quarta-feira, 16 de junho de 2010

Desafio XXV- Resposta

Não percebes nada de música, não a compreendes. Dizes que tens boa coordenação e um bom sentido de ritmo. Dizes que te sentas com a guitarra no colo e que crias melodias afaveis e bonitas.
Mas isso não te faz compreender tudo o que a Música é. Nada tem que ver com aptidoes, a música. É uma questao de amor, porque o teu coraçao fica alegre e vibrante ao ser preenchido por uma idealogia que te não deixa morrer nos momentos monotonos e baços que existem em qualquer suave existencia.
Podes ser isso tudo, ah sim, até podes ser um músico brilhante. Podes dar concertos e podes ser aplaudido.Mas continuas sem amar. Não amas a musica. É apenas mais uma parte da tua vida onde queres ser bem sucedido. Como é que sei que não amas? Porque esforças-te pelos aplausos, nunca os ignoras. E se amasses a música eles tornar-se-iam secundários. Não irrelevantes, apenas se te movesses animado por um amor que não consegues controlar, a tua primeira preocupaçao não recairia sobre os aplausos. Mas sobre a tua entrega total no acto. Ah sim, quem ama aceita morrer triste...
A música transcende-nos, a música é a voz do Deus que nunca existiu; não é deste universo. É imortal enquanto somos todos, humanos decadentes, mortais e efemeros. Música não é só mais alguma coisa onde tens sucesso e onde queres ser idolatrado. Tens de ter amor para que a tua dedicaçao não se torne mecanica.
É ironico. Quanto mais o mundo evolui tecnologicamente, menos se percebe sobre a verdadeira essencia das coisas. E esta sociedade inocua onde vives e onde te identificas encontra mais do que espaço para libertar a sua não reflexão sobre o que, garantidamente, não é amor. E distorce tudo, distorce ate a Musica, a voz da única alma que podemos ter. Distorce o proprio proposito da evoluçao tecnologica, a beleza da Musica ve-se desprotegida...
Tu não compreendes a música. Não amas, nada sobes a inevitabilidade triste que existe no amor. És mais um ser triste desta nova epoca que se revela vazia. És a voz de nada porque procuras o sucesso sem reflectires sobre quem és.
E a música é a única voz que podes ter, não importa se tens o dom da coordenaçao. O teu eu é mudo.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Desafio XXV - Resposta

"Children show scars like medals. Lovers use them as secrets to reveal. A scar is what happens when the World is made flesh."


As cicatrizes beijaram-me todo o
corpo
como pássaros breves.
colocadas e distribuídas sem passado
num corpo abandonado
sem sustento
Destilavam um aroma bárbaro
que sempre atraiu homens e
encantou crianças.

Porque em cada pedaço do meu corpo
em que uma cicatriz pousava,
se beijava a vertigem da catarata
ou se dormia com a infância corroída.
E não há nada como o sexo atravessado
em que se faz amor com um corpo
que é o Mundo.

E cada vez que esse Mundo te seduzia
na forma do meu corpo
mais uma cicatriz pousava
no meu ombro esquerdo,
calejado de já ter sido condenado
à morte e nunca morrer.
A vida que ainda me vivia na pele,
levantava-me da cama,
e eu ficava a lamber as minhas
feridas,
pedaços irregulares que o Mundo
esquecera de varrer
e que te enchiam de prazer.

Mas pouco houve de mim na minha vida
E eu nunca soube o que o amor era.

domingo, 13 de junho de 2010

Desafio XXV - Resposta

A guerra moderna é um inferno privado, repleto de horrores fechados no seu contexto, porque perder um amor ou perder uma perna são sentidos com a mesma intensidade. A intensidade do amor perdido é impotente e chora perante a comoção tamanha que nos gera o quotidiano, a nós que somos filhos bastardos da ilusão do passado e dos sonhos dos nossos pais. A nós, que estamos perdidos entre o que somos, porque a vida é só isto, e o que desejamos ser, porque a vida tem que ser mais que isto. A nós, que nos rebolamos nos pequenos prazeres e preferimos o plano à concretização, porque algo quando o é tem já que passar a ser outra coisa. A nós, que fazemos dos mapas e dos roteiros um fim e não um meio, porque nos mapas estão os próprios caminhos pré-traçados que podemos trilhar. A nós, filhos da aventura e guerreiros contra o tédio. A nós, a quem uma fotografia a preto e branco de New York City continua a encantar como se não fosse um tremendo cliché, uma idealização impossível, um acompanhante para um cigarro e um Martini, um arranha-céus da ilusão colectiva construído com alicerces no lodo que é a nossa crónica falta de opções que nos maravilhem. A nós, porque as músicas estão escritas, os filmes estão rodados, os livros estão vividos. Fechem-se os teatros, os cinemas, as livrarias, porque nos prometeram uma vida à qual estamos vedados. E nós estamos muito, muito irritados. Irritados na guerra moderna: nós contra a ideia de nós. Eu contra a ideia de mim mesmo. O Mundo, esse é só o pano de fundo. É dentro de mim que se verte sangue num correr contínuo que desagua na melancolia, na desilusão, no desamparo, no querer e não chegar, no tocar e não sentir, no estar quase, mas não exactamente lá. Lá, nesse lugar de sonho onde há morte, e dificuldade, e sofrimento, mas pelo menos essas coisas são todas reais, e queimam, queimam como um cigarro na pele, como uma lâmina cortando uma tatuagem num pulso. Lá, nesse lugar onde não se vive neste semi-coma em que tudo vem nas mesmas doses, relativamente ao seu referencial específico, e perder um amor é como perder uma perna. Lá, onde nos sentimos numa existência que nos puxa, nos estremece, nos atira contra uma parede, nos roda e gira, nos parte os dentes, mas enfim, nos faz sentir feitos de electricidade. Lá, nesse sítio onde o amor não nos leva, o trabalho não nos conduz, e a nossa própria imaginação tem dificuldade em carregar-nos às costas. Onde quer que esse lá seja, haverá jazz, haverá um saxofone a ecoar nas ruas, uma chaleira ao lume, e a Ella a cantar notas dilacerantes. Haverá New York City, não a real, mas aquela, nocturna e iluminada, que alumia a vida que queremos. E haverá morte e sofrimento, amores e pernas perdidas. Mas nunca, por nada desse Mundo, nos sentiremos entorpecidos, sonolentos, trôpegos, distantes, foragidos, desencantados, aborrecidos, desinteressados, invejosos das pessoas simples para quem o mar dá tudo e a Natureza é mãe. E lá, nesse lugar que existe em algum sábado à noite de fim-de-semana da vida, quero morrer, soldado caído da minha guerra contra a minha apatia, contra a minha inércia. E lá, nesse espaço sem lugar a sinais de stop, sem faixas da direita para quem gosta de andar devagar, é onde quero ser enterrado. Enterrado na esquina onde tombar, morto como um cão posto a dormir, concretizado no anonimato. Uma vida que explodiu, mais do que parar.

“Tombou, nesta esquina, vítima de fogo amigo, o soldado R.T., herói sem pátria, habitante do éter, inimigo do vazio.”

Lá, haverá sons de tiros, e morte, e sofrimento, e o amor será bastardo e as pernas correrão muito para além do limite do cansaço. Sim. Mas também haverá jazz. E um saxofone distante a ecoar nas ruas.

Desafio XXIV - Resposta

O que me dá mais vontade rir ainda é a forma como neste Mundo as coincidências se acumulam, chamam-se umas às outras. É como se cada coincidência tivesse mel, e um grupo de outras coincidências corresse a juntar-se à primeira, tornando aquilo que não é mais do que uma sequência altamente improvável num glorioso milagre. Mas um milagre é, por definição, algo impossível. Se existir uma réstia de probabilidade de que algo tenha ocorrido por algum acaso estranho, então é apenas o Mundo a funcionar normalmente.

Para a minha mãe, ainda assim, cada frase que a minha irmã pronunciava era uma revelação esplendorosa do divino, era uma lição de vida. Não que ela pronunciasse muitas: afinal, a palavra divina não pode ser banalizada, não há muitos assuntos de conversa e Deus não fala de futebol. Para a minha mãe, as parcas intervenções da minha irmã conferiam a cada uma um estatuto mais elevado ainda. Como se antes do acidente ela fosse um papagaio. Como se antes do acidente ela não se limitasse apenas a lançar umas frases para o ar, mais informativas que discursivas, com todo o desprezo por quem as escutaria. Como se antes do acidente os outros não fossem já um púlpito para a minha irmã. Como se, por aquele dispositivo de leitura ocular, ela estivesse a conter e a deixar cair gota a gota a sabedoria que não tem nem nunca teve.

E quanto mais a vida em casa se tornava alegre, mais a minha disposição tendia para a indisposição, para a tristeza e para o pasmo. O meu pai, e como a minha irmã saía ao pai, viajava pela casa telecomandado pela minha mãe, e raramente levantava a voz para expressar uma dúvida ou angústia. Que vulcão adormecido e frustrado aquele homem devia ser. A minha mãe, criara uma agenda detalhada e um plano a dois anos do que era preciso fazer para tornar a minha irmã num rosto que se vendesse em medalhas e no foco de orações.

“Primeiro, temos que pôr a Cristininha bonita outra vez. Depois, temos que partilhar a mensagem dela com o Mundo.”

A casa tornou-se numa fábrica de santos de carne e osso. Moviamo-nos como uma máquina, cada um de nós uma parte de instruções detalhadas, para aperfeiçoar um ser, que mais que um ser já era quase uma ideia, a divina Cristina.

A Cristina precisava de colocar os dentes que perdera no acidente, precisava de reparar as cicatrizes, precisava de algo na cadeira que permitisse remover aqueles ferros que se erguiam ostensivamente no ar e lhe davam um aspecto muito robótico. Frequentemente faltava comida em casa. Primeiro, porque faltava tempo, depois, porque faltava dinheiro. Quando faltou dinheiro, o meu pai interrompeu uma baixa prolongada, como dizia na ficha, "por motivos psicológicos", e regressou ao emprego. A minha mãe, sempre senhora de aproveitar oportunidades onde elas gritavam para ser achadas, usou o meu pai para trazer dinheiro para dentro de casa e também para levar a imagem da nossa santa para fora de casa. Era carteiro. Começámos a produzir folhetos para ele entregar em todos os prédios.

Com o tempo, o dinheiro deixou de ser suficiente para tudo. As intermináveis operações, o equipamento, os folhetos, as minhas propinas na universidade. A minha mãe chamou-me um dia e olhou-me nos olhos. Creio ter sido a primeira vez. Disse-me que tinha chegado o meu momento de ser abençoada sacrificando-me pela minha irmã. Disse-me que em todas as famílias é assim, os irmãos têm que se sacrificar uns pelos outros, e os filhos têm que se sacrificar pelos pais, tal como os pais se sacrificaram um dia por eles. E na nossa família havia um bem maior, a beleza da nossa Cristininha, o menino Jesus do nosso presépio, a nossa princesa. E por isso nenhum sacrifício era em vão. Nesse dia, eu perdi completamente a vontade de rir.

E a minha irmã, essa aprendeu rápido a fazer o seu jogo. Entendeu o que a nossa mãe projectava nela e reflectia-o como um espelho perfeito, iluminando e resplandecendo a vida da casa com a sua santidade, e assim dando mais força à minha mãe para continuar. A estratégia dos folhetos resultara, porque cada vez tínhamos mais visitas. Senhoras avantajadas na idade, no peso, na tinta do cabelo e na carteira, eram a visita constante em casa. Vinham, emocionavam-se, quando tinham sorte eram brindadas com palavras de sabedoria da santa, e deixavam algumas moedas na caixinha de esmolas à saída da nossa casa, transformada em igreja não oficial. De certa forma, pagavam o mesmo que na Igreja, e assistiam a um espectáculo muito melhor. Uma inválida com a palavra de Deus na boca.

Mas isso não chegava à minha mãe, era preciso algo grande, algo maior, alguma prova da desmedida santidade da filha. Várias vezes ela disse-nos que

“dar voz a esta santa será o meu testemunho no Mundo.”

E faz todo o sentido. Afinal, quando não se tem nenhum talento com o qual vincar o Mundo com o nosso nome, a forma mais fácil de não se ser esquecido, para além da própria morte, é ter filhos. E de certa forma, eu conseguia compreender e simpatizar com a cruzada da minha mãe. A filha dela tinha efectivamente morrido naquele acidente. Agora, ela precisava de santificar os restos do seu cadáver para que o seu nome permanecesse. Ela não era Rosa, era Maria, a mãe do nosso menino Jesus. Tão parte da História como o próprio.

Só que a máquina começava a encravar. O meu pai voltou a ficar de baixa, esgotado. Eu já não saía do meu quarto. Já não ria. Já não levantava a voz. Eu já tinha simplesmente desistido. Mas para a minha mãe pouco importava, porque afinal o trabalho estava concluído, e a santa estava acabada. Pronta para sair à rua. E para cunharmos em alguma moeda as nossas caras, a entrada do nosso apartamento banal, ou a cadeira e a voz metálica feminina da minha irmã, era preciso um espectáculo que ninguém fosse tão cedo esquecer.

“Família, aqui está a nossa prenda para o Mundo!”

Nunca me senti menos parte da família do que quando a Dona Rosa desapareceu a empurrar a cadeira da Cristina para além da soleira da porta da rua. A Cristina estava novamente linda. O cabelo louro imaculado oscilava muito ligeiramente com a brisa, e misturava-se no tom de pele dourado pela luz do Sol, que parecia ele mesmo abençoá-la, e reflectir-se na brancura dos seus novos dentes. Já não tinha ferros a mantê-la, porque uma cadeira mais pequena com a forma do corpo dela como que a mantinha presa ao seu contorno original. Vestiram-lhe um vestido justo e quase provocante na sua transparência de um branco de linho que está a meio caminho entre a santidade e o deboche. A Cristina, naquela manhã em que a mãe a levou à missa, parecia efectivamente algo de sobre-humano.

E já se ouviam os pneus a chiar fora da porta quando eu ainda me preparava para seguir a família, dois passos atrás, como um bom animal de presépio. Num derradeiro olhar, reparei que uma pequena barata seguia no caminho inverso, e vinha da rua para se instalar em nossa casa. E, pela primeira vez em muito tempo, ri. Ri, olhando à volta para a imundice da sala, da cozinha, para as teias de aranha no tecto, para os candeeiros de luz intermitente, para a porta lascada, para as paredes que já não eram brancas, eram um mascarrado de comida e tintas e sabe-se lá que mais. Ri, e lembrei-me das aulas às quais não podia ir há mais de um ano. A família diminuíra a entropia da beleza na figura da minha irmã, e aumentara-a a toda à volta. Para acumular toda a beleza física e espiritual naquele ser, naquele receptáculo esvaziado por um acidente, foi preciso que esta casa e toda a gente nela se tornasse num lixo, num vazio de qualquer traço que possa ser achado belo, ou sequer humano. Ri, porque sabia o que ia acontecer.

Ficção: A Cristina chegou à igreja quando a música começara a tocar. O grande órgão anunciara a entrada triunfal no átrio do pequeno tempo, naquele dia, excepcionalmente e como que adivinhando a circunstância história, estava cheio. A sua face tornou-se branca, como o seu vestido de linho, e pela primeira vez em mais de um ano de paralisia, a Cristina, perante todos os olhos que se viravam para si, mexeu o pescoço, virando o rosto para a abóbada no céu do velho edifício. Nesse momento, um pombo levantou voo. O padre caiu de joelhos e a congregação em peso chorou e gritou

“milagre!”

Facto: Que uma cadeira de rodas dê um salto no degrau da porta, e uma paralítica, presa por arames, no impulso do salto desloque o pescoço, não é nada de extraordinário. Mas quando por azar a música está a tocar e um maldito de um dos muitos pombos naquela igreja decrépita decide levantar voo ao mesmo tempo, temos as coincidências a juntarem-se como comadres. E o padre, esse, não caiu de joelhos. Caiu de rabo porque uma tábua do soalho cedeu nesse preciso instante. A casa do senhor estava tão podre como a casa da santa. Não admira que em ambos ela, na altivez da sua beleza, irradiasse luz.

E eu, rindo cá do fundo, não conseguia deixar de pensar em quanta podridão equivalerá a um pouco de beleza forçada.

sábado, 12 de junho de 2010

Desafio XXIII - Resposta

Ainda me desmancho de riso de cada vez que a minha mãe nos obriga a ver o vídeo, num velho leitor VHS. Provavelmente ainda ando a fazer explodir aos poucos, retardatariamente, todo o riso que contive naquela manhã. E ocasiões não me faltam. A minha mãe gosta de passar o vídeo todos os fins-de-semana. Junta a família na sala, numa união perfeita para a sua ilusão de conjunto uno, sagrado, edifício santo. A família santa, no entanto, tem três elementos, e não quatro. Só três. Há aqui dentro um a mais. E por isso ela nem me chama. Só quando vou a cruzar a sala, por algum motivo, ela me diz “senta-te”, mais uma ordem do que um convite. Tal como faz a um vizinho, a um estranho, a um hóspede. Eu sou a vaca no presépio. A vaca que ri.

E falando de vacas. Aquela manhã do vídeo foi obviamente mais um dos belíssimos presentes da minha irmã. Ela era o menino Jesus da família. Beata até ao osso, um modelo de virtudes, a filha que qualquer mãe quer ter. E eu só me ria, quando escutava a minha mãe a dizer isso aos vizinhos. Eu não, eu sou desbocada, sou estridente e desagradável. Naquela manhã só me contive semi-composta porque o meu pai tinha uma mão agarrando forte a mão da minha mãe, que falava, e outra nas minhas costas, a torturar-me a espinha, abortando uma gargalhada de cada vez que a sentia a caminho.

“Conte-nos, então, o caso da Cristina.”

Só isso já me fazia rir, porque eu sabia, sílaba a sílaba, o que a minha mãe iria responder à apresentadora do programa. Programa de televisão da manhã, pela semana, o público-alvo perfeito para cair na cantiga da minha irmã, que mesmo na sua cadeira de rodas, mais parecia estar num trono de onde estendia a sua influência. Ninguém lhe ficava indiferente.

“A Cristininha, minha filha, é uma santa. Ela foi sempre um exemplo para a irmã. Até para mim e para o meu marido. Olhe só, veja como ela, mesmo neste estado, é tão bonita! Mas nem um bocadinho vaidosa. Mesmo antes disto que lhe aconteceu, ela era muito humilde, estava sempre na igreja, organizava coisas para os pobrezinhos, e em casa era um gosto vê-la. Sempre muito calada e respeitadora. Ela lembrava-se sempre dos outros antes de se lembrar dela mesma.”

“É muito bonita, sim. Dói-nos o coração de a ver neste estado. Ora, conte-nos então o que aconteceu naquela noite.”

Só isto, já me fazia esquecer a pressão do meu pai nas costas, e sorrir descompassadamente com a minha mã a fungar, a levar o lencinho branco à vista para colher uma ou outra lágrima. É sempre assim nas experiências religiosas. Tem que haver lágrimas. E falando em pressão nas costas.

“A Cristininha foi a um encontro de jovens católicos. Foi no ano passado, no Pavilhão Atlântico. Ela tinha só dezoito anos. E quando voltava para casa, de mota com mais dois amigos, tiveram um acidente. Os médicos dizem que ela bateu com a garganta, e depois o pescoço foi para trás, e ela ficou neste estado. Muda, e paralítica. E ficou a santa que é.”

Eu não consegui. Mesmo cravando-me as unhas até romper a camisola, o meu pai não me conseguiu impedir de soltar uma gargalhada. A minha mãe chorava desconsoladamente, tapando os olhos com as costas da mão, e eu ria descontroladamente, tapando a boca com a manga.

“Toda a família ainda sofre com este acontecimento terrível. Vejo que a mana está especialmente nervosa.”

Não voltou a reparar em mim, nem me pediu para falar. Eu sou a irmã nervosa. Nervosa, pois. Já me chamaram outras coisas acabadas em “osa”. Invejosa, mentirosa, por exemplo. E a verdade é que, confesso, eu ficava nervosa de olhar para aqueles ferros e metais que mantinham a minha irmã compostinha na cadeira, sem se desfazer no encosto como um monte de gelatina. Por vezes, até se formava dentro de mim a mesma simpatia que imagino que ela despertasse aos milhares de espectadores que viam o mesmo. Mas depois via a sua cara, a beleza que ela sempre usou a seu proveito, e a expressão impassível, de santa de altar, com as sobrancelhas erguidas, e o olhar ligeiramente elevado, como se pertencesse mais ao céu que a esta terra, e isso, para mim, desmarcarava-a. Porque eu sabia que ela gostava das coisas da terra. Demais até. E agora, aquele Stephan Hawking de rabo de cavalo, estava mais uma vez a prostituir a empatia que gerava nas pessoas. E isso irrita-me, deixa-me fora de mim. Dá-me vontade de rir. Vamos então ter uma pequena lição de história, mãe?

Ficção: Ela foi sempre um exemplo. Ela é bonita, mas nem um bocadinho vaidosa.

Facto: Ela é bonita por ser extraordinariamente vaidosa. Mas a vaidade, escondia-a debaixo da minha cama, numa arca fechada. Um dia a minha mãe deu com um baú gigante de maquilhagem, colorações de cabelo, roupas mínimas e até perucas. E obviamente atribuiu a posse do baú a mim. Que belo exemplo, mãe.

Ficção: Ela era sempre muito calada, e lembrava-se sempre dos outros antes de se lembrar dela mesma.

Facto: Aqui estamos de acordo. Ela era calada porque não tinha nada para dizer. E lembrava-se dos outros porque essa era a sua forma de gostarem dela. Senão vejamos...

Ficção: A Cristininha foi a um encontro de jovens católicos.

Facto: A Cristininha disse que ia ao encontro, mas nunca chegou efectivamente a entrar no Pavilhão. Ficou à porta a beber com o grupo do costume.

Ficção: Quando voltava para casa, de mota com mais dois amigos, tiveram um acidente.

Facto: Falta dizer que o acidente foi na Marginal de Cascais, e nós moramos junto ao Pavilhão Atlântico. Mãe, que fazia a tua filha na Marginal às três da manhã? Os três, em cima de uma mota que não pode transportar mais de duas pessoas. Os três bêbados. Talvez, e isto é só uma hipótese, a tua filha estava lá porque foi com os dois amigos para o Guincho. Para um sítio escondido, perto da praia.

“Dona Rosa, eu espero que compreenda esta pergunta, mas eu tenho que a fazer, porque há milhões de pessoas em casa que podem pensar nisso, e por isso mais vale dizê-lo já. Mas a sua filha estava com dois rapazes, na mota. Por certo entende o que vem imediatamente à cabeça de alguém mais mal intencionado...”

“Olhe, isso só pessoas mesmo muito mal intencionadas. A minha filha é uma santa. Os médicos fizeram testes.”

Ficção: Os médicos fizeram testes.

Facto: Os testes dos médicos disseram que a minha irmã era virgem. E estão certos. Ela era conhecida na escola por isso. Dizia que só perderia a virgindade no dia do casamento. E eu dava gargalhadas de cada vez que ela o dizia. Ninguém sabia porque queria ela fazê-lo, ela não era de se justificar nem de apresentar razões. Ditava a sua razão como um decreto papal. Mas mãe, da idade dela já eu sabia há muito tempo que sexo, faz-se de muitas maneiras. E a minha irmã sabia bem disso. E mãe, não foi só a mota que levou carga a mais em cima naquela noite.

“Dona Rosa, o que a leva a dizer que a sua filha é uma santa?”

“Porque depois vieram os milagres. Ela esteve muitos meses no hospital, mas depois pudemos trazê-la para casa. E depois eu pus-lhe um crucifixo pendurado no quarto, e logo quando ela chegou ela começou a olhar para ele e assim, a chorar. E depois quando eu tive uma doença eles levaram-na lá e ela curou-me.”

“O que a dona Rosa está a querer dizer é que a senhora estava de cama com pneumonia, e ficou instantaneamente curada quando a sua filha a tocou, é isso?”

“E não fui só eu. As minhas vizinhas têm ido lá a casa, e mal a vêm caiem logo de joelhos. A Cristininha é uma mártir do Senhor. Precisamos de saber a mensagem que ela nos veio trazer. Ela foi poupada pela morte para nos iluminar o caminho.”

“Dona Rosa, conte-nos o que a sua família veio aqui pedir hoje.”

“Existem uns aparelhos muito caros, em que ela pode escrever a mexer os olhos, e depois a máquina diz o que ela escreveu. Nós não podemos comprar um para a Cristininha. Mas queremos muito conhecer a mensagem que o Senhor a mandou trazer. Ninguém sobrevive a tanto sem ter uma coisa muito importante para revelar.”

E foi assim, com este momento televisivo, que se iniciou o grande peditório para dar voz à Cristininha. Uma voz metálica, como os ferros que a sustinham, mas ainda assim uma voz. E o dinheiro choveu. A minha irmã tornou-se doce como mel para senhoras abastadas com problemas de consciência poderem esbanjar o dinheiro dos maridos. Em duas semanas, a conta criada especificamente para esse propósito já tinha ultrapassado o custo do equipamento. Em três semanas, a Cristinha já dava lucro. Em dois meses, a minha mãe estava à janela ansiosamente à espera que o equipamento fosse montado. A santa ia falar.

Ficção: A minha irmã curou a minha mãe da pneumonia.

Facto: A minha mãe estava a ser acompanhada e medicada há mais de uma semana. A pneumonia praticamente já se tinha ido embora e, para ser sincera, acho que ela só se mantinha na cama porque ela é muito preguiçosa. A Cristininha, esse é o seu emprego a tempo inteiro, o melhor que já teve na vida. Isso é que a fez levantar-se.

A máquina chegou, os senhores montaram-na, colocaram todos os restantes fios e ecrãs em torno da minha irmã. Parecia uma antena gigante, um receptor cósmico qualquer. A minha irmã, o menino Jesus da família, nascida no dia em que ia morrendo. Aquela que para trás desse dia não tem história. Aquela dotada de sabedoria divina, aquela que comoveu o país. Aquela que pode agora falar.

A antecipação era dolorosa. Os olhos começaram a mover-se. A minha mãe, de terço nas mãos e dedos entrelaçados, parecia em transe. Parecia estar a olhar para os olhos de Deus enquanto se movem.

“P-“
“-o-“
“-r-“

E que disse Deus?

“F-“
“-a-“

Oh, bolas, não tive paciência para ler todas as letras que ela picava com o olhar. Fui-me sentar no sofá e esperei que o sistema de voz repetisse alto. Foi em tom apressado e monocórdico que uma voz espantosamente orgânica e feminina disse:

“Por favor, alguém me corte o cabelo.”

A minha mãe, por uma vez, rir desmesuradamente, numa gargalhada a que se juntaram todos os presentes, o meu pai, os técnicos, os jornalistas que gravavam o momento para mais tarde passar no programa da manhã. Eu não sabia o que dizer ou fazer. Por uma vez, nem rir consegui.

Ficção: A minha irmã chorou ao olhar para o terço.

Facto: É curioso como nunca me tinha lembrado disto. A minha mãe pendurou o terço no espelho grande da cómoda da minha irmã. Quando ela chegou, olhou o terço e chorou, ela na verdade estava a ver a sua própria imagem reflectida no espelho. O seu rosto delicado, as feições perfeitas, que são o que o Mundo de fora via, não contavam nada para os seus próprios olhos. Esses, não viam senão as olheiras gigantes, as cicatrizes, os dentes em falta, o cabelo longo espigado.

A minha mãe foi lesta a beijar-lhe o rosto e a interpretar bem alto o que a filha disse.

“A minha filha está a dizer-nos que devemos viver as nossas vidas com humor. Mesmo nesta infelicidade, ela pede-nos que sejamos positivos. Esta é a mensagem do Senhor. Rir, rir muito!”

Excepto quando sou eu a rir deste circo. Neste Mundo, quem fala, quem grita, quem esperneia, é quem menos se ouve. E custa-me a entender porque tem que ser assim, porque temos que ligar a sabedoria ao silêncio. Quem menos fala, menos tem para dizer. Mas é escusado tentar até entender. No final, as pessoas vão sempre interpretar tudo como lhes apetece, e por isso é bem feito o destino que têm. A verdade, essa, é a única verdadeira vítima nesta vida.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Desafio XXV

Tiago para Wings:

It is so characteristic, that just when the mechanics of reproduction are so vastly improved, there are fewer and fewer people who know how the music should be played.

Ludwig Wittgenstein


Wings para Blue Storm:
perspicácia.





Ricardo para Alice in Wonderland:

"Children show scars like medals. Lovers use them as secrets to reveal. A scar is what happens when the World is made flesh."
Leonard Cohen, The Favorite Game

Alice in Wonderland para Tiago:

"With great power comes great responsibility"

Spiderman movie






Blue Storm para Ricardo:

"In modern war... you will die like a dog for no good reason."
Ernest Hemingway


segunda-feira, 7 de junho de 2010

Desafio XXIV - resposta

You have 2 choices in life:

a) to find a way;
b) to make one


Agora que sabes, podes escolher.
Fecha os olhos. Abre-os.
Nada mudou.
O verdadeiro dilema está no acto da escolha.

domingo, 6 de junho de 2010

Desafio XXIV- Resposta

Ah o mundo é filosofia mas filosofia tambem é esse estado de não-filosofia. Em que te sentas calmamente na esplanada e observas a beleza azul de uma onda a desfazer-se na praia. E ouves o riso de uma qualquer criança que já foste tu. Desconheces o porquê desta tua magnética atracção pelo mar. Mas sempre que é Verão e que o ves pela primeira vez em meses, sempre que sentes a sua fresca brisa na tua pele. Sentes-te bem. Sentes-te feliz. Uma calma salgada preenche-te o ego. E não importa porque, não te deixes violentar pela racionalidade do porque. Sorris, és feliz, nada mais importa. Se é absurdo, deixa-o ser. Define absurdo.
“Definir é limitar”. E o mal de limitar é a falta de espaço. Por isso não definas quem queres ser. Ou em quem te vais tornar. Vais acabar por o não ser, poupas uma desilusao que nunca existiu. Nunca te iludiste. Procura antes não ser algo que te entristeça. Procura evitar viver uma vida que torna a tua vida cinzenta. A aleatoriedade torna-nos homens e de homens passamos a pássaros conscientes de um bem maior e melhor. Não percas tempo a definir-te, a melhor parte é a tensao que se instala por não saberes. Não desperdices a adrenalina do desconhecido, não desperdices o prazer da surpresa e da conquista. Não des um “para que” à vida. Não compreendes a gravidade desse ingenuo acto? A morte tem um para que, a vida deve ser um conceito cheio de liberdade e opçoes. Definir a vida é encontrar a morte na esquina de uma rua demasiado cansativa e desinteressante. “Definir é limitar”, não te esqueças, não cometas esse erro. Morres e , no dia seguinte, continuas vivo. Mas perdeste a energia do sonho que tem sempre por base a liberdade.
Não pares para descodificar e desmistificar tudo o que és, tudo o que a vida é. Se for absurdo, deixa-o ser. Se te faz sorrir, que importa que seja absurdo? Quem define o que é absurdo? O melhor da vida é agir ao sabor do vento, sentir a vida em cada nervo e o medo em cada respiraçao. E , depois, talvez descubras um porque. És o teu maior puzzle, por isso mesmo, não arruines o teu proprio jogo com perguntas desnecessarias ou com o errado compasso de tempo.
“Definir é limitar”.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Desafio XXIV

Tiago para Alice in Wonderland:

You have 2 choices in life:
a) to find a way;
b) to make one.

Paulo Coelho


Alice in Wonderland para Ricardo:

Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos

Foi um imenso desperdiçar de gente
Para que ela fosse aquela perfeição
Solitária exilada sem destino
Retrato de uma princesa desconhecida - Sophia de Mello Breyner Andresen


Ricardo para Blue Storm:

"Ordinary people think merely of spending time. Great people think of using it."
(Autor desconhecido)


Blue Storm para Wings

“Olha a vida e sorri. E não te perguntes para quê. Porque o mais extraordinário dela é justamente não ter para quê. Saber para quê é dar-lhe uma finalidade conclusa, limitá-la, fechar-lhe o seu excesso. Pensa assim que o seu absurdo é a sua maior razão.”
Vergílio Ferreira


Wings para Tiago:

I want to be forgotten,
and I don't want to be reminded

The Strokes

terça-feira, 1 de junho de 2010

Desafio XXIII- Resposta

O mundo está errado e vai continuar errado. Não te estou a pedir que tenhas esse sonho patetico de o tentar mudar ou que encontres em ti um martir discreto e credivel. Aliás, não te estou a pedir nada. O mundo está errado, a injustiça de mãos dadas com a aborrecida ignorancia são o oxigenio desta gente. E se dormes à noite um sono tranquilo seguido de um dia banal e repetitivo cheio de uma inocua perfeiçao, és tao vazio e inutil quanto este resto de realidade.
Não ves a crua e sádica ironia que aparece como lei ética e moral desta estéril sociedade? Encontra as pessoas pouco conscientes dos seus actos, dos seus pensamentos, dos seus desejos. Entao instalou as licenças. Instalou a permissao .
Controle é uma palavra deste época. Liberdade controlada e sob hipotese de ser ou não permitida é um conceito desta época. E nada disto melhora o mundo, verdadeiramente. Entende, não é uma mudança. Não é um acto. É um ridiculo contornar de um obstaculo que ninguem quer ver de frente. O problema não é o conceito de licença, de permissao. O problema é a mentalidade.Se não há liberdade na mente, não há em lado algum.Podes espalha-lá. É inutil.
Mas o teu rosto sem qualquer traço de uma honesta e peculiar expressao acena que não. Com a calma arrogante de quem tem um argumento cheio de um optimismo rasco que nunca alcança o estado de frase bem construida. A sociedade evoluiu, dizes, veja-se os direitos das crianças. Veja-se as novas penalizações dos crimes contra crianças. Veja-se o novo conceito de infancia, de protecçao de infancia. Dizes tu. Com essa calma enervante de quem pensa que disse o argumento que arruinou o debate.
Ah! És mesmo um daqueles seres inuteis que se diverte a gastar o pouco oxigenio que nos resta! É que é exactamente essa a minha observação. Esta sociedade rigida mas afavel encontra permissoes juridicas para assuntos superfluos. Mantem-se fora do verdadeiro problema da questão. Não há licenças para se ter filhos. Qualquer um pode ser pai. E depois encontras o apogeu da incoerencia, porque ser-se pai não e puramente biologico, tem que estar lá, acompanhar a criança. Excepto quando é puramente biologico, puramente natural. Dizes que a sociedade intervem. Eu digo que continua a evitar olhar para si propria e observar os traços dos seus excessos, das suas injustiças e das suas incoerencias.
Não? Não?! Entao como é que alguem tao inutil, vazio e ridiculo como tu, cheio dessa atitude infertil e monotona de quem é melhor, não precisa de autorizaçao para ter filhos?
O mundo está errado. E as crianças são peças de arte ainda por desenhar, são pedaços de gente que ainda tem no seu olhar todas as hipoteses deste universo. Mas se qualquer um pode ser pai, entao estamos à merce de uma morte selectiva, talvez favoravel à verdadeira evolução.
Devia proteger-se verdadeiramente as crianças. De fundo. Deviam ser prioridade. São puras as crianças. Não sabem o que é a desgraça. Mesmo que a vivam, não sabem o que é o sabor cinzento e baço da desgraça.

Desafio XXIII - Resposta

Éramos tão jovens.
Demos as mãos caramelizadas pela amizade. Ríamos das nossas caras deformadas nos espelhos do labirinto que percorríamos. Os caminhos eram escolhidos por instinto nas múltiplas bifurcações de momentos. O próprio Dédalo não faria melhor.
Hoje eu sou um Ícaro que sobrevoa melancolicamente o labirinto. E que te vê rir para os mesmos espelhos, enquanto tens a sorte de não ser devorado pelo Minotauro.
Às vezes, tenho saudades.
Mas as promessas que fizeste, já as tinhas quebrado. As minhas saudades são o medo disfarçado de enfrentar o Sol que me espera.
Às vezes, tenho saudade.
Mas não posso desperdiçar o meu tempo. Já não há nada em ti que me dê sede.
A verdade é que nunca houve. Eu tenho a morte para conquistar.

Tu nunca viste a tua cara deformada no espelho.