quinta-feira, 6 de maio de 2010

Desafio XX - Resposta

Senta-te aqui neste cadeirão antigo, avô, e conta-me uma história. A história já começava com o teu passar dos dedos pela protectora capa dura, suavemente percorrendo-a com um toque gentil de canto a canto, de baixo a cima, como quem acaricia um velho amigo reencontrado depois de muito tempo, antes do início da conversa. A estória que me contavas não faz sentido sem ti como personagem principal, protagonista do conto que narravas. A minha história e a minha lição contam-se ao contar como tu escolhias um texto ao acaso e o declamavas como a um salmo, com a mesma reverência pela palavra que para ti era divina, com a mesma esperança que dentro da minha cabeça ela viesse a ecoar quando alguma situação me colocar perante a mesma escolha, o mesmo dilema.

E o Mundo que imaginava e criava continha-te sempre. Quando me falavas da neve e da cidade dura onde a inocência era a única cor, eu colocava-te um gorro berrante, umas luvas de dedos cortados e um casaco para o frio, e transportava-te para lá, para dentro do conto. Punha-te uma caixa de fósforos nas mãos, e tu passavas a ser a menina. Porque cada frase docemente arrancada do arrastar da tua voz era tão sincera que eu só a concebia como tendo sido vivida. Eu não conseguia imaginar que pudesses não ter passado por aquelas privações, aquelas tristezas, aqueles triunfos e aquelas alegrias. O teu livro velho não eram estórias. O teu livro era a tua história. A tua biografia.

E não poderei nunca esquecer-me dessa imagem gravada a ferros na minha memória. Eu, sentada no chão, longe do teu cadeirão, para que nada escapasse no meu campo visual curto e lentamente mutável. Recorrias tanto à voz quanto ao suave bater dos pés, mais agitado quando a trama se tornava mais intensa, quanto à mão direita que, num gesto acompanhante do timbre da tua voz, por vezes se afastava do seu trabalho de restringir a pressa das folhas em soltar o desenlace. E os teus olhos, esses tinham personagens de corpo inteiro impregnadas de sentimentos fortes, expressivos.

E eu, menina hipnotizada pela tua força, pela oscilação da tua voz, caminhava livre nesse Mundo alternativo que me apresentavas. Resgatavas-me do laço no cabelo e dos sapatos hirtos, envernizados, capricho da minha mãe mas que tanto me magoavam, e que me obrigavas a tirar quando entrava na tua sala. Impossível esquecer aquelas palavras, essas totalmente tuas, com as quais encerravas as histórias de princesas que tanto me encantavam. "As meninas bonitas", dizias tu, "não são as que têm o laço e os sapatos. São as que vêem coisas bonitas no Mundo. As meninas deste livro são bonitas por isso, poque são capazes de ver coisas lindas onde elas existem; elas reconhecem as flores, os rios, a coragem, a sabedoria. Não é por serem princesas, nem é por terem uma cara bonita. Por isso, não saias daqui a querer ser uma princesa. Sai daqui a querer saber onde estão as coisas bonitas."

E do abraço final que me davas, apertado e carinhoso, soltavas-te para me revelares os olhos mais cheios de vida que já vi. Os olhos mais bonitos.

Deita-te aqui neste caixão de pinho, avô, e deixa-me contar-te uma história. Agora os teus velhos olhos expressivos já não contam histórias. Cansaram-se, fecharam-se, levaram consigo a força eléctrica que te transportava para dentro dos livros. E só agora, mulher feita, casada, me dou conta de quão principal foi o teu papel na minha vida. Até hoje, mesmo vincado na memória, via-te como um distante figurante numa estória minha, agigantado pela imaginação de criança. Mas aqui, vendo-te quieto, tão longe da personagem que és dentro de mim, pergunto-me em que pessoa me teria tornado se não tivesses gasto tanto tempo a abrir-me a janela para a beleza.

E eu, mesmo assim, cometi erros. De tanto procurar a beleza no Mundo, pensei sempre tê-la achado nos sítios óbvios. Tornei-me numa rapariga daquelas que se vêem e que revêem nas revistas. Tornei-me uma personagem dessas revistas, tornei-me até na capa que outros dedos por certo acariciavam com outras intenções muito diferentes da tua. Preenchi o Mundo de revistas, e não de livros. E nessa altura, afastei-me de ti. Ao tentar procurar o que me ensinaste, deixei-te ao abandono. De tal forma que já não te reconheço agora que te olho com um olhar repleto de personagens de corpo inteiro impregnadas de sentimentos tristes, saudosos.

Mas eu achei-me, e achei-te. Achei-te nele. Procurei o meu princípe para me tornar na princesa de uma das tuas histórias. E quando ele apareceu, foi tal como me disseste que seria. Tive que abrir mão dos laços e sapatos que todos os homens vestem achando que as mulheres apreciam mais um bom fato do que uma boa história. Porque ele não os usa. Tive que me lembrar que o que me poderia fazer bonita era reconhecer a verdadeira beleza no Mundo.

E eu vi-a, emanando deste homem, com uma luz e uma intensidade tão grande, que nem as flores, os rios, a coragem ou a sabedoria poderiam rivalizar consigo. E o que ele tinha era uma paixão forte que colocava em tudo o que dizia e em tudo o que fazia; era uma força sobre-humana que lhe moldava a voz e fazia a terra tremer a toda a volta quando falava; eram as palavras que usava nas estórias que escreve; era o olhar. O olhar, não os olhos castanhos banais, nem a boca proeminente, nem o nariz arqueado, nem as mãos pequenas, nem a envergadura curta. Quando ele me disse que era feio, eu respondi-lhe com as tuas palavras. O que nos torna belos é a beleza que sabemos reconhecer no Mundo. A beleza está do lado de lá, não do lado de cá do espelho.Partam-se os espelhos, e seremos mais bonitos que nunca.

E desde que ele se tornou na personagem principal da minha história, eu comecei a tornar-me na personagem principal das estórias dele. Estórias que mal acaba de escrever me lê, enquanto me sento no chão do nosso quarto, bem longe dele para que nada escape no meu campo visual curto e lentamente mutável. Ele recorre tanto à voz quanto às pernas que junta e pressiona quando a trama se tornava mais intensa, quanto às costas que dobra enquanto se inclina para à frente à medida que a voz se torna mais fina e as palavras mais rápidas. Esses são os momentos mais bonitos da minha vida. E foi contigo que eu aprendi a ver tanta beleza.

2 comentários:

  1. Diferentes pormenores desta história me encantaram.
    Para além de achar que atinges exactamente o objectivo ao descreveres a beleza , como sendo algo que está do lado de lá ( e por isso, what's the fuck if you see me ugly?That's your problem) acho que colocas muito bem a questão da atracção pelas figuras do passado que tanto nos influenciam. Porque acabamos sempre por amar alguém em quem vemos uma beleza do passado.

    E gosto muito do ênfase na distância que a tua personagem cria, para "ver o quadro todo". Porque quando se está sempre em cima, quando se vive "dentro" perde-se a noção do cenário completo, como se observasses um quadro impressionista disforme nos seus vários borrões.

    Essa distância é imprescindivel para se apreciar o todo pelo todo e desfrutar da verdadeira beleza!

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  2. Não saberia sintetizar o que acho melhor do que o fazes neste comentário. Muito obrigado. :)

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