domingo, 13 de junho de 2010

Desafio XXV - Resposta

A guerra moderna é um inferno privado, repleto de horrores fechados no seu contexto, porque perder um amor ou perder uma perna são sentidos com a mesma intensidade. A intensidade do amor perdido é impotente e chora perante a comoção tamanha que nos gera o quotidiano, a nós que somos filhos bastardos da ilusão do passado e dos sonhos dos nossos pais. A nós, que estamos perdidos entre o que somos, porque a vida é só isto, e o que desejamos ser, porque a vida tem que ser mais que isto. A nós, que nos rebolamos nos pequenos prazeres e preferimos o plano à concretização, porque algo quando o é tem já que passar a ser outra coisa. A nós, que fazemos dos mapas e dos roteiros um fim e não um meio, porque nos mapas estão os próprios caminhos pré-traçados que podemos trilhar. A nós, filhos da aventura e guerreiros contra o tédio. A nós, a quem uma fotografia a preto e branco de New York City continua a encantar como se não fosse um tremendo cliché, uma idealização impossível, um acompanhante para um cigarro e um Martini, um arranha-céus da ilusão colectiva construído com alicerces no lodo que é a nossa crónica falta de opções que nos maravilhem. A nós, porque as músicas estão escritas, os filmes estão rodados, os livros estão vividos. Fechem-se os teatros, os cinemas, as livrarias, porque nos prometeram uma vida à qual estamos vedados. E nós estamos muito, muito irritados. Irritados na guerra moderna: nós contra a ideia de nós. Eu contra a ideia de mim mesmo. O Mundo, esse é só o pano de fundo. É dentro de mim que se verte sangue num correr contínuo que desagua na melancolia, na desilusão, no desamparo, no querer e não chegar, no tocar e não sentir, no estar quase, mas não exactamente lá. Lá, nesse lugar de sonho onde há morte, e dificuldade, e sofrimento, mas pelo menos essas coisas são todas reais, e queimam, queimam como um cigarro na pele, como uma lâmina cortando uma tatuagem num pulso. Lá, nesse lugar onde não se vive neste semi-coma em que tudo vem nas mesmas doses, relativamente ao seu referencial específico, e perder um amor é como perder uma perna. Lá, onde nos sentimos numa existência que nos puxa, nos estremece, nos atira contra uma parede, nos roda e gira, nos parte os dentes, mas enfim, nos faz sentir feitos de electricidade. Lá, nesse sítio onde o amor não nos leva, o trabalho não nos conduz, e a nossa própria imaginação tem dificuldade em carregar-nos às costas. Onde quer que esse lá seja, haverá jazz, haverá um saxofone a ecoar nas ruas, uma chaleira ao lume, e a Ella a cantar notas dilacerantes. Haverá New York City, não a real, mas aquela, nocturna e iluminada, que alumia a vida que queremos. E haverá morte e sofrimento, amores e pernas perdidas. Mas nunca, por nada desse Mundo, nos sentiremos entorpecidos, sonolentos, trôpegos, distantes, foragidos, desencantados, aborrecidos, desinteressados, invejosos das pessoas simples para quem o mar dá tudo e a Natureza é mãe. E lá, nesse lugar que existe em algum sábado à noite de fim-de-semana da vida, quero morrer, soldado caído da minha guerra contra a minha apatia, contra a minha inércia. E lá, nesse espaço sem lugar a sinais de stop, sem faixas da direita para quem gosta de andar devagar, é onde quero ser enterrado. Enterrado na esquina onde tombar, morto como um cão posto a dormir, concretizado no anonimato. Uma vida que explodiu, mais do que parar.

“Tombou, nesta esquina, vítima de fogo amigo, o soldado R.T., herói sem pátria, habitante do éter, inimigo do vazio.”

Lá, haverá sons de tiros, e morte, e sofrimento, e o amor será bastardo e as pernas correrão muito para além do limite do cansaço. Sim. Mas também haverá jazz. E um saxofone distante a ecoar nas ruas.

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