quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Desafio XXXIX

Alice in Wonderland para Wings:

"aqueles que têm nome e nos telefonam

um dia emagrecem - partem
deixam-nos dobrados ao abandono
no interior duma dor inútil muda
e voraz

arquivámos o amor no abismo do tempo
e para lá da pele negra do desgosto
pressentimos vivo
o passageiro ardente das areias - o viajante
que irradia um cheiro a violetas nocturnas

acendemos então uma labareda nos dedos
acordamos trémulos confusos - a mão queimada
junto ao coração

e mais nada se move na centrifugação
dos segundos - tudo nos falta

nem a vida nem o que dela resta nos consola
e a ausência fulgura na aurora das manhãs
e com o rosto ainda sujo de sono ouvimos
o rumor do corpo a encher-se de mágoa

assim guardamos as nuvens breves os gestos
os invernos o repouso a sonolência
o vento
arrastando para longe as imagens difusas
daqueles que amámos mas não voltaram
a telefonar"

Sida, Al Berto


Ricardo para Alice in Wonderland:

(Gustave Courbet, L'Origine du monde, 1866)

Wings para Ricardo:



Sob a leve tutela
De deuses descuidosos,
Quero gastar as concedidas horas
Desta fadada vida.
Nada podendo contra
O ser que me fizeram,
Desejo ao menos que me haja o Fado
Dado a paz por destino.
Da verdade não quero
Mais que a vida; que os deuses
Dão vida e não verdade, nem talvez
Saibam qual a verdade.

Ricardo Reis, in "Odes"
Heterónimo de Fernando Pessoa

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Desafio XXXVIII - Resposta

Algum desgosto prova muito amor mas muito desgosto revela demasiada falta de espírito



Lembro-me perfeitamente do dia em que ouvi contar a história dela. Era um dia de Primavera, apetecível como algodão doce. Sentei-me no banco do jardim a observar aquele pequeno Mundo tão feio ao lado da minha esperança de que em algum lugar ele fosse bonito.

E conheci-a há muito tempo. Era uma velhota simples, com um andar arrastado, umas gargalhadas bem-dispostas de mais para quem é velho antes do tempo. E quando ela passou, naquele dia, voltei a fixar-me nela, talvez porque ela fosse um Mundo feio que já albergou em tempos uma esperança de beleza.

E talvez porque fixei de mais os meus olhos no traço de caminho que ela fazia ao atravessar a rua suja, surgiu uma voz no fundo da minha cabeça, que recordei mais tarde. “Sabe, ela nunca se recompôs, foi um choque para todos nós, mas ela, ela nunca se recompôs verdadeiramente. Sabe que ela é muito mais nova do que parece?” Rodei alguns graus, e subitamente uma cabeça tapou o meu sol de Primavera. “Conhece-a?”, perguntei. “Toda a gente a conhece aqui”, disse a voz impaciente, destapando o sol e sentando-se ao meu lado no banco. “Sabe aquelas histórias de filmes, que parecem impossíveis? Não são. Aquela senhora que viu passar foi abandonada pelo noivo no dia do casamento, quando tinha dezoito anos. Foi aqui mesmo, na igreja lá de cima” e olhou para mim. Mas eu fitava o rasto do caminho que ela tinha deixado, um rasto triste e sujo como o sítio. E a verdade desceu sobre mim, porque a realidade era essa e é isso que os filmes não contam: as histórias tristes acontecem em sítios feios e sujos e cheiram mal.

O meu coração contraiu-se pela vida desgastada e desperdiçada que atravessara aquela rua. E antes de arquivar este caso na minha cabeça, perguntei-lhe “Ela nunca se voltou a casar? Nunca se voltou a apaixonar? Nunca?” E a voz encolheu os ombros e de novo, respondeu aquilo que já tinha dito, que ela nunca se recompôs. Que o noivo a deixou, à porta da igreja.



E foi assim que me esqueci dela. Ironicamente, não demorou muito até que eu encontrasse a beleza pela qual tantas vezes suspirara. O amor e as vertigens vieram nas asas do vento, sopravam do estrangeiro e bateram na minha janela com estrondo. Agarrei na mochila que já tinha feito anos antes e saltei pronta para recolher a essência destilada da flor mais perfeita. E o Mundo revelou-se perfeito, com todas as pétalas abertas, vigorosas, coloridas. O Mundo era sonoro e vibrante, longe daquele lugar sujo e decrépito onde se morria em bancos ou à procura de uma brisa que sabia a algodão doce.

E fugi. Fugi com o meu amor para um lugar onde a electricidade se bebia ao pequeno-almoço. E onde à noite, trincávamos a Lua, trocando de lugares no grande labirinto de espelhos. Dávamos as mãos e separávamo-nos em seguida, respirando intensamente para imagens desfocadas, vários “nós” difusos que por ali vagueavam. E fizemos amor ali, deixando de saber quem éramos. Foi quando nos perdemos que encontramos a essência única e irrepetível. O sabor primeiro, doce e amargo de tão efémero. E nesse momento, sentimo-nos na ponta do Mundo. Como se tivéssemos nos nossos corpos a chave para aquele sítio misterioso do Mundo que só existe por segundos breves, uma vez na vida.

E por isso, quando um dia a porta do labirinto se fechou e não mais senti electricidade no meu corpo, que voltei para trás, coberta de uma vergonha pegajosa. A minha mochila pesava-me como pedras e sentia a boca seca, como se tivesse atravessado um deserto cheio de miragens. Olhei para a minha janela, e fechei as portadas. Deixei a escuridão entrar no meu quarto e deitei-me na cama.

Nos meses seguintes, por várias vezes sonhei com aquele labirinto. Mas quando acordava, os móveis toscos e uma realidade com cheiro a mofo envolviam-me. Sentia os olhos molhados e voltava a deitar-me, agarrava-me com força à almofada e esperava que o sonho chegasse de novo. Ainda que não fosse verdade, era melhor do que a verdade.

E só os sonhos, só uma realidade que já não existia, me fez correr sangue nas veias. De resto, perdi a capacidade de ter esperança e com isso, o mundo feio onde vivi relevou-se em toda a sua tímida e crua realidade, onde o algodão doce é demasiado doce para não ser enjoativo. E quando me obrigavam a levantar da cama, levantava-se um nevoeiro em mim. Porque tudo aquilo era demasiado pouco, demasiado repetível, para quem já tinha tido no corpo a primeira chave. A única, a irrepetível. A que se perdera e para qual não haveria volta. Porque quando me obrigavam a levantar da cama, eu sabia em todos os meus poros o que era a morte.

E um dia desistiram de mim. Deixaram-me, como se deixa um corpo em coma, ligado á máquina. Com o passar do tempo, fui comendo e bebendo para não deixar a minha carcaça apodrecer. Com o tempo, fui-me levantando e habituando àquele nevoeiro constante e à morte que vinha com ele.

E assim, um dia fui capaz de me arrastar da cama até ao banco do jardim. Deixei um rasto triste e sujo atrás de mim. Quando me sentei, ela voltou a passar à minha frente, no passo arrastado que eu agora tão bem conhecia. Agora também eu era uma história de filme, horrorosa e decrépita, feia e triste. Agora também eu definhava sem qualquer propósito, engolida por uma tristeza solitária que desaparecia da minha lápide mal chegasse a primeira chuva. Porque ela era eu.

Só nunca contei que me amasse tanto a mim mesma. Por isso, quando ela desapareceu eu resolvi fazer a minha história, realizar o meu filme, fabricar uma nova chave, decidir quantas vezes é que se atinge o inatingível do Mundo. Decidi mudar as regras, já que não conseguia cumprir as que existiam. E por isso, esvaziei as pedras da mochila e saltei da janela. Desta vez, sem ilusão nenhuma, levava comigo a determinação de fabricar o mundo à minha maneira. E nenhum amor conhece esse poder.

Desafio XXXVIII - Resposta

A vida é escorregadia. Se pisamos num chão incerto, enregelado pela frieza das lágrimas e da solidão, deslizamos sem fim. O gelo resfria-nos os ossos e enrija-nos a ternura.

Estávamos ambos resignados em deslizes sucessivos quando os nossos corpos chocaram e se colaram. O fogo que ateámos foi tanto que, brincando, até a nós queimou. Olhámos em volta, e não havia mais nada senão a nossa luz a iluminar o Mundo, de repente mais colorido. A calçada portuguesa por onde dançámos ficou chão em brasas, e cada memória era uma pedra incandescente.

A vida tinha tons de rosa.

O problema é que neste Mundo nenhum movimento é perpétuo, nenhuma luz se conserva, nenhuma energia se auto-alimenta, nenhum perfume se concentra. Não poderia durar.

Muitos anos passaram. O anjo da morte do amor, tão negro e opressivamente omnipresente como aquele que rouba o sopro aos vivos, corria atrás de nós. Ele veio pelos nossos suspiros. Era urgente correr. Se ficássemos parados ele apanhava-nos, deixava-nos cicatrizes, cortes nos braços feitos de queimaduras de cigarro.

Por isso, peguei-te na mão e apressei-me para o aeroporto.

Levámos na bagagem o nosso amor de bem-querer e a nossa saudade deslocalizada. Sentados no avião, parecíamos caminhar pelo ar, desejosos do futuro e sedentos por sonhos.

E estivemos tão perto de o conseguir. Se pelo menos não tivéssemos desenhado a imprevisibiliade a régua e esquadro, talvez tivéssemos ido a Paris mudar de pele. Mas não. Fomos sempre nós. O monstro dormia cá dentro.

Nós sabíamos ao mais pequeno detalhe de que forma Paris nos surpreenderia. Fomos em busca de acordeões nas janelas e cheio a croissants entre as árvores. Mas quando saímos em Orly o chão queimou-nos os pés. Afinal, a música ainda soava a elevador e o ar ainda tresandava a esturricado. O teu peito colapsou perante tamanha expectativa. A realidade era um pequeno comprimido que trouxéramos de Lisboa na mala e nos obrigavam agora a tomar à chegada. A realidade começou logo a fazer efeito.

Cozinhámos os dias em lume brando. Convertemos os acordeões em música de bar, e aceitámos pão com chocolate no lugar de croissants. Caminhámos de mãos dadas por ruas estranhas repletas de nostalgia. Visitávamos todos os museus dos nossos primeiros dias, quando semeámos a semente de Paris nos nossos desejos. Neles estão expostas as nossas obras-primas, recolhendo pó. Porque em tempos fomos grandes artistas, pintando nos corpos um do outro traços auspiciosos. Os nossos sonhos e os nossos instantes de perfeição estavam tão cristalizados na nossa História, que naquela altura pensei que talvez tivéssemos sido os primeiros a pisar o Sol. Um pequeno passo para um homem como eu, um passo gigante para uma mulher como tu.

Mas a memória é velha, e pouco se mexe. Nessa altura, até a palavra amor começou a cansar. Esse foi o momento em que nos amparámos na lealdade para não cair no esquecimento. Paris tinha que se esgotar antes de nós.

Paris.

O lugar onde guardámos a inocência de julgar que algum dia faríamos daqueles primeiros momentos de Arte o nosso pleno quotidiano. Agora, finalmente lá, manchávamos o sonho com lágrimas. Já nenhum de nós sabia sequer porque chorava. Parece ridículo lavar-se assim medos e mágoas quando devíamos estar a espremer a vida, exigindo-lhe mais algumas gotas de gosto de viver. Como um perfume requintado obriga a torturar nas flores tanta beleza, assim também nos vemos obrigados a triturar pessoas e cidades em troca de uma simples amostra do rosa da vida. E também como qualquer fragrância, também em pouco tempo se dissipa a felicidade aguda. E depois estamos de volta ao nosso inferno gelado. E depois acordamos num quarto de hotel e com um anjo negro dormindo enroscado ao fundo da cama.

Na última noite, torcemos o ar de Paris, sôfregos por algumas gotas de esperança. Caminhando, unimos pontos do mapa da cidade como uma criança desenhando bairros e colorindo telhados laranja, desdobrámos os interesses e gostos de ocasião, levantámos e sentámos em bancos e passeios públicos. Cada novo sítio, cada nova face, era uma última oportunidade de bater a uma porta e perguntar onde está o amor que nos tocou à campainha e fugiu.

Demos por nós numa pequena loja de recordações em Montmartre. Perfilavam-se pequenos pedaços de lixo com um preço agarrado. Submergi no seu colorido disforme e perdi-te o rasto.

Por um instante, esqueci-me efectivamente que também te encontravas no Mundo. E, como uma corda, lançaste-me uma melodia que me içou de volta até ti. Com os teus dedos pequenos, mexias uma alavanca curta que, com a mesma cadência, fazia soltar-se notas soltas de uma pequena caixa metálica. E foi como se tivesses movido alguma alavanca curta no meu coração. Fizeste com que belas notas se soltassem dele também. Podia escutar, ao longe mas cá dentro, em alguma janela aberta da memória, Edith Piaf a cantar que, pelo amor, a vida se transforma numa flor. Nos teus braços a vida é rosa, uma rosa, ou cor-de-rosa.

Afastei-me, quis ver-te ao longe sem que te desses conta. E tu, olhando atenta para a caixa, com um certo fascínio inocente, repetias o gesto ininterruptamente. Quase te incentivava a fazê-lo, a que mantivesses suspenso aquele instante de beleza extrema. “Finalmente encontrámos Paris”, apetecia-me dizer-te. Eu era a tua serpente. Encantavas-me deliciosamente. Nunca te amei tanto como naquele momento.

Chorei nesse momento. Fez-me confusão como algo tão simples podia criar um canal de comunicação entre duas pessoas. É o poder da música. Éramos os dois bonitos, grandiosos, poéticos, dentro daquela loja feia, pequena, prosaica, que estava numa cidade bonita, grandiosa, poética, que está num Mundo feio, pequeno, prosaico.

O Mundo. O sítio onde nada dura. Uma imensidão de desilusão.

Naturalmente, paraste. O silêncio cortou a magia, e quando te moveste para pousar a caixinha de música eu vi-o atrás de ti. O anjo da morte do nosso amor não desistia de nós.

Abracei-te com força quando saímos da loja.
Não para te fazer sentir a força com que o teu cheiro aperta o meu coração, mas antes para me despedir. Assim como te despediste de mim tão poucas semanas depois de, caminhando pelo ar num banco de avião, termos regressado à calçada portuguesa, então amorfa e morna.

Um ano passou. Fui capaz de regressar a Paris sozinho. Fui capaz de regressar à mesma loja de recordações. Fui capaz de pegar na mesma caixa de música, com a mesma melodia. Não a comprei. Mesmo sendo barata, senti que devia roubá-la. Fui capaz de a colocar no bolso. Fui capaz de a trazer. Fui capaz de te oferecer. Fui capaz de te surpreender. Não contavas que eu tivesse partilhado aquele momento de perfeição contigo. Nunca me viste lá nesses momentos, porque eu vivi-os contigo na sombra.

E assim para a sombra me retirei, e não mais te vi. Tornaste-me incapaz de chorar e fizeste muito difícil rir. Gastei todas as lágrimas contigo, assim como gastei as poucas gotas de felicidade que resgatei. Mas ainda não gastei o perfume de rosa que o teu amor me deixou. Ele é tão abundante que eu penso que me chegará para a minha vida toda. E tenho a Edith a cantar para mim de novo, uma vez mais, sempre uma última vez, que um dia, nos teus braços, a vida foi cor de rosa.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Desafio XXXVII - Resposta

Nas suas cartas de amor, ele era desmedidamente apaixonado. Apaixonado até ao extremo, até à mentira, como só pode ser mentiroso quem exacerba o sentimento ornamentando-o com palavras dóceis e frases requintadas e longas, mas fundamentalmente vazias. Nos seus desenhos de mulheres, ele era irrepreensivelmente cuidadoso. Cuidadoso até ao extremo, até ao irrealismo, como só pode ser irrealista quem ornamenta o traço com detalhes desprovidos de qualquer simétrico na realidade. E nos seus planos, ele era simplesmente mau. Mau até ao extremo do gratuito, como só pode ser gratuito ornamentar acções malévolas com um requintado sorriso perante o sofrimento desnecessário.

Ele era tudo isto num só. Usava cartas de amor para conquistar mulheres. Mulheres que desenhava. Desenhos que enviava aos maridos traídos. Na mesma carta, assinada com nome próprio, colocava uma foto sua a sorrir.

E todos os dias eu via-o. Saíamos os dois ao mesmo tempo de casa, entrávamos os dois ao mesmo tempo no metro e depois no autocarro. Reparávamos os dois nas mesmas mulheres. E desde um primeiro olhar trocado cúmplice eu entendi-lhe o jogo. Entendia muito bem quando o via a sacar do seu bloco de notas, a escrevinhar em letra impecavelmente arcaica e a esboçar em figuras geométricas irregulares os contornos do corpo de alguma vítima de aliança no dedo. Eu entendia tudo muito bem, sobretudo quando via a mesma aliança reluzir pela calada da noite, dias depois, em passo apressado escapando-se de casa dele.

“A aliança é o maior afrodisíaco”, foi a primeira frase que trocámos, apesar de ele a ter colocado numa forma bem mais vulgar. “Olha para qualquer mulher à tua volta. O anel transforma qualquer camafeu num drama potencial. E que te excita mais do que um bom drama?” Ele tinha a sua razão. “A culpa torna qualquer dona de casa num leão na cama. Acredita.” Ele não tinha que me convencer. Ele estava a pregar a um crente.

E por isso recebi as notícias com a maior tranquilidade e nem resquícios de surpresa. Com o tempo, passámos de vizinhos a companhias habituais, depois a amigos, depois a profundos confidentes. Ele mostrava-me as cartas e os desenhos, as fotos e os envelopes. Ele mostrava-me as reacções dos maridos. No final, era essa a sua grande conquista, a sua grande satisfação. Quando um marido lhe respondia com uma ameaça explícita de morte. Ele via isso como a grande validação do impacto que tinha na vida dos outros. Só que, um dia, a morte teria inevitavelmente que deixar de o ameaçar e vir mesmo enrolar-se-lhe como uma aliança num dedo.

“Sabes, eu não faço isto pelas mulheres”, foi o início da última conversa que tivémos, apesar de ele na altura não o saber. “Eu já tentei, mas não consigo sentir mulher nenhuma. E por isso a minha cruz é essa, andar a penar de mulher em mulher. Até um dia.” Eu só não entendia porquê mulheres casadas. “Ora, o ciúme torna qualquer homem num assassino.”

E agora, depois do funeral, consegui pela primeira vez entender que nada disto tinha a ver com as mulheres que ele conquistava como um general que acrescenta países às suas conquistas. As cartas, os desenhos, a maldade, eram a sua bandeira branca para a morte. Porque a morte é a única noiva de quem não consegue namorar a vida. E para ele, ser deposto no túmulo foi como um casamento.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Desafio XXXVII- Resposta

"If you can get nothing better out of the world, get a good dinner out of it, at least."


A corda rente balançava – lhe nos olhos. Era quase irónico que da janela listada onde se encontrava visse tão perfeitamente a corda rasteira que lhe arrastaria a vida para a morte.

Na sua pequena cela limpa e arrumada havia um silêncio incómodo, politicamente correcto. Sentou-se na borda da sua cama, mentalizando-se de que aquela seria a última noite. Nunca mais existiria um fim de tarde, um jantar, um “boa noite”. Cada segundo que passava era já o último, cada pequeno ritual irrepetível esvaia-se com o movimento do ponteiro do seu relógio fiel colado na parede. Aquele momento em que costumava pensar na borda da cama terminou quando ele se levantou e morreu. Porque nunca se repetiria. E assim, de mansinho percebeu que já estava a deixar de existir. Foi mais isso que o comoveu, do que propriamente a ideia do seu pescoço naquela corda que o fitava lá de fora.

De pé, lentamente para não gastar o espaço, foi andando em círculos na sua cela. De manhã tinha tido visitantes que lhe perguntaram se estava arrependido. Não abrira excepção e permanecera em silêncio. Há muito tempo que perdera a paciência para a comunicação. Há muito tempo que se recusara a usar palavras e a ler livros. Um sorriso tímido e honesto espreitou dos seus lábios quando pensou nas pessoas, sempre à procura de razões e propósitos. Sempre à procura de uma utilidade para as acções. Tantas vezes lhe perguntaram qual era o propósito dele, o que esperava ele. “Queres destruir as Pessoas? Tens outros propósitos na vida que não a felicidade?” E muitas vezes ele negou todas as respostas. Outras permaneceu em silêncio. Um dia disse-lhes “Deus não existe”, mas ninguém o ouviu. Ele voltou para a sua cela solitária e escrevinhou na parede: “Não existe propósito na vida, a não ser vivê-la”. E quando veio a sua condenação, pediu que lhe escrevessem isso na campa.

Quando o relógio cansado chegou às nove, os dois guardas pediram-lhe que saísse da cela e os acompanhasse. O seu último jantar esperava-o, com o sabor venenoso de ser o último. E esquecendo-se disso, saboreou-o como se tivesse acabado de nascer.

Quando terminou, um dos guardas olhou para ele com desdém e disse-lhe “Ao menos tiraste um bom jantar da tua vida”. Ao que ele respondeu laconicamente pela última vez “ Nunca houve muito mais a tirar”.

Desafio XXXVIII

Wings para Alice in Wonderland:
Algum desgoto prova muito amor mas muito desgoto revela demasiado falta de espirito

William Shakespeare


Alice in Wonderland para Ricardo:


Des yeux qui font baiser les miens,

Un rire qui se perd sur sa bouche,
Voila le portrait sans retouche
De l'homme auquel j'appartiens

Quand il me prend dans ses bras
Il me parle tout bas,
Je vois la vie en rose.

Il me dit des mots d'amour,
Des mots de tous les jours,
Et ca me fait quelque chose.

Il est entre dans mon coeur
Une part de bonheur
Dont je connais la cause.

C'est lui pour moi. Moi pour lui
Dans la vie,
Il me l'a dit, l'a jure pour la vie.

Et des que je l'apercois
Alors je sens en moi
Mon coeur qui bat

Des nuits d'amour a ne plus en finir
Un grand bonheur qui prend sa place
Des enuis des chagrins, des phases
Heureux, heureux a en mourir.

La vie en rose - Edith Piaf

Ricardo para Wings:


sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Desafio XXXVI- Resposta

É incrivel como no quotidiano arrastado as pequenas coisas tao cheias de uma beleza suave se tornam aborrecidas e uma luxuria bem fundamentada e legitima conquista um espaço fixo num coraçao que se sente a sufocar nessa monotonia escorregadia.
Mas agora, com o seu amor morto, ela nem sequer consegue verdadeiramente lembrar-se desses tempos. Sentada ao lado da lápide dele, tudo o que sente é um amor cheio de uma saudade avassaladora.
Mas a verdade é que o conceito de rotina sempre foi independente do conceito de Amor. E ele era só isso, um pedaço de passado que, no agora dela, so prometia um futuro infertil por não a preencher com ilusoes que um dia serão verdades. Dizer que o não amava era uma meia verdade. Não o amava, ate certo ponto e por outro lado, ama-lo-ia sempre. Há coisas pequenas cheias de beleza que nunca se repetem. Mas a rotina monotona dele impos-se sobre qualquer amor que ela lhe tivesse, o sorriso dele tinha sempre o mesmo angulo caloroso. Não havia espaço para algo novo , tinham envelhecido . Não, ela tinha envelhecido, ele estava simplesmente igual. As aborrecidas actividades dele tao regulares mantinham-no jovem.
Foi para se libertar desse sufoco que se impunha no ser dela que decidiu perder-se num lugar qualquer e o encontrou, ao outro. Nada tinha que ver com o seu amor ( tao sem vida, agora). Era fugaz, fazia-a sentir-se viva. Dava-lhe o que ela julgava que lhe faltava, uma qualquer mudança. Não que o amasse, mas nem sempre o amor so por si é suficiente.
Sentada tao lealmente ao lado da lapide dele, recorda-se sem falhas de memoria do dia que mudou todo o rumo da vida que tinha. Combinaram encontrar-se no restaurante e ela decidiu terminar o que já não existia e contar-lhe que era o fim e que tinha outro. Outro que tinha para lhe dar o que ele não dava. Tencionava ser breve , havia uma enorme mudança que sentia a crescer no peito.
Mas nunca lhe disse isso. Passou a mao pela pedra fria, nunca lhe disse nada disto. Porque nesse dia o rosto dele tao belo e tao suave tinha uma sombra negra a ilumina-lo. Foi quando lhe disse da sua morte que estava para breve. Foi quando lhe disse que tinha uma doença terminal. E ela amava-o apesar de o não amar, uma verdadeira compaixao instalou-se e deu-lhe os melhores meses da vida dele. Seriam os ultimos, que importava que fosse ilusao? Que importava que fosse um papel que ela cumpriria?
Passava longos tempos no cemitério ao pe dele. A rotina parecia acalma-la, suavizar a falta que ele fazia. Na verdade, era o que mais a magoava. A falta que as rotinas aborrecidas dele lhe faziam. Porque, quando ela fez tao perfeitamente o papel de o amar, de partilhar e de sorrir as rotinas quotidianas dele, tornou-se nesse ser. Que o ama, que ama as rotinas. Que se enche de alegria so de ver o sorriso dele, sempre tao igualmente caloroso . Ao representar uma personagem , do interior para o exterior, tornou-se na personagem que representava. E por agir como se o amasse acabou por ama-lo de novo, apesar de nunca o ter deixado de amar.
É incrivel como as pequenas coisas cheias de uma beleza suave se perdem no quotidiano arrastado. Ela desejou a mudança e teve-a. A mudança foi a rotina, passou a cumpri-la em vez de a descartar. E vai todos os dias ao cemiterio, sentar-se ao lado da lapide dele. Fica quieta e em silencio e quando algum homem com um sobretudo preto igual ao que ele usava sempre, igual aquele que ele prometeu que se desfazia por estar demasiado gasto mas que mantinha sempre. Os olhos dela enchiam-se de esperança de que fosse ele.
Por agir como uma mulher apaixonada tornou-se numa. E por representar um papel com amor , tornou-se no papel que representava. A mudança alcançou-a e ela nunca mais foi a mesma.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Desafio XXXVII

Alice in Wonderland para Wings:

He was smart enough to be lucky
Johhny Walker
Ricardo para Alice in Wonderland:

"If you can get nothing better out of the world, get a good dinner out of it, at least."
Herman Melville

Wings para Ricardo:

"Um tumulo basta a quem nao bastava o mundo"

Epitáfio de Alexandre Magnun

Desafio XXXVI - Resposta

And I want my anger to be healthy
And I want my anger just for me,
And I want my anger not to control me,
And I want my anger to be me
And I need to set my anger free
Saint Anger 'round my neck
He never gets respect



Nunca respeitaram a minha raiva. Porque a minha raiva existia, era uma pessoa, com o seu fato. A minha raiva acompanhava-me sempre, mas nunca a respeitaram. Como se ela não limpasse os pés quando entravamos em casas alheias e sujasse os delicados tapetes. Então ficava à porta, à minha espera.

“É só um momento”, diziam-me. “Não é muito apropriado”, diziam-me.



Passei todo o tempo de escola a escrever. Sempre gostei de observar as pessoas e os seus códigos morais. E as histórias nasciam-me como flores na primavera, num ciclo demasiado natural para eu conseguir evitar. Mas escrever era uma actividade demasiado inútil para que qualquer dos meus professores a considerasse. Ano após ano desacreditaram-me e instigaram-me a estudar outras matérias e a desistir deste vício escarnecido que era o que pegar numa caneta e escrevinhar sobre o Mundo na forma de um conto.

Nunca tiveram como me obrigar. Felizmente, era um fidalgo preso naquele orfanato e escrevia sempre que me apetecia. Os outros alunos gostavam das minhas histórias, repetiam-nas à noite e liam-nas aos mais novos.

O meu melhor amigo era um desses alunos mais novos, uma criança órfã que trabalhava no campo todo o dia. Não lhe era cedido o privilégio de aprender a ler. Deixavam-no respirar e por isso mesmo, ele tornara-se numa pessoa agradecida e calada. Mas os seus olhos perspicazes eram vorazes. Cercava-me silenciosamente e puxava-me a camisa “Escreveste mais histórias?”.

Porque ele não se limitava a respirar. E quebrava todos os limites quando se dispunha a sonhar através das minhas histórias. Um dia, dei por mim a escrever só para ele. Só para os sonhos dele, como se as minhas histórias o mantivessem vivo para além da respiração monótona de todos os dias que trazia do campo.

E quando voltava da sua lide, eu lia-lhe o que escrevia. E antes de adormecer, repetia-me freneticamente “Não deixes de escrever. Nunca deixes de escrever.” Quando estes gemidos se tornaram mais agrestes, coloquei-lhe a mão no ombro e destapei-lhe as equimoses. Com um único fio de palavra, ele disse “eles não querem que tu escrevas”.

Foi aí que a minha raiva nasceu. E era diplomática, bem vestida como eu. O professor olhava para mim de soslaio e perguntava-me se escrevera alguma coisa. Senti pela primeira vez as veias do meu pescoço a latejarem e uma vontade incontrolável de esmurrar tudo e todos à minha frente. Mas não escrevi mais.

E senti-me inútil e desprotegido. E não podia mais ajudar o meu amigo, que voltava ininterruptamente do seu trabalho do campo como se não houvesse distinção entre o dia e a noite. Afagava-lhe os ombros, beijava-lhe a testa e ele adormecia a dizer-me “Porque é que deixaste de me contar histórias?”

Adoeceu de tal forma que uma noite, à socapa me disse: “Não me importo com o que me possam fazer, já estou morto de qualquer forma. Mas tu, não deixes de escrever.” “Nem penses nisso”, disse-lhe rapidamente. E na sua infantilidade séria de criança agarrou-me na caneta “ Faz-me viver um pouco, pelo menos um pouco”. E foi quase como um suicídio assistido. Escrevi-lhe ali uma história, e no dia seguinte o meu amigo foi para o campo e já não voltou.



A minha raiva nunca foi respeitada. Sabiam que ela existia, mas exigiam-lhe que ficasse à porta, que se colocasse no seu lugar. E então eu entrava e sossegava-a à porta, prometia-lhe que não demorava. E deixava-a escrever por mim.

Um dia editei livros com as minhas histórias. E sem saberem, a minha raiva destruía-lhes directamente os sonhos. E nunca senti dó.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Desafio XXXVI - Resposta

She left the bathroom with nothing but a white linen towel and tiptoed all the way to the room. Her hands were skillfully arranging her hair in a knot. During the entire walk her eyes never left the ground, except for one final moment when she locked eyes with him, looking for some sign of excitement. She found nothing but thrill in his smiling mouth, in his smiling eyes, in his smiling heart. His excitement made it worthwhile. So she smiled back at him before turning her back and dropping the linen white towel that covered her otherwise naked wet body. Moving slowly, she bended over the bed and distanced her ankles invitingly. She never said a word. Man, she was strong.

He made his way towards her with heavy footsteps and quick pace. To the victor go the spoils. This was his award. It was the sweeter moment any victory has to offer: the feeling that one is truly standing at the top. So when he took her by the hips he never even questioned her resolve, and he feasted on each of her screams. He never said a word. Man, he felt strong.

For a long time in that dimly lighted room there were no wedding rings, no sacred vows, no common acquaintance or shared hobby to unite them. There were only two separate entities at war. They were the ultimate renegades of love. They were animals unaware of any kindness. And they made damn sure they took advantage of it.

At that moment it didn’t really matter how they got there. In fact, it would never matter again. The process was complete. The jury had made their call. He had won.

And the funny thing is that it was her idea. Many years ago, back when they were still in high school, she had bet him five dollars that she could beat him in a ten minute run around a race track. He was a fat slob, so that was a way for her to get him moving. What she didn’t know was that although his belly slowed him, he had strong legs and good lungs. He beat her three laps ahead.

As they got older, their betting turned into a habit. It wasn’t exactly competitive yet. It was a way to motivate themselves. Her high school graduation granted her a pink watch she had been demanding for so long as a gift. His first-choice allocation in college granted him dark blue snickers that could only be found in some remote European stores and had to be ordered online in a website written in foreign language.

Then, their habit became an excuse for the things they both wanted but could not admit. That’s when losing ten pounds granted him her virginity.

They had been together for many years when their first jobs came. They worked on separate departments of the same law firm. By then, they were already betting on everything. When they moved in together they made bets on stupid made up games just to see who would wash the dishes. One night she was faster than him typing some unpronounceable words, and so he had to vacuum. One weekend he beat her at arm wrestling, and so she had to clean the windows. They grew so accustomed to it that they could not do without those tiny ritual pieces of everyday life. They were just that, an innocent custom that amused them both. They were an innovative form of home-made entertainment.

Then there was marriage. And everything changed. Life called them out for money, fame, family arrangements. “When are you going to have children?”, some asked her. “Are you gonna quit your job or will he?”, others wanted to know. “Does she make more money than you?”, some would say to him. “She’s working overtime again?”, his parents would find strange. In becoming a unit, bounded by law, they had become public dominion. The rings and the vows were attached to acquaintances and family. They married each other and also the expectation of what marriage should be like. There was now an image they had to live up to. After marriage, their fun and games became serious game in a hunt for superiority. To win became survival. They were either on top of their game or their relationship would fall apart.

Few months had passed from the ceremony when a friend of theirs from college, who had grown into a professor, came one night to their home for dinner. He told them about a professor’s position that had just opened in the local university. The position would mean a worse schedule than they had at their firm, but more money, more prestige. So in the middle of the night she woke him up and said “Listen, I’m going to apply. And you can bet your ass I’m going to get the job. In fact, I could bet mine.” Their eyes locked. They both smiled.

Every break she had, and at night after dinner, she would work on her application. There was a motivation letter that had to be very clearly devised. Then there was the CV, which had to be impeccably impressive. She had to show that she knew how to teach. And then there was a test to ascertain her level of expertise. It was a hard test. Between work and her application, she was spending between twelve and sixteen hours per day in front of the computer.

Throughout the process, he was a very caring husband. There were no more games, no bets, no weird stuff during the time she was preparing her application. He did everything around the house. He would prepare her snacks and surprise her with massages while she was re-writing her motivation letter for the hundredth time. And from a certain night on, he began helping her with the test. No one would say that he did not want her to get the job.

In fact, neither did him. He felt he did want her to get the position. That’s when his friend, the professor, found out she was applying. His friend told him “I thought you were the one who would apply. Not your wife. I mean, it’s a much better position than the one you have at your firm. Have you two discussed the fact that she’ll be making more money than you? Have you talked about her schedule? You know she’ll have to teach many classes. And what will you do when you have kids? Will you give up your job? You know she won’t.”

That got him thinking. He wasn’t old fashioned. And he liked how strong and independent his wife was. I mean, he would hate her if she was weak and needy. He loved that he had never seen her cry. He liked the way she talked sports with him, and drank bear with him, and never left an argument without a fight. She was a constant challenge. He liked that she was very good at work, and he did felt her accomplishments as his own. He loved her for how good she was. But he loved being better than her even more.

Could he do it? Could he run for the professor’s job as well? He had no passion for it, but now he knew the application process inside out. He could prepare an application in one or two days, tops. He knew what to say in the motivation letter, he had a better resume than her, and now he knew the answers to the test. He could beat her.

So one very late evening in bed he turned to her and explained that he thought he should run too. After all, they were a family. The important thing was that one of them got the job. They would both benefit. And two people running is better than one, right? If both of them would run, then their shots would increase. When he put it like that, it was hard for her not to agree.

The funny thing is that he did complete his application before the deadline. The funniest thing is that he did win.

They were enjoying a quiet evening at home. They were about to go to bed when she decided to check her e-mail and got the news. Strong as she was, any trace of sadness had already cleared while she tiptoed in his direction to kiss him with genuine passion, with genuine joy for his accomplishment. “Congratulations, you won.”

No more words were exchanged. He stayed in the room while she ran to the bathroom. He felt like he could still do it. No matter how good she was, he was better. He felt like he had it all. He had a perfect wife who is less perfect than him. What more can a man want?

So she left the bathroom with nothing but a white linen towel and tiptoed all the way to the room. He smiled. At that moment, he truly loved her more than ever.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Desafio XXXVI

Wings para Alice in Wonderland:


And I want my anger to be healthy,
And I want my anger just for me,
And I want my anger not to control me,
And I want my anger to be me
And I need to set my anger free

Saint Anger 'round my neck
He never gets respect

St. Anger, Metallica

Alice in Wonderland para Ricardo:

“I like a women who's got some balls, some strength. As long as I can beat her at arm wrestling, that's fine.”

James Hetfield


Ricardo para Wings:


segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Desafio XXXV - Resposta

A Hidra de Lerna dia apareceu-lhe em sonhos. A primeira vez era ainda criança e o Monstro horrível assustou-a tanto que deixou de conseguir adormecer na escuridão do seu quarto ondulante.

Habituou-se a distrair a mente com um livro antes de as pálpebras se fecharem. E dormia com uma mão pousada na transparência da almofada, filtrada pela luz ténue e discreta dum candeeiro bordado que fabricava sombras pelo tecto. Quer fizesse calor, quer fizesse frio, dormia sempre tapada, como para se proteger do monstro sôfrego que a perseguia e era capaz de derrotar o Reino de Luz frágil que ela tecera como origamis.

E como o Monstro era horrendo. Quando já era mais velha, descobriu-lhe uma imagem num velho livro que tinha lá por casa. Tinha a mesma boca sedenta de dentes mal afiados, dois olhos redondos e fixos com uma íris negra demasiado pequena. Um corpo fino e bem delineado cheio de escamas azuis claras e escuras que brilhavam no papel impresso, tal como no seu sonho. Um corpo feroz de silêncio que a perseguia sem piedade desde o começo dos tempos. E tal como no livro, em todos os seus sonhos o monstro tinha aquela peculiaridade que tanto a perturbava: três cabeças imponentes brotavam dos seus três pescoços estreitos e independentes. Três cabeças que a fitavam impiedosamente de todos os cantos do quarto, quando a persiana fazia balançar as sombras no tecto e o Monstro saia do armário. Três cabeças que a ameaçavam e nunca desprendiam os olhos magnéticos do seu corpo, como que a exigindo.

O êxtase daquele medo evoluiu até à noite, em que já não sendo mais criança, decidiu deixar o Monstro sair do armário e enfrentá-lo. Nessa noite dourada de sombras percebeu a razão do medo enraizado nas veias geladas do seu coração; pois Monstro era invencível: quando lhe cortou a primeira cabeça nasceram três pescoços hirtos no lugar do coto. Não tinha por onde fugir nem como matar o monstro.

E este êxtase irreversível e horroroso atravessou-a de tal forma que o medo tomou posse dela, entrou-lhe no corpo e misturou-se com as suas entranhas.

E um dia quando deu conta já não precisava de candeeiros para conseguir dormir. Era no escuro que as rendas da imaginação lhe decoravam o quarto. Era no medo fermentado que encontrava uma armadura resistente ao choque de se encontrar com a sua morte de vez em quando.

E sempre que lhe cortavam um sonho, nasciam três.

domingo, 5 de setembro de 2010

Desafio XXXV- Resposta

Deixa-o só. Há alturas em que a dor é inevitável e às vezes o amor é so isso. Uma forma bonita e melodica de ter como reflexo o rosto da propria dor. Deixa-o só, deixa-o em paz. Se o amas, deixa-o ser livre. Se ja o não amas respeita-o, isto é tudo o que tem, esta tentativa de se tornar livre, senhor de si mesmo. Respeita-o porque ele tem o coraçao pequeno, não consegue auto-disciplinar-se o suficiente para se respeitar. Intrinsecamente.
Que importa que tenha sido amor. O passado às vezes é apenas um cemitério triste que ele visita para encarar a fatalidade de que nada daquilo existe. Que importa que ainda seja amor, ele so quer ser livre. Deixa-o ser só, não te quer aqui. Quer ser livre, quer ter como reflexo uma dor que seja só dele. Não o incomodes, mesmo que o ames. Se o amas deixa-o só. Porque no final, no final de cada dia so tem no peito a marca da dor, os dias felizes cheios de sol contigo estao enclausurados na memoria. Não que sejam inuteis, não que sejam insignificantes. Simplesmente deixa-o só, não o obrigues a visitar o cemitéro. Para ele os mortos morreram, não os teme e o amor que lhes dedica causa-lhe desgosto nenhum. Não o faças descer ao seu profundo cemitério perguntar-se se o amas ainda, se respiras ainda.Para ele os mortos morreram, não lhe quebres esta esperança. Porque é inutil, é inocuo. Não o perturbes, esta paz é tudo o que tem, é o principio de uma nova liberdade. De uma nova vida. Deixa-o só, mesmo que o ames já aqui não estas. E ele deseja ser senhor de si proprio, quer ver no reflexo do espelho o futuro não o passado.
Por isso deixa-o so. Não lhe retires esta calma tranquila que chega depois do pronuncio de morte. Não o perturbes. Não lhe cortes as asas com essa faca pontiaguda de desespero e de amor. Não lhe faças isso se o amas. Porque ele tem esta necessidade de ser maior e melhor que a memoria do que foi, tem esta fome do infinito, esta vontade de tocar o inalcançavel horizonte. Não lhe ofereças tao pouco como a hipotese de o amares depois de ele ter como reflexo todas as noites a dor a sorrir-lhe do outro lado do espelho. O que quer que lhe ofereças não chega, já não lhe chega. A tua voz, a doçura da tua voz... não que não tenha saudades apenas já não é suficiente. Se lhe curasses as saudades que tem tuas era como se preenchesses o vazio dele com algo horrivel. Era como se assassinasses a sede dele com agua salgada. Se o amas ainda, deixa-o so. Já não é suficiente, pensares que é e forçá-lo a aceitar é cortares-lhe as asas e esperares que ele voe.

Desafio XXXIV - Resposta

A verdade é que sempre tiveste esse encanto alternativo e ela sempre te amou por isso. Tinhas o encanto de ter encanto nenhum. A segurança e a estabilidade que brilhavam nos teus olhos de uma forma tão solitária e afável tornavam-te único. E ela amava-te por isso, por seres alternativamente melhor.
Tinhas o encanto de ser desencantador. Eras alguem limpo e distante dos pecados do mundo. Eras alguem melhor , cheio de uma energia boa e iluminada, direccionada para fazer o bem. E ela amava-te por isso mas em noites de consciencia profunda , uma voz grave e caótica sussurava-lhe que eras bom sob proposito nenhum. Para proposito nenhum. Ela amava-te mas não eras melhor, tinhas um espirito disforme de uma forma alternativa.
Mas ela amava-te por teres o encanto de não teres encanto, eras o melhor ser que alguma vez existiu. Não necessitaste de ter no ombro a marca dos condenados a morte para rejeitares viver na escuridao e procurares o iluminismo. Não precisaste do conceito de dor e de morte para seres feliz. Ela amava-te por seres bom sem precisares de ser o melhor.
Mas a verdade é que o único encanto que tinhas era o de não ter encanto. O teu ser demonstrava-se tranquilo e condescente perante tudo. Mas o que era o tudo para ti? Uma felicidade fácil de comprar em cada esquina, uma alma tao limpa dos males do mundo que se torna ignorante. Ela amava-te mas algures esse teu encanto de não teres encanto algum tornou-se numa ilusão que lhe escorregava dos dedos. Não te amava menos, amava-se a si propria menos. Era o encanto dela, ter o coração no sitio do cerebro e as maos cheias de uma esperança numa fé de um melhor conceito de existir.
A verdade é que ela te amava e isso era inutil. Não era insignificante mas revelar-se-ia inutil. Eras um homem sem um encanto honesto no seu gesto mais pequeno e peculiar. Eras limpo dos pecados do mundo e , exactamente por isso. Não viste que cometeste o pior deles. O aborrecimento. Deixaste-te ser espectador da tua propria vida nunca conseguiste ter o papel decisivo de narrador ou de contador de historias. Eras simplesmente alguem com o encanto de não ter encanto nenhum que vivia num clima de paz sustentado por tranquilidade infundamentada.
Ela amava-te mas não era como tu. O encanto dela vivia na forma como encarava os desafios, como era responsavelmente irresponsavel. Como lidava com o desejo ardente de ser inconsequente e escolher se-lo. Ou não. Mas tu tinhas a tua vida cuidadosamente limpa e arrumada, tudo encaixado. E algures isso, essa arrumaçao com proposito nenhum, projectou-se no teu ser, no teu rosto.
E ela amava-te. Assim. Com o encanto de teres encanto nenhum. Via-te bom e tranquilo, quase intemporal. Mas algures perdeste o encanto. E algures ela perdeu o encanto e deixaram de se reconhecer. O encanto está no que fazes com o caos, não na ausencia dele.
A tua alma tao limpa dos pecados do mundo deixou-se corromper pelo ser dela, tao melodicamente irresponsavel e encontrou um mundo paralelo impossivel de existir. E ela rejeitou ter o seu caos interior organizado sem um bom fundamento. Lá no fundo, em algum momento, ela compreendeu que eras demasiado limpo e demasiado bom e que isso era detestável por ser uma limpeza unicamente superficial, no fundo eras igual a qualquer um.
Ela amava-te porque ela era o caos. Mas o que eras tu?

Desafio XXXV - Resposta

I'm telling you that life is just random. We like to believe that there is some higher purpose to life. And that's why we pamper the idea that some day we will understand what that purpose is, and maybe anticipate it.

But what about people like gurus and stuff? They seem to know something we don't. They seem to be in on life's secrets. They are like hackers who understand life's source code.

That's all lies and illusion.

How can you know for sure?

Look, take it for what it's worth. But I can tell you a story about a friend of mine. She once told me about this guru in India or Nepal or something like that. She used to think the same as you. Well, at least she was curious. Eastern prophets in western countries may be all about carnival tricks, but she thought that people who take on a life of isolation far from civilization had to understand something she did not. And so she went to some guru during one of her travels. This was about ten years ago.

She told me it was like stepping into a Hollywood set. There were these random religious figures, I think it was Buddha on one side of the door and Krishna on the other. I guess she thought what the hell, two religions have to better than one. The whole place stank with incense and cinnamon flavored candles. She recalls this brown light entering the room from a clothed window. And at the center there was a man. Apart from the whole setting, he was basically an old man in a turban. He was sitting on a rug, legs crossed, and get this: he had a long white beard. Could he be any more predictable? And this wasn't your ordinary western all show guru. This was the real thing, a true honest to god native.

Fist thing she asks him is the key to happiness. He tells her some random instant-self-help-catchphrase like “it's within you”, “just learn how to be with yourself”, or something like that. Naturally, it was then she started to doubt if anything good was ever going to come out of that fantasy world. She's really smart, you see. But not very attractive. So then she asks him the real question she would like to know the answer to: would she ever find true love? And this is the really good part. Out of nowhere, the old man grabs a velvet bag which was laying around in the set. He grabs something from inside the bag. It's an ugly polished gray stone. He takes her hand, puts the stone inside and closes it. And he says “when the sacred rock changes color, so will you be married to your one true love”. An what's more is he didn't let her pay. He said “when it happens, you come here with your husband and pay whatever you want”.

She admitted to me, that was intense stuff. She doesn't know if it was how dead certain he looked, the building up to the dramatic moment, or just the incense, but she felt like she couldn't take it anymore and left. That's the thing with elaborated and theatrical bullshit. You may rationally reject it, but it still gets to you. You may know it's worth next to nothing, and yet you can't shake it off from your mind. And so she began walking around with the stone, taking it to first dates, in some secret hope that it would switch colors. That would be a sign that she had found love. And she rationalized it: after all, isn't love an erotic alchemist that transforms you on the inside? It's far easier to transform a rock than a person.

Years go by, and she forgets the stone. But now get this: she's cleaning the house a couple of months ago, and she finds the stone. But now it's red, it's almost rusty. This confuses her, because there's still no trace of love or marriage in her life. She tells me now that she felt so stupid. She knew it was all a scheme, and yet she wanted it so much to be true that the rock blinded her. She gets mad for her own childishness. And she plots revenge. She goes to this art or design fair or something like that. She looks for the strangest pieces possible. Nothing was as farfetched as she hoped for. Until she found a young guy in a corner selling small white geometric models. Kind of what kids use in maths class. She pics one up and asks him “what this?”, “that's a white solid cube, ma'am”. “Well, what does it do?”, “it's just for decoration, your know...” So she takes the small cube and pays.

Her next vacations she goes back to India, or whatever country it was. She goes to the same guru, who is in the same place. Buddha and Krishna seem to have switched places, but apart from that everything is the same. Even the guru didn't seem to be one day older. But then again, it's a sad irony to be able to freeze time only when you're an old man.

He did not remember her. So she sits next to him, gives him the rusty rock and tells him she didn't find love as he'd promised. His feeble reply was something like “well, I am not god; I am human like you”. She told me she was infuriated by his answer. She felt betrayed. She goes all the way there expecting a good answer and he finds it suited to make funny remarks. He knew nothing more about life than her, but he was nevertheless as human as her. So why isn't she the guru?

So she reached the inside of her backpack, and grabbed the cube. Attached to it were a prepaid telephone card with her phone number written in blue ink. She took his right hand, put the card in it, and closed it while telling him “I only demand one answer from you today: tell me what this is”. And the great sage flinched. He raised his eyebrow. He gave no reply. So she continued “when you understand the secret of the rock, you will know the truth, and then you will call me. But since I trust your ability to understand, I will pay you right now.”. And so she takes his left hand and places a very generous sum in it. Then, she just leaves. Imagine it: the old man, completely stunned, with his two hands held up. In one, a ridiculous white cube, and on the other money.

She didn't expect him to call. Men rarely call her when she gives them her number. This one did, a couple of months later. And you know what? He called to say that he had journeyed through his land and meditated deeply on the meaning of such an odd artifact. “It is a key to open the door to great treasures, yes?” No, she replied. And he tried again, “it is the coveted philosopher's stone, to inspire reflection and dream, yes?”, and again she just replied “sorry, no”. She finally got what she wanted. The guru finally quit.

And then, over the telephone, she stepped up to the part of the western bitch and told him something like “it's not so fun when it's other people who challenge you with impossible riddles, is it?”. Dead silence from the old man.

So what? She made fun of an honest, poor old man who was only trying to make a living. That still doesn't prove anything.

Wait, there's more. As she terminated the call, she solved the enigma. She said something like “you gave me a rock that would signal me marriage. But it was a rock, plain and simple. There was iron on the surface, and so it rusted. And it was my knowledge and not yours that led me to be enlightened by this truth. As for the cube, well... it's also just a cube. Nothing more that a simple white cube.”. And she finished with a great touch: “so let this be your first lesson in Western philosophy: sometimes a cigar is just a cigar”. And she hung up.

So what do you mean?

Look, nobody can hack life's code, even if they honestly believe they can. Sometimes a liar is just a liar. No matter how seriously he takes himself.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Desafio XXXV

Alice in Wonderland para Wings:

"Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada."

Súplica, Miguel Torga







Ricardo para Alice in Wonderland:





Wings para Ricardo:
Às vezes um charuto é só um charuto.


Sigmund Freud


Desafio XXXIII- Resposta

Não existem coincidencias porque te moves sempre num intuito de preencher um proposito. Não existem coincidencias porque tudo é fundamentado.
É verdade que este dia infértil define quem não és mas tambem é verdade que isso é uma escolha sensorial tua. Porque quando a maioria dos teus semelhantes aproveita as reminiscencias deste vazio para decidir quem são tu afastas-te do que nao és. E isso é uma escolha tua que não existe, coincidencias não existem.
É certo que este é so um mau dia. Objectivamente. Com propósito nenhum. A tua fome primitiva de satisfazer pequenas curiosidades avassaladoras perde importancia perante a triste fatalidade desta vertente cinzenta da vida. Mas esta realidade é muito maior que tu, atribuis-lhe significado. Só isso. E apenas isso. Esta realidade existe para alem de ti, depois de ti. E tu sabe-lo tao bem ao ponto de, inatamente, este dia ser um dia vazio. Sabes a extensao da tua impotencia, da tua fragilidade.
Porem não es como os outros. Procuras o que és e não quem és, coincidencias não existem. Há certos erros pequenos existenciais que nunca cometes, compreendes perfeitamente que escolhes a equação matemática que se adequa melhor, que soa melhor, a mais correcta. E depois realizas pequenos e discretos testes para garantires a validade da resposta. Procuras a calma e a segurança de uma equação para encontrares a resposta que sentes mas não consegues ver. Mas nunca te esqueces que foste tu que escolheu a equaçao , não o inverso.
Reconheces que esta realidade é muito maior que tu e que, por sua vez, a matemática é abstracta e intemporal. Está muito para alem de qualquer realidade. A verdade é que tu escolheste a equação, procuraste uma resposta válida e verdadeira. Isso torna-a correcta mas não demonstra a sua exclusividade. Porque a equaçao responde-te a um problema que só tu sabes qual é. O facto de estar correcta apenas prova que foi uma escolha tua porque os acasos não existem. Não existe necessariamente uma relação estreita entre a realidade e a matematica porque tu és fragil. E apercebes-te que precisas de , inconscientemente, atribuir significado a tudo. Não existem acasos porque não sabes o que existia antes de poder existir o acaso.Nao consegues ser imparcial ou pensar, intrinsecamente, como se tu não fosses tu, os acasos não existem porque não sabes se eles verdadeiramente existem. A matemática é infalível e tu dás-lhe um porque ocasional .
Existem dias assim. Inférteis. Mas tu decidiste que estes momentos de chuva densa definiam o que eras. E quem não eras. E não és isto, alguem demasiado fraco para assumir que morre e que a matematica é a realidade suprema por ser abstracta que consegue prever a tua morte e existir para alem da compreensao do teu cerebro. A concisao e exactidao matematicas são utilizadas para estabelecer as leias da tua realidade, são usadas como referencial. Nunca o inverso.