Num ápice, a caixa de madeira afundou-se no buraco, assim como ela se afundava nos seus pensamentos. Qual seria o conteúdo?, perguntava a si mesma. A madeira selada, composta e envernizada não o deixava adivinhar. Que partes teriam sobrevivido ao impacto? Que peças estariam inteiras? Haveria alguma coisa ali dentro, ou seria apenas um enterro simbólico de uma vida cujas provas materiais haviam sido pulverizadas entre o ar e a água? Que moléculas outrora constituintes de um corpo se manteriam ainda unidas, gravitando estanques dentro de uma pele única, barreira elástica que serve de fronteira da entidade humana? Senhora de uma imaginação intensamente visual, espreitava para dentro do buraco, para dentro da caixa, e via respostas. Via-o, via partes de um corpo dilacerado, não muito maior que um feto. Para ela, aquele não era um enterro. Era um parto ao contrário, um retorno a um estado primitivo, uma lacuna no espaço-tempo que permitiu a reversibilidade de uma vida. Sentia-se simultaneamente privilegiada, como mãe, ao poder assistir ao anti-nascimento do filho, e também horrivelmente amaldiçoada. Porque não é suposto uma mãe estar presente naquele momento.
As perguntas, essas, mais do que nascerem, jorravam como de uma fonte inesgotável na sua sua cabeça durante todo o caminho até casa. O marido, cansado, envelhecido dez anos em dez dias de incerteza, requisitou-lhe com um olhar doce e uma mão no ombro a permissão para a deixar sozinha. “Vou-me deitar um pouco, está bem?” era daquelas perguntas que claramente significam outra coisa, significava “se eu me for deitar tu ficas bem e não cometes nenhuma loucura?”. Mesmo tendo-lhe respondido que sim, que podia ir descansar, ou descansado, deu por si numa tremenda angústia ao ver-se sozinha, sentada no sofá inclinada para a frente pelo peso das questões, sem conseguir recostar-se. Parecia-lhe ingrato estar ali confortável e o seu menino numa caixa fria, envernizada, dura. Acordou de um certo semi-transe em que se entra quando os pensamentos, de tão profundos, sugam a atenção para dentro. Da sala, necessitava apenas de um curto rodar de cabeça para que o seu olhar entrasse em choque com a porta do quarto dele, entreaberta, deixando adivinhar que ele não estava. Porque quando ele estava fechava-se a porta. Era como se nenhuma divisão existisse, como se se tratasse de um anexo secreto. Era assim que ele queria.
Caminhando aos soluços, lentamente, atemorizada, até ao quarto, podia ver, do lado de lá, o fantasma do seu filho, esperando-a. Só não saberia o que fazer se ele efectivamente lá estivesse. A cada passo, detinha-se a decidir se corria a abraçá-lo, ou se fugia de medo. Começando por meter os dedos por entre a fresta de onde saía a luz da grande janela que dava para o mar, demorou a ganhar coragem para puxar o monte de madeira que, naquela casa, sempre foi como que uma fronteira entre dois países. Como pode alguém viver dezanove anos, dia após dia, com um desconhecido em casa? Em casa, mas naquela outra caixa, tão fria e dura quanto acabara de imaginar o caixão. O olhar demorou-se em cada detalhe, como se estivesse num sítio estranho que contemplava pela primeira vez. As paredes, brancas, nuas, a cama curta, estreita, de lençois brancos e cobertor azul, a secretária de contraplacado envernizado, claro, semelhante ao roupeiro, uma cadeira preta, e um enorme tapete castanho – tudo criava a ambiência de um mosteiro laico. Em reclusão, sem gavetas, objectos ou acessórios, era assim que o seu filho vivia, era aqui que se espalmava e lançava as raízes da sua vida. E todo aquele tempo ela estava a dez centímetros de tijolo de distância, na sala, sentada no sofá. E nunca, por um momento só, uma dessas raízes a tocou. Nunca se perguntou no que se passaria deste lado. Pensou por breves instantes se teria sido uma boa mãe. Mais importante, se teria sido uma boa amiga. Se sequer teria sido uma compania agradável. E não há imagem que lhe pudesse responder a essa pergunta.
Para alguém que não tem nada, o computador em cima da secretária é talvez o último esconderijo de memórias, onde se escondem fotografias e segredos. Chamou-lhe a atenção que do lado direito do monitor um post-it esvoaçasse. Mesmo com a janela fechada. Continha uma longa lista de sítios e respectivas palavras-passe, todas diferentes de local para local. Messenger, Facebook, Hi5, Blogger, e-mails pessoais Yahoo, Gmail, e em outros locais que lhe eram desconhecidos. Ali estava ele, o fantasma virtual do seu filho sorrindo para si. Ela agarrou-o com força, e ligou o computador. Queria abraçá-lo. E logo quando tinha prometido ao seu marido que não cometeria loucuras.
Por instantes, perguntou-se se seria ético violar a privacidade do seu filho. Mas, como sempre acontece, a curiosidade venceu o instinto moral, e acedeu ao Facebook. Ele lá estava. Não no cemitério. Era um local virtual sem dor, sem mágoa de perda, sem lamentos. Ali, ele estava tão vivo como ela. Estava rodeado de amigos, de dezenas de mensagens publicadas no mural.
“Hey! Onde andas?”
“Então pá, tavas no Rio e depois o pessoal ouviu a cena do avião... Ficámos preocupados! Diz qualquer cena!”
“E aí, brasileiro! Espero que estejas bem...”
“Por favor diz-me que aquele não era o teu voo!”
“Responde, pá! Tá tudo preocupado contigo!”
“Epá, q cena... DIZ-ME q tás bom!”
E só aí, pela primeira vez, se lembrou que não tinha avisado os amigos. Para além dela, do marido e de meia dúzia de familiares, ainda ninguém sabia. Caiu-lhe uma certa agonia ao ver a campa, solitária, fria, ao imaginar dia após noite a sucederem-se sem visitas. E se é verdade que ali, naquele espaço, seria o momento e o sítio adequado para publicar a notícia, olhar aquela foto, tirada no Quénia no ano anterior, onde, por detrás de óculos de sol, protegiam-se dois olhos tão felizes, era senti-lo num espaço onde estava tão vivo... que não se conseguiu forçar a fazê-lo. Para que uma campa seja visitada, matar um ser virtual que nunca está sozinho? Não. Naquela outra caixa não há senão morte. Se aqui ainda há vida, pois que assim fique. Desligou o computador, pegou no post-it e levou-o consigo.
Passaram-se dias até ter ligado o seu próprio computador. Recebera um e-mail de uma colega.
“Um colega do teu filho ligou para cá, acho que queria falar contigo para saber dele... Não sabia que lhe dizer, pedi para deixar o contacto. Está aqui o número dele.”
A situação era insustentável. Pegou no post-it e acedeu de novo ao Facebook do seu filho. Tinha uma nova mensagem privada. Não resistiu a abrir.
“Olá. :) É só para te dizer que o contacto que me arranjaste para o trabalho foi excelente. Eles aceitaram-me. Vou conseguir pagar o quarto! Adoro-te.”
Recuou mais longe. Não havia mais mensagens desta pessoa. Utilizou as outras palavras-passe. Leu vorazmente a sua correspondência. Descobriu um filho que nunca teve, ou nunca soube que teve. Interessado, carinhoso, dinâmico, daquele computador o seu filho movia tudo aquilo que canalizara para uma existência virtual. O afecto que não dava em casa, à família, transferia inteiramente para aquela rede de amizades. Todas as memórias que não tinha guardado nas paredes do quarto estavam nas paredes das redes sociais e nas caixas de correio electrónico. Para aquela rapariga, que vivia um momento difícil, tinha encontrado um emprego e um quarto para sair de casa e mesmo assim continuar a pagar a universidade. Com outro, tinha organizado uma viagem a Espanha, porque nunca havia saído do país. E ainda que estes pequenos gestos, após reflexão ponderada, não lhe parecessem sequer extraordinários, fizeram-na como que descobrir um desconhecido. Fizeram-na entender que, quando caiu, o avião levou uma pessoa importante. Porque é sempre isso o mais difícil na morte, a quebra abrupta com um caminho partilhado. É uma linha de caminho de ferro que se quebra, é uma estrada que culmina num precipício. É um avião que cai a pique no Atlântico.
Nessa altura, decidiu que aquela pessoa, aquele filho que ela nunca conheceu, não podia morrer. Trouxe o avião de volta à sua rota, abriu o mural e escreveu:
“Pessoal, tive problemas para voltar a Portugal, fiquei retido no Rio de Janeiro por causa daquele avião que caiu. Mas está tudo bem! Desculpem ter-vos assustado, e obrigado pelas vossas mensagens. Tenho GRANDES novidades! :D”
Não foi sem dúvidas que carregou no botão para publicar. “Para tudo há solução menos para a morte”, diz-se. Mas neste caso, de certa forma, acabara de substituir a irreversibilidade da morte pela irreversibilidade desta existência virtual, desta manutenção artificial de consciência da qual seria muito difícil algum dia escapar. Como algum dia vir a revelar a verdade a alguém? Não; a vida, que é sempre frágil e provisória, seria agora qualquer coisa de permanente.
Após ler toda a sua correspondência, conhecia com precisão a vida do seu filho. Sabia-lhe os gostos mais viciantes, os vícios mais embaraçosos, e os embaraços mais frequentes. Sabia-lhe as palavras que usava, as expressões preferidas, as abreviaturas, os códigos e a maneira como alterava o discurso consoante a pessoa com quem falava. A vida dela tornou-se na descodificação de uma outra existência. E, em semanas, já enviava e-mails frequentes, espontâneos, para amigos, já actualizava diariamente o Facebook, já tinha resposta para quem lhe dizia que não aparecia nas aulas (“vou mudar de curso!”), para quem se queixava de não aparecer para cafés (“tenho andado engripado... devo ter apanhado alguma coisa no Brasil!”), para quem simplesmente lhe dizia que tinha saudades suas (“eu também... vamos marcar uma viagem, vamos a algum lado juntos :)”). Cada sorriso virtual era sentido. Cada esperança gerada em outros olhos era um gosto tremendo nos seus. Aquela segunda pele do seu filho tinha que ser mantida. Como mãe, tinha-lhe dado vida por uma segunda vez. E, desta vez, ela sentia-se presente na vida do seu filho. E isso dava-lhe uma felicidade que, até então, desconhecia. Naquela altura, ele era demasiado importante para ser perdido. E ela não o poderia perder outra vez. Não desta vez.
Até que chegou aquele e-mail. As semanas já se tinham tornado em meses, e a presença daquele ente virtual já era parte da família. Cada noite, o marido pedia-lhe licença para descansar, e o seu filho colocava mais uma mensagem no Facebook. Por vezes, conseguia até imaginá-lo a fazê-lo por si mesmo. Até que aquele e-mail veio estragar tudo.
“Agradeço a sua deslocação ao Rio, e quero lhe dizer que a nossa reunião correu bem. Ficámos todos muito impressionados com sua vontade de deixar Portugal e se mudar para cá, para trabalhar com a nossa empresa. Infelizmente, não poderemos recrutá-lo ainda. Recomendamos que termine seu grau primeiro, e no final nos contacte, pois teremos todo o gosto em o receber.”
Senhora de uma imaginação intensamente visual, nunca imaginara isto. O Rio era mais uma das suas frequentes viagens, e nunca pensou que fosse mais que isso. Desde que completara dezoito anos que não fazia outra coisa. Era viagem para aqui e para ali, quanto mais longe melhor. E até ao Quénia já tinha ido. E se é verdade que pela cabeça tudo lhe passa, e se é verdade que até o tinha já imaginado, em noites sem dormir, vivendo uma vida aventureira como correio de droga ou traficante de marfim, correndo selvas e conhecendo gente perigosa, a última coisa que poderia visualizar era o seu filho, de fato e gravata, procurando emprego numa empresa reputada que lhe permitisse sair de Portugal. Para sair daquela casa, ou pelo menos daquele quarto-anexo cuja porta nunca se abria. Para a deixar, para a abandonar. Antes de morrer, já o seu filho planeava a morte para ela.
E sentiu raiva, muita raiva, demasiada raiva, por aquele miúdo egoísta que não pensou nela, que procurava fugir para o outro lado do Mundo quando do outro lado da parede estava ela, que ele nem conhecia. Como mãe talvez sim, mas não como pessoa. Ela, ela, ela. Que sempre fez tudo por ele, que ainda agora o mantinha artificialmente vivo. Ela, que mantinha só para ele o que pensava que ele mais queria: os seus amigos! E ele, egoísta até para com eles. Ele, tão interessado pela amizade, tão desinteressado da família, e tão infiel a ambos com os seus planos de fuga. Pois se ele queria viver longe, que se fosse embora para sempre. Impulsivamente, escreveu no Facebook uma última mensagem.
“Pessoal, foi bom todo o tempo que passámos juntos, mas sinto que a minha vida precisa de mais. Preciso de ver outras coisas. No Rio encontrei um emprego, e vou mudar-me para lá. Espero que não me levem a mal por querer começar uma vida nova. Um dia, sei que nos vamos reencontrar. E nesse momento, pessoalmente, explicarei a cada um de vós, pessoalmente, porque tinha que vos deixar. Adoro-vos a todos. Até sempre.”
“O utilizador foi removido.” Fechou o computador. E, mais do que em algum momento antes, chorou agoniada e destroçada pela culpa. O seu filho estava morto. E, de alguma forma estranha, ela sentia-se uma assassina. Sentia que o tinha enviado para uma morte solitária, por nenhuma razão outra do que egoísmo seu, e raiva, raiva porque aquilo que ele queria da vida ela não lhe podia dar nem quando ele estava vivo, nem já depois de morto. A sua campa, desconhecida e sem visitas, guardaria para sempre o segredo do seu nome. E, assim, perduraria apenas o mito do rapaz que apagou a vida antiga e foi viver para o Brasil. Os mitos não são mais do que a extensão que aqueles que ficam criam daqueles que recusam ver partir. Porque afinal a morte é injusta quando abruptamente interrompe os planos de alguém destinado a algo maior. Porque afinal a morte daqueles a quem queremos bem é sempre mais inconcebível do que a nossa própria morte.
A razão pela qual sempre gostei de histórias tristes está espelhada nesta tua resposta ao desafio.
ResponderEliminarA irreversibilidade da morte é a unica metáfora possível para a irreversibilidade das consequências de alguns actos.
Não consigo deixar de ter pena desse rapaz que criaste e que morreu profundamente só, quando lhe roubaram a única coisa em que ele conseguia estar vivo.
E a história triste serve para isso. Para nunca chegares a perdoar "a mãe". Para a condenares quando a voltares a encontrar, antes que seja tarde mais, outra vez.