sexta-feira, 14 de maio de 2010

Desafio XXI - resposta

Ficamos sós. Como numa experiência de ficção científica.

As luzes apagaram-se dentro da sala e durante as primeiras horas a maioria das pessoas gritou e tentou empurrar a porta. Mas como a sala não tinha janelas nem qualquer tipo de mobiliário, rapidamente o cansaço apalpou e sossegou cada uma das almas e uma percepção de “não-saída” instalou-se no círculo que imaginamos formar, na mais profunda escuridão.

Nas primeiras horas eles nunca souberam que eu estava ali. Como sempre acontecera na minha vida, a primeira fase de sociabilidade num novo grupo fora a indiferença. Eu sempre fui a pessoa que não se cansava por portas sem saída.

Nessas primeiras horas eu fiquei sentada num canto, a sentir as duas paredes concorrentes e o vácuo que ficava entre elas, algures no fundo das minhas costas. Naquela profunda escuridão, isso foi tudo o que eu fiz, procurar um canto da sala. Daquele meu referencial fiquei a ouvi-los pedir socorro, numa escada de hierarquia social que se distinguia pelo timbre de voz.
Mas aquele ambiente era tão agressivamente desprovido de coisa alguma, que a minha presença apareceu muito antes do esperado.

Foi quando eles se abandonaram ao medo, que o medo se cravou no mais profundo coração das almas que ali estavam. Eu disse: “Estamos sozinhos”.
E a minha voz estalou esse medo, essa capa que lhes cobria o coração. Ouvi um soluço profundo. Os outros mantiveram o silêncio.
Alguém disse “ Não, eu não estou sozinho”. Outras vozes logo se seguiram. Começaram a enumerar as suas esposas e filhos, os seus maridos e os seus cães. Enumeram os amigos e os namorados, as flores, as guitarras, os cds, as fotografias. Enumeraram as carreiras, as viagens, o passado e o futuro que pretendiam.
E quando finalmente se calaram, eu deixei-os abandonados à sua “não-solidão”. Sabia que eles iam percorrer a viagem que eu já fizera há anos atrás.
Passado algum tempo, comecei a ouvir as cabeças a rolar, como numa execução solene. Sem barulho, todos avançaram para o cadafalso sem hesitar. Eu fechei os olhos e teci um breve murmúrio por cada uma das cabeças que se cortava à minha frente, numa realidade pintada de negro. Poucos eram os que sobreviviam, eu sabia. Na verdade toda aquela gente sempre fora só. Escolheram os primeiros amigos e namorados que podiam, as primeiras vidas que lhes eram oferecidas. Não queriam morrer sozinhos, pensavam eles que assim morriam preenchidos.
Fechei os olhos por cada uma daquelas almas. Eles não eram capazes de aguentar a verdade, como eu era.

Quando pensei que estava (finalmente) sozinho, ouvi um novo soluço. Alguém percorrera a viagem sem se atirar pelo precipício. O meu coração mexeu-se. Uma réstia patética de “não-solidão” ardeu naquela sala.
“Eu não estou sozinha” disse ela. “Deus está comigo, Deus está sempre comigo”. E depois, a um passo de seguir o mesmo caminho que os restantes, disse-me, olhando-me nos olhos “Tu não acreditas em Deus, pois não? Mas ele está aqui, e ele nunca criaria uma vida destas. Deus nunca faria uma vida tão triste. Deus não nos faria tão sós”.

Pensei em mentir-lhe, porque as palavras dela eram apenas socorro numa língua estrangeira. A cabeça dela estava prestes a cair como a dos outros. A ideia mirabolante de Deus fora um fósforo apenas um pouco mais longo. Mas as mentiras não tornam a vida menos triste.
“Eu não acreditava em Deus, para abraçar a consciência de que estava profundamente só. Mas Deus existe, lamento. Deus existe e fez a vida exactamente assim.
Deus existe. Deus está aqui. E tu continuas sozinha.”

Levantei-me da mesa do café, atordoado.A empregada sorria-me. Pensei em dizer-lhe que não valia a pena sorrir debaixo daquela triste rotina de cafés escaldados e tipos que a apalpavam. Que mais valia ela abandonar tudo, perder-se em tudo e depois respirar o oxigénio mais puro, ainda que brevemente.
Mas levantei-me e continuei a minha viagem.
Ela não ia aguentar.

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