezes fugia do sentimento de paixao, daquela sensação de existir em plenitude, de ser feliz, de ser ele. De estar cheio, de ter o ego realizado. E daquela paz que o invadia , ate os musculos mais cansados se relaxavam. Os problemas deixavam de existir. O tempo tornava-se irreal. A vida quotidiana perdia importancia só importava ele. Ele e o seu amor, entrelaçados num gesto invisivel tao explicito que passava despercebido. Só existia ele e aquela paixao que o dominava sem oprimir quem era ele. O que era ele. Porque ele era este amor intenso e sensorial, quase animalesco, quase violento. E, no entanto, tao sublimemente doce e belo, tao fragil e tao efemero. Tao sedutor por quebrar a envolvencia bruta do mundo.
Às vezes fugia deste amor. Só para lhe ter saudades, só para não o gastar. Só para não correr o risco de o banalizar. Ou de o compreender demasiado bem. Por isso escondia-se ate as saudades lhe secarem o sangue. E entao numa fracção de segundos ele abria muito os olhos e esgueirava-se pela cidade, procurando o caminho mais rápido e mais sinistro. Porque o amor, esta paixao descontrolada que nasceu com ele, quando o encontrava suavizava-lhe o peso da existencia.
O amor corre-lhe nas veias, sempre passeou longamente pelo cais. Para ele qualquer mar é diferente, qualquer mar tem personalidade. Tem uma cor diferente, uma espuma branca com outra tonalidade. Um cheiro a sal com nuances, ele não sabe explicar só sabe sentir é por isso que é tao bom. Tao purificante.
Observa os veleiros, memoriza o corte que deixam na agua. Ouve o som da sua propria respiraçao tao bem compassada com a natureza circundante. Senta-se no cais, ao lado do mar a deixar-se invadir por aquele sentimento de poder . Poder de ser qualquer coisa, sentir qualquer coisa. Qualquer coisa é possivel porque ele esta em paz. Ali, ao lado do mar, todas as reflexões, todos os pensamentos perdem importancia. Só sente, ele. Só tem percepções que lhe relaxam os musculos, que lhe adoçam o espirito. Tudo é possivel. No cais, com o clima de sal e espuma branca, ele é ele . Não pensa sobre quem é mas sobre o que é. E é isto, um eterno amante do mar. Do azul infinito e do som agradavel da agua. Da visao dos veleiros a deslizarem tao elegantemente pela agua. Ele é este ser.
E às vezes, quando o amor se torna violentamente intenso ele atravessa a praia e alcança o promontorio. Vê um conceito de fim do mundo, vê um conceito de principio, porque foca-se sempre no mar e não na terra. Vê o inicio onde só existe o fim. Vê a infinidade azul , vê o paraíso. Vê o seu proprio ser reflectido no extenso mar azul fino. E a forma como o mar se move é o reflexo de todas as sensaçoes e percepções que lhe rasgam a pele sem a romper. Estão em perfeita sintonia , desde a onda mais violenta à onda agradavel, suave e meiga.
O amor corre-lhe nas veias. Não sabe quem é, esta em continuo movimento. Mas sabe o que é quando esta no cais e o mar se torna no seu reflexo , na sua imagem. Um ser indecifravel que vive daquilo que sente, daquilo que deseja ser para permanecer em harmonia consigo mesmo. O ser que tem esta paixao maritima entrelaçada com as memorias passadas que definem o que é.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Desafio XXXI - Resposta

A busy life is a wasted life


Faço isso muitas vezes. Sento-me nas estações de metro e deixo-os passarem.

Hoje é um dia particularmente quente. Levo a mão ao peito e sinto restos de um coração que se está a derreter. Hoje, deixei-me ficar na estação e passaram todos os metros por mim. É assim que o mundo se inverte e que de certeza sou eu a passar pelos metros e pelas pessoas que me espreitam.

Hoje deixei-me levar pelos metros que foram passando. E esqueci-me da hora. E o coração começou a derreter.

Normalmente, costumo viajar por toda a cidade. Normalmente, aceito desafios para ocupar a mente e me esquecer das coisas em que penso quando me sento nos bancos do metro. Normalmente até faço desporto. Até aprendo línguas. Normalmente até vou á universidade. Normalmente até vou ao ginásio ou ao curso de teatro.

Normalmente até tenho uma vida ocupada. E chego a casa à noite e estou tão cansada que adormeço sem saber quem sou. E quando acordo de manhã, entre a pressa das gotas do duche, vou olhando para a casa e reconhecendo os contornos de uma mobília que já não me lembro que comprei.

Mas como o meu coração nasceu gelado, esta eficiência tem de ser quebrada de vez quando. Porque é para isso que ela serve, para ser quebrada. E entre as finas frestas de gelo da minha vida ocupada, nascem estes momentos de verdade nas estações de metro. Estas ilhas de consciência num mar de ócio de ocupação. Onde está a vida e o seu coração futurista.

A minha maior qualidade sempre foi a minha tendência para a ineficiência.
Só que hoje abusei dela e o meu coração quase derreteu.

Desafio XXXI - Resposta

Tenho momentos em que, deitado na cama ou sentado em qualquer posição de ócio, fico somente contemplativo perante as veias salientes das minhas mãos que tremem. Veias por onde escorrem rios subterrâneos que um dia, não muito longe daqui, secarão. A juventude esvai-se pelos poros que engrossam e pelas ossos que enfraquecem. As ideias esgotam-se quando a terra puxa pelo corpo, e já nem a morte é futuro, mas sim um presente cada vez mais intenso.

Tenho momentos em que me tento mexer. Mas o próprio movimento já só me é permitido em dois sentidos: de pé para o chão, e da cama para a cadeira. Sinto-me um fantasma preso a um Mundo que o expeliu, aprisionado numa existência espectral que atemoriza os que ainda não a sentem próxima, mas demasiado empedernido para mudar. A impotência física, que me tolhe e me dá um certo desespero de abandono, não rivaliza jamais com a impotência para pegar nesta pele enrugada, quase transparente, e transfigurar-me. Nasci um tronco, avistei em frente ramos de possibilidades, escolhi um, e agora aqui estou, uma folha amarelada que olha para o caminho feito atrás enquanto espera pelo final do Outono, por cair à terra e ser enterrada juntamente com o lixo dos vivos.

Tudo o que a moleza do corpo e do pensamento ainda me permite nesses momentos, é recordar carinhosamente as pessoas que fui. Recordo como fui múltiplo em tantos momentos, e quantos sentimentos habitaram este corpo resignado ao cansaço. Recordo com especial saudade a pessoa que era quando a minha mulher se apaixonou por mim. Por ela, estiquei-me até ao melhor de mim. E a ela, que ainda hoje se deita ou se senta junto com a minha figura de papel, toco no braço e pergunto quem é. Eu sei quem ela diz ser: ela diz ser a mesma que foi nessa altura. Mas eu questiono sempre como pôde ela amar um homem jovem e irrequieto, que raramente se detinha em momentos de contemplação, e agora amar este velho imóvel, este monumento vivo da sua própria vida. E digo-lhe que eu não a amo. Que quem eu amo é a mulher que também ela foi quando a paixão nos visitou. Como posso reconhecê-la se a sua face é outra, a sua voz é diferente, se é agora tão menos livre nas ideias e nos pensamentos, se os seus actos são já os de outra? Quem eu amava era a outra, não esta. Por muito que ela me diga que são uma só.

E medito um pouco sobre esse sentido de identidade que nos faz ligar todas as pessoas que fomos, e chamar a esse elo o “Eu”. o “Eu” é uma mentira. Não somos senão uma colecção de personagens fingindo que a vida é permanente e contínua. Mas a vida é provisória. A vida é um soluço.

E no fim desses momentos, num suspiro da consciência, adormeço, e logo salto de regresso à casa da partida. Vejo-me sugado para uma realidade mais sensível e deparo-me com a visão das minhas mãos animadas pelo pleno vigor da juventude. A velhice, em mim, é um fantasma de mim mesmo. Um fantasma que chegou antes do seu tempo devido, para me assombrar só a mim. Afinal, estou no tronco, e até conhecer a idade que me atemoriza haverá ainda muitos ramos por onde escolher. Por agora, vou imaginando como será esse fantasma, na certeza porém de que, quando lhe vestir a pele flácida, serei já outra pessoa que não eu mesmo. Afinal, a velhice para mim é transparente, e não lhe adivinho mais do que os contornos mais simples. Mas tê-la sempre presente ajuda-me a nunca me julgar uma tábua onde estão e sempre estarão escritos os mesmos sentimentos e pensamentos.

Quem me amar, que me ame hoje. Amanhã será outro a ocupar o meu corpo.

Desafio XXXII

Wings para Alice in Wonderland:

Saberás que nao te amo e que te amo
pois que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa de silêncio,
o fogo tem a sua metade de frio.

Amo-te para começar a amar-te
para recomeçar do infinito
e para nao deixar de amar-te nunca:
por isso nao te amo ainda.

Amo-te e nao te amo como se tivesse
nas minhas mãos a chave da felicidade
e um incerto destino infeliz.

O meu amor tem duas vidas para amar-te
Por isso te amo quando nao te amo
e por isso te amo quando te amo.

Cem Sonetos de Amor, Pablo Neruda



Alice in Wonderland para Ricardo:

"Conservar algo que possa recordar-te seria admitir que eu pudesse esquecer-te"
William Shakespeare


Ricardo para Wings:

Poetry is just the evidence of life. If your life is burning well, poetry is just the ash.
Leonard Cohen


quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Desafio XXX- Resposta

Provavelmente esta diferença conceptual existirá em nós até ao fim. Dois seres com duas percepções de fracasso diferentes.
O meu erro é evidente, é explicitamente cru. Tenho no peito um ego faminto por uma novidade que não perca o encanto , que nunca se torne numa rotina vazia de um velho ideal arruinado pelo conceito maduro de envelhecer. E este ego sedento de uma agua que me mantenha vivo orienta-me para esse mundo relativo onde se falha sempre, inevitavelmente. A dinamica que procuro impõe a derrota para que a vitória possa ser em plenitude, digna e timidamente magnanima.
Mas o teu erro é discreto, é pequeno quase insignificante. Vives nesta realidade onde ser feliz é saber ser ignorante e ignorar a subtileza de existir e persistir sempre que respiras. Nunca pensaste em sentar-te , paciente e calmo à beira-mar e contemplares o azul profundo infinito e salgado? Nunca desejaste respirar fundo, sem tristeza ou revolta, sem mágoa ou ressentimento e observares um pormenor interessante que te escapa no quotidiano padronizado? Alguma vez sentiste o mar salgar-te a pele e sorrires por estares aqui, vivo sem preocupações sobre qualquer futuro , indefinidamente indefinido, ou sobre qualquer passado cheio de arrependimentos incertos e imprecisos? Nunca desejaste fugir porque te apeteceu não estar aqui apenas, nunca quiseste fugir para sitio nenhum? Alguma vez sentiste no teu ego um desejo de seres genuinamente condescendente e encontares em ti a coragem para desculpar porque, intrinsecamente, apercebeste-te que és ninguem para julgar e perdoar . Também tu cometes inumeros erros, so os desculpas porque os entedes.
Não. Nunca quiseste nada disto, nunca quiseste esta felicidade ou esta moderação epicurista de existir. Na verdade, a tua compreensao das minhas palavras fica-se pela dedução logica da compreensão literal que fazes.Sentes nada.Imaginas nada.
O teu erro é teres um coração grande e uma fraca e doente imaginação.E onde não existe esta imaginaçao activa e descontraída , não nascem novas ideias, novas perspectivas. Depois perdes a esperança e afundas-te no teu ser sem te aperceberes que te afogaste.
Eu erro. Oh Deus tenho na pele marca de inumeras cicatrizes que poderia ter evitado, talvez. Mas depois sento-me à beira-mar, observo a textura salgada da agua. O meu espirito purifca-se, torno-me nesse ser feliz e complacente. Onde não existe passado ou futuro.Vivo o presente. E o agora é sublime. Não ha tristeza porque sei o que sou.
Temos erros diferentes. Mas eu descanso do meu, se não sabes qual é o teu como é que podes sentir-te feliz ao saber que ele é uma sombra que nunca dás pela presença?

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Desafio XXXI

Alice in Wonderland para Wings:

"Mas ele vinha muitas vezes até à pequena vila costeira e, esgueirando-se pelas ruelas, caminhava ao longo do caís, ao lado de botes e veleiros, atravessava a praia e subia ao extremo do promontório.
Ali, no respirar da vaga, ouvia o respirar indecifrado da sua própria paixão."

A Saga - Histórias da Terra e do Mar- Sophia de Mello Breyber Andresen



Ricardo para Alice in Wonderland:

"A busy life is a wasted life."
Francis Crick


Wings para Ricardo:

Já sobre a fronte vã se me acinzenta
O cabelo do jovem que perdi.
Meus olhos brilham menos.
Já não tem jus a beijos minha boca.
Se me ainda amas, por amor não ames:
Traíras-me comigo.


Ricardo Reis