Ainda me desmancho de riso de cada vez que a minha mãe nos obriga a ver o vídeo, num velho leitor VHS. Provavelmente ainda ando a fazer explodir aos poucos, retardatariamente, todo o riso que contive naquela manhã. E ocasiões não me faltam. A minha mãe gosta de passar o vídeo todos os fins-de-semana. Junta a família na sala, numa união perfeita para a sua ilusão de conjunto uno, sagrado, edifício santo. A família santa, no entanto, tem três elementos, e não quatro. Só três. Há aqui dentro um a mais. E por isso ela nem me chama. Só quando vou a cruzar a sala, por algum motivo, ela me diz “senta-te”, mais uma ordem do que um convite. Tal como faz a um vizinho, a um estranho, a um hóspede. Eu sou a vaca no presépio. A vaca que ri.
E falando de vacas. Aquela manhã do vídeo foi obviamente mais um dos belíssimos presentes da minha irmã. Ela era o menino Jesus da família. Beata até ao osso, um modelo de virtudes, a filha que qualquer mãe quer ter. E eu só me ria, quando escutava a minha mãe a dizer isso aos vizinhos. Eu não, eu sou desbocada, sou estridente e desagradável. Naquela manhã só me contive semi-composta porque o meu pai tinha uma mão agarrando forte a mão da minha mãe, que falava, e outra nas minhas costas, a torturar-me a espinha, abortando uma gargalhada de cada vez que a sentia a caminho.
E falando de vacas. Aquela manhã do vídeo foi obviamente mais um dos belíssimos presentes da minha irmã. Ela era o menino Jesus da família. Beata até ao osso, um modelo de virtudes, a filha que qualquer mãe quer ter. E eu só me ria, quando escutava a minha mãe a dizer isso aos vizinhos. Eu não, eu sou desbocada, sou estridente e desagradável. Naquela manhã só me contive semi-composta porque o meu pai tinha uma mão agarrando forte a mão da minha mãe, que falava, e outra nas minhas costas, a torturar-me a espinha, abortando uma gargalhada de cada vez que a sentia a caminho.
“Conte-nos, então, o caso da Cristina.”
Só isso já me fazia rir, porque eu sabia, sílaba a sílaba, o que a minha mãe iria responder à apresentadora do programa. Programa de televisão da manhã, pela semana, o público-alvo perfeito para cair na cantiga da minha irmã, que mesmo na sua cadeira de rodas, mais parecia estar num trono de onde estendia a sua influência. Ninguém lhe ficava indiferente.
“A Cristininha, minha filha, é uma santa. Ela foi sempre um exemplo para a irmã. Até para mim e para o meu marido. Olhe só, veja como ela, mesmo neste estado, é tão bonita! Mas nem um bocadinho vaidosa. Mesmo antes disto que lhe aconteceu, ela era muito humilde, estava sempre na igreja, organizava coisas para os pobrezinhos, e em casa era um gosto vê-la. Sempre muito calada e respeitadora. Ela lembrava-se sempre dos outros antes de se lembrar dela mesma.”
“É muito bonita, sim. Dói-nos o coração de a ver neste estado. Ora, conte-nos então o que aconteceu naquela noite.”
Só isto, já me fazia esquecer a pressão do meu pai nas costas, e sorrir descompassadamente com a minha mã a fungar, a levar o lencinho branco à vista para colher uma ou outra lágrima. É sempre assim nas experiências religiosas. Tem que haver lágrimas. E falando em pressão nas costas.
“A Cristininha foi a um encontro de jovens católicos. Foi no ano passado, no Pavilhão Atlântico. Ela tinha só dezoito anos. E quando voltava para casa, de mota com mais dois amigos, tiveram um acidente. Os médicos dizem que ela bateu com a garganta, e depois o pescoço foi para trás, e ela ficou neste estado. Muda, e paralítica. E ficou a santa que é.”
Eu não consegui. Mesmo cravando-me as unhas até romper a camisola, o meu pai não me conseguiu impedir de soltar uma gargalhada. A minha mãe chorava desconsoladamente, tapando os olhos com as costas da mão, e eu ria descontroladamente, tapando a boca com a manga.
“Toda a família ainda sofre com este acontecimento terrível. Vejo que a mana está especialmente nervosa.”
Não voltou a reparar em mim, nem me pediu para falar. Eu sou a irmã nervosa. Nervosa, pois. Já me chamaram outras coisas acabadas em “osa”. Invejosa, mentirosa, por exemplo. E a verdade é que, confesso, eu ficava nervosa de olhar para aqueles ferros e metais que mantinham a minha irmã compostinha na cadeira, sem se desfazer no encosto como um monte de gelatina. Por vezes, até se formava dentro de mim a mesma simpatia que imagino que ela despertasse aos milhares de espectadores que viam o mesmo. Mas depois via a sua cara, a beleza que ela sempre usou a seu proveito, e a expressão impassível, de santa de altar, com as sobrancelhas erguidas, e o olhar ligeiramente elevado, como se pertencesse mais ao céu que a esta terra, e isso, para mim, desmarcarava-a. Porque eu sabia que ela gostava das coisas da terra. Demais até. E agora, aquele Stephan Hawking de rabo de cavalo, estava mais uma vez a prostituir a empatia que gerava nas pessoas. E isso irrita-me, deixa-me fora de mim. Dá-me vontade de rir. Vamos então ter uma pequena lição de história, mãe?
Ficção: Ela foi sempre um exemplo. Ela é bonita, mas nem um bocadinho vaidosa.
Facto: Ela é bonita por ser extraordinariamente vaidosa. Mas a vaidade, escondia-a debaixo da minha cama, numa arca fechada. Um dia a minha mãe deu com um baú gigante de maquilhagem, colorações de cabelo, roupas mínimas e até perucas. E obviamente atribuiu a posse do baú a mim. Que belo exemplo, mãe.
Ficção: Ela era sempre muito calada, e lembrava-se sempre dos outros antes de se lembrar dela mesma.
Facto: Aqui estamos de acordo. Ela era calada porque não tinha nada para dizer. E lembrava-se dos outros porque essa era a sua forma de gostarem dela. Senão vejamos...
Ficção: A Cristininha foi a um encontro de jovens católicos.
Facto: A Cristininha disse que ia ao encontro, mas nunca chegou efectivamente a entrar no Pavilhão. Ficou à porta a beber com o grupo do costume.
Ficção: Quando voltava para casa, de mota com mais dois amigos, tiveram um acidente.
Facto: Falta dizer que o acidente foi na Marginal de Cascais, e nós moramos junto ao Pavilhão Atlântico. Mãe, que fazia a tua filha na Marginal às três da manhã? Os três, em cima de uma mota que não pode transportar mais de duas pessoas. Os três bêbados. Talvez, e isto é só uma hipótese, a tua filha estava lá porque foi com os dois amigos para o Guincho. Para um sítio escondido, perto da praia.
“Dona Rosa, eu espero que compreenda esta pergunta, mas eu tenho que a fazer, porque há milhões de pessoas em casa que podem pensar nisso, e por isso mais vale dizê-lo já. Mas a sua filha estava com dois rapazes, na mota. Por certo entende o que vem imediatamente à cabeça de alguém mais mal intencionado...”
“Olhe, isso só pessoas mesmo muito mal intencionadas. A minha filha é uma santa. Os médicos fizeram testes.”
Ficção: Os médicos fizeram testes.
Facto: Os testes dos médicos disseram que a minha irmã era virgem. E estão certos. Ela era conhecida na escola por isso. Dizia que só perderia a virgindade no dia do casamento. E eu dava gargalhadas de cada vez que ela o dizia. Ninguém sabia porque queria ela fazê-lo, ela não era de se justificar nem de apresentar razões. Ditava a sua razão como um decreto papal. Mas mãe, da idade dela já eu sabia há muito tempo que sexo, faz-se de muitas maneiras. E a minha irmã sabia bem disso. E mãe, não foi só a mota que levou carga a mais em cima naquela noite.
“Dona Rosa, o que a leva a dizer que a sua filha é uma santa?”
“Porque depois vieram os milagres. Ela esteve muitos meses no hospital, mas depois pudemos trazê-la para casa. E depois eu pus-lhe um crucifixo pendurado no quarto, e logo quando ela chegou ela começou a olhar para ele e assim, a chorar. E depois quando eu tive uma doença eles levaram-na lá e ela curou-me.”
“O que a dona Rosa está a querer dizer é que a senhora estava de cama com pneumonia, e ficou instantaneamente curada quando a sua filha a tocou, é isso?”
“E não fui só eu. As minhas vizinhas têm ido lá a casa, e mal a vêm caiem logo de joelhos. A Cristininha é uma mártir do Senhor. Precisamos de saber a mensagem que ela nos veio trazer. Ela foi poupada pela morte para nos iluminar o caminho.”
“Dona Rosa, conte-nos o que a sua família veio aqui pedir hoje.”
“Existem uns aparelhos muito caros, em que ela pode escrever a mexer os olhos, e depois a máquina diz o que ela escreveu. Nós não podemos comprar um para a Cristininha. Mas queremos muito conhecer a mensagem que o Senhor a mandou trazer. Ninguém sobrevive a tanto sem ter uma coisa muito importante para revelar.”
E foi assim, com este momento televisivo, que se iniciou o grande peditório para dar voz à Cristininha. Uma voz metálica, como os ferros que a sustinham, mas ainda assim uma voz. E o dinheiro choveu. A minha irmã tornou-se doce como mel para senhoras abastadas com problemas de consciência poderem esbanjar o dinheiro dos maridos. Em duas semanas, a conta criada especificamente para esse propósito já tinha ultrapassado o custo do equipamento. Em três semanas, a Cristinha já dava lucro. Em dois meses, a minha mãe estava à janela ansiosamente à espera que o equipamento fosse montado. A santa ia falar.
Ficção: A minha irmã curou a minha mãe da pneumonia.
Facto: A minha mãe estava a ser acompanhada e medicada há mais de uma semana. A pneumonia praticamente já se tinha ido embora e, para ser sincera, acho que ela só se mantinha na cama porque ela é muito preguiçosa. A Cristininha, esse é o seu emprego a tempo inteiro, o melhor que já teve na vida. Isso é que a fez levantar-se.
A máquina chegou, os senhores montaram-na, colocaram todos os restantes fios e ecrãs em torno da minha irmã. Parecia uma antena gigante, um receptor cósmico qualquer. A minha irmã, o menino Jesus da família, nascida no dia em que ia morrendo. Aquela que para trás desse dia não tem história. Aquela dotada de sabedoria divina, aquela que comoveu o país. Aquela que pode agora falar.
A antecipação era dolorosa. Os olhos começaram a mover-se. A minha mãe, de terço nas mãos e dedos entrelaçados, parecia em transe. Parecia estar a olhar para os olhos de Deus enquanto se movem.
“P-“
“-o-“
“-r-“
E que disse Deus?
“F-“
“-a-“
Oh, bolas, não tive paciência para ler todas as letras que ela picava com o olhar. Fui-me sentar no sofá e esperei que o sistema de voz repetisse alto. Foi em tom apressado e monocórdico que uma voz espantosamente orgânica e feminina disse:
“Por favor, alguém me corte o cabelo.”
A minha mãe, por uma vez, rir desmesuradamente, numa gargalhada a que se juntaram todos os presentes, o meu pai, os técnicos, os jornalistas que gravavam o momento para mais tarde passar no programa da manhã. Eu não sabia o que dizer ou fazer. Por uma vez, nem rir consegui.
Ficção: A minha irmã chorou ao olhar para o terço.
Facto: É curioso como nunca me tinha lembrado disto. A minha mãe pendurou o terço no espelho grande da cómoda da minha irmã. Quando ela chegou, olhou o terço e chorou, ela na verdade estava a ver a sua própria imagem reflectida no espelho. O seu rosto delicado, as feições perfeitas, que são o que o Mundo de fora via, não contavam nada para os seus próprios olhos. Esses, não viam senão as olheiras gigantes, as cicatrizes, os dentes em falta, o cabelo longo espigado.
A minha mãe foi lesta a beijar-lhe o rosto e a interpretar bem alto o que a filha disse.
“A minha filha está a dizer-nos que devemos viver as nossas vidas com humor. Mesmo nesta infelicidade, ela pede-nos que sejamos positivos. Esta é a mensagem do Senhor. Rir, rir muito!”
Excepto quando sou eu a rir deste circo. Neste Mundo, quem fala, quem grita, quem esperneia, é quem menos se ouve. E custa-me a entender porque tem que ser assim, porque temos que ligar a sabedoria ao silêncio. Quem menos fala, menos tem para dizer. Mas é escusado tentar até entender. No final, as pessoas vão sempre interpretar tudo como lhes apetece, e por isso é bem feito o destino que têm. A verdade, essa, é a única verdadeira vítima nesta vida.
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