segunda-feira, 31 de maio de 2010

Desafio XXII - Resposta

Num ápice, a caixa de madeira afundou-se no buraco, assim como ela se afundava nos seus pensamentos. Qual seria o conteúdo?, perguntava a si mesma. A madeira selada, composta e envernizada não o deixava adivinhar. Que partes teriam sobrevivido ao impacto? Que peças estariam inteiras? Haveria alguma coisa ali dentro, ou seria apenas um enterro simbólico de uma vida cujas provas materiais haviam sido pulverizadas entre o ar e a água? Que moléculas outrora constituintes de um corpo se manteriam ainda unidas, gravitando estanques dentro de uma pele única, barreira elástica que serve de fronteira da entidade humana? Senhora de uma imaginação intensamente visual, espreitava para dentro do buraco, para dentro da caixa, e via respostas. Via-o, via partes de um corpo dilacerado, não muito maior que um feto. Para ela, aquele não era um enterro. Era um parto ao contrário, um retorno a um estado primitivo, uma lacuna no espaço-tempo que permitiu a reversibilidade de uma vida. Sentia-se simultaneamente privilegiada, como mãe, ao poder assistir ao anti-nascimento do filho, e também horrivelmente amaldiçoada. Porque não é suposto uma mãe estar presente naquele momento.

As perguntas, essas, mais do que nascerem, jorravam como de uma fonte inesgotável na sua sua cabeça durante todo o caminho até casa. O marido, cansado, envelhecido dez anos em dez dias de incerteza, requisitou-lhe com um olhar doce e uma mão no ombro a permissão para a deixar sozinha. “Vou-me deitar um pouco, está bem?” era daquelas perguntas que claramente significam outra coisa, significava “se eu me for deitar tu ficas bem e não cometes nenhuma loucura?”. Mesmo tendo-lhe respondido que sim, que podia ir descansar, ou descansado, deu por si numa tremenda angústia ao ver-se sozinha, sentada no sofá inclinada para a frente pelo peso das questões, sem conseguir recostar-se. Parecia-lhe ingrato estar ali confortável e o seu menino numa caixa fria, envernizada, dura. Acordou de um certo semi-transe em que se entra quando os pensamentos, de tão profundos, sugam a atenção para dentro. Da sala, necessitava apenas de um curto rodar de cabeça para que o seu olhar entrasse em choque com a porta do quarto dele, entreaberta, deixando adivinhar que ele não estava. Porque quando ele estava fechava-se a porta. Era como se nenhuma divisão existisse, como se se tratasse de um anexo secreto. Era assim que ele queria.

Caminhando aos soluços, lentamente, atemorizada, até ao quarto, podia ver, do lado de lá, o fantasma do seu filho, esperando-a. Só não saberia o que fazer se ele efectivamente lá estivesse. A cada passo, detinha-se a decidir se corria a abraçá-lo, ou se fugia de medo. Começando por meter os dedos por entre a fresta de onde saía a luz da grande janela que dava para o mar, demorou a ganhar coragem para puxar o monte de madeira que, naquela casa, sempre foi como que uma fronteira entre dois países. Como pode alguém viver dezanove anos, dia após dia, com um desconhecido em casa? Em casa, mas naquela outra caixa, tão fria e dura quanto acabara de imaginar o caixão. O olhar demorou-se em cada detalhe, como se estivesse num sítio estranho que contemplava pela primeira vez. As paredes, brancas, nuas, a cama curta, estreita, de lençois brancos e cobertor azul, a secretária de contraplacado envernizado, claro, semelhante ao roupeiro, uma cadeira preta, e um enorme tapete castanho – tudo criava a ambiência de um mosteiro laico. Em reclusão, sem gavetas, objectos ou acessórios, era assim que o seu filho vivia, era aqui que se espalmava e lançava as raízes da sua vida. E todo aquele tempo ela estava a dez centímetros de tijolo de distância, na sala, sentada no sofá. E nunca, por um momento só, uma dessas raízes a tocou. Nunca se perguntou no que se passaria deste lado. Pensou por breves instantes se teria sido uma boa mãe. Mais importante, se teria sido uma boa amiga. Se sequer teria sido uma compania agradável. E não há imagem que lhe pudesse responder a essa pergunta.

Para alguém que não tem nada, o computador em cima da secretária é talvez o último esconderijo de memórias, onde se escondem fotografias e segredos. Chamou-lhe a atenção que do lado direito do monitor um post-it esvoaçasse. Mesmo com a janela fechada. Continha uma longa lista de sítios e respectivas palavras-passe, todas diferentes de local para local. Messenger, Facebook, Hi5, Blogger, e-mails pessoais Yahoo, Gmail, e em outros locais que lhe eram desconhecidos. Ali estava ele, o fantasma virtual do seu filho sorrindo para si. Ela agarrou-o com força, e ligou o computador. Queria abraçá-lo. E logo quando tinha prometido ao seu marido que não cometeria loucuras.

Por instantes, perguntou-se se seria ético violar a privacidade do seu filho. Mas, como sempre acontece, a curiosidade venceu o instinto moral, e acedeu ao Facebook. Ele lá estava. Não no cemitério. Era um local virtual sem dor, sem mágoa de perda, sem lamentos. Ali, ele estava tão vivo como ela. Estava rodeado de amigos, de dezenas de mensagens publicadas no mural.

“Hey! Onde andas?”

“Então pá, tavas no Rio e depois o pessoal ouviu a cena do avião... Ficámos preocupados! Diz qualquer cena!”

“E aí, brasileiro! Espero que estejas bem...”

“Por favor diz-me que aquele não era o teu voo!”

“Responde, pá! Tá tudo preocupado contigo!”

“Epá, q cena... DIZ-ME q tás bom!”

E só aí, pela primeira vez, se lembrou que não tinha avisado os amigos. Para além dela, do marido e de meia dúzia de familiares, ainda ninguém sabia. Caiu-lhe uma certa agonia ao ver a campa, solitária, fria, ao imaginar dia após noite a sucederem-se sem visitas. E se é verdade que ali, naquele espaço, seria o momento e o sítio adequado para publicar a notícia, olhar aquela foto, tirada no Quénia no ano anterior, onde, por detrás de óculos de sol, protegiam-se dois olhos tão felizes, era senti-lo num espaço onde estava tão vivo... que não se conseguiu forçar a fazê-lo. Para que uma campa seja visitada, matar um ser virtual que nunca está sozinho? Não. Naquela outra caixa não há senão morte. Se aqui ainda há vida, pois que assim fique. Desligou o computador, pegou no post-it e levou-o consigo.

Passaram-se dias até ter ligado o seu próprio computador. Recebera um e-mail de uma colega.

“Um colega do teu filho ligou para cá, acho que queria falar contigo para saber dele... Não sabia que lhe dizer, pedi para deixar o contacto. Está aqui o número dele.”

A situação era insustentável. Pegou no post-it e acedeu de novo ao Facebook do seu filho. Tinha uma nova mensagem privada. Não resistiu a abrir.

“Olá. :) É só para te dizer que o contacto que me arranjaste para o trabalho foi excelente. Eles aceitaram-me. Vou conseguir pagar o quarto! Adoro-te.”

Recuou mais longe. Não havia mais mensagens desta pessoa. Utilizou as outras palavras-passe. Leu vorazmente a sua correspondência. Descobriu um filho que nunca teve, ou nunca soube que teve. Interessado, carinhoso, dinâmico, daquele computador o seu filho movia tudo aquilo que canalizara para uma existência virtual. O afecto que não dava em casa, à família, transferia inteiramente para aquela rede de amizades. Todas as memórias que não tinha guardado nas paredes do quarto estavam nas paredes das redes sociais e nas caixas de correio electrónico. Para aquela rapariga, que vivia um momento difícil, tinha encontrado um emprego e um quarto para sair de casa e mesmo assim continuar a pagar a universidade. Com outro, tinha organizado uma viagem a Espanha, porque nunca havia saído do país. E ainda que estes pequenos gestos, após reflexão ponderada, não lhe parecessem sequer extraordinários, fizeram-na como que descobrir um desconhecido. Fizeram-na entender que, quando caiu, o avião levou uma pessoa importante. Porque é sempre isso o mais difícil na morte, a quebra abrupta com um caminho partilhado. É uma linha de caminho de ferro que se quebra, é uma estrada que culmina num precipício. É um avião que cai a pique no Atlântico.

Nessa altura, decidiu que aquela pessoa, aquele filho que ela nunca conheceu, não podia morrer. Trouxe o avião de volta à sua rota, abriu o mural e escreveu:

“Pessoal, tive problemas para voltar a Portugal, fiquei retido no Rio de Janeiro por causa daquele avião que caiu. Mas está tudo bem! Desculpem ter-vos assustado, e obrigado pelas vossas mensagens. Tenho GRANDES novidades! :D”

Não foi sem dúvidas que carregou no botão para publicar. “Para tudo há solução menos para a morte”, diz-se. Mas neste caso, de certa forma, acabara de substituir a irreversibilidade da morte pela irreversibilidade desta existência virtual, desta manutenção artificial de consciência da qual seria muito difícil algum dia escapar. Como algum dia vir a revelar a verdade a alguém? Não; a vida, que é sempre frágil e provisória, seria agora qualquer coisa de permanente.

Após ler toda a sua correspondência, conhecia com precisão a vida do seu filho. Sabia-lhe os gostos mais viciantes, os vícios mais embaraçosos, e os embaraços mais frequentes. Sabia-lhe as palavras que usava, as expressões preferidas, as abreviaturas, os códigos e a maneira como alterava o discurso consoante a pessoa com quem falava. A vida dela tornou-se na descodificação de uma outra existência. E, em semanas, já enviava e-mails frequentes, espontâneos, para amigos, já actualizava diariamente o Facebook, já tinha resposta para quem lhe dizia que não aparecia nas aulas (“vou mudar de curso!”), para quem se queixava de não aparecer para cafés (“tenho andado engripado... devo ter apanhado alguma coisa no Brasil!”), para quem simplesmente lhe dizia que tinha saudades suas (“eu também... vamos marcar uma viagem, vamos a algum lado juntos :)”). Cada sorriso virtual era sentido. Cada esperança gerada em outros olhos era um gosto tremendo nos seus. Aquela segunda pele do seu filho tinha que ser mantida. Como mãe, tinha-lhe dado vida por uma segunda vez. E, desta vez, ela sentia-se presente na vida do seu filho. E isso dava-lhe uma felicidade que, até então, desconhecia. Naquela altura, ele era demasiado importante para ser perdido. E ela não o poderia perder outra vez. Não desta vez.

Até que chegou aquele e-mail. As semanas já se tinham tornado em meses, e a presença daquele ente virtual já era parte da família. Cada noite, o marido pedia-lhe licença para descansar, e o seu filho colocava mais uma mensagem no Facebook. Por vezes, conseguia até imaginá-lo a fazê-lo por si mesmo. Até que aquele e-mail veio estragar tudo.

“Agradeço a sua deslocação ao Rio, e quero lhe dizer que a nossa reunião correu bem. Ficámos todos muito impressionados com sua vontade de deixar Portugal e se mudar para cá, para trabalhar com a nossa empresa. Infelizmente, não poderemos recrutá-lo ainda. Recomendamos que termine seu grau primeiro, e no final nos contacte, pois teremos todo o gosto em o receber.”

Senhora de uma imaginação intensamente visual, nunca imaginara isto. O Rio era mais uma das suas frequentes viagens, e nunca pensou que fosse mais que isso. Desde que completara dezoito anos que não fazia outra coisa. Era viagem para aqui e para ali, quanto mais longe melhor. E até ao Quénia já tinha ido. E se é verdade que pela cabeça tudo lhe passa, e se é verdade que até o tinha já imaginado, em noites sem dormir, vivendo uma vida aventureira como correio de droga ou traficante de marfim, correndo selvas e conhecendo gente perigosa, a última coisa que poderia visualizar era o seu filho, de fato e gravata, procurando emprego numa empresa reputada que lhe permitisse sair de Portugal. Para sair daquela casa, ou pelo menos daquele quarto-anexo cuja porta nunca se abria. Para a deixar, para a abandonar. Antes de morrer, já o seu filho planeava a morte para ela.

E sentiu raiva, muita raiva, demasiada raiva, por aquele miúdo egoísta que não pensou nela, que procurava fugir para o outro lado do Mundo quando do outro lado da parede estava ela, que ele nem conhecia. Como mãe talvez sim, mas não como pessoa. Ela, ela, ela. Que sempre fez tudo por ele, que ainda agora o mantinha artificialmente vivo. Ela, que mantinha só para ele o que pensava que ele mais queria: os seus amigos! E ele, egoísta até para com eles. Ele, tão interessado pela amizade, tão desinteressado da família, e tão infiel a ambos com os seus planos de fuga. Pois se ele queria viver longe, que se fosse embora para sempre. Impulsivamente, escreveu no Facebook uma última mensagem.

“Pessoal, foi bom todo o tempo que passámos juntos, mas sinto que a minha vida precisa de mais. Preciso de ver outras coisas. No Rio encontrei um emprego, e vou mudar-me para lá. Espero que não me levem a mal por querer começar uma vida nova. Um dia, sei que nos vamos reencontrar. E nesse momento, pessoalmente, explicarei a cada um de vós, pessoalmente, porque tinha que vos deixar. Adoro-vos a todos. Até sempre.”

“O utilizador foi removido.” Fechou o computador. E, mais do que em algum momento antes, chorou agoniada e destroçada pela culpa. O seu filho estava morto. E, de alguma forma estranha, ela sentia-se uma assassina. Sentia que o tinha enviado para uma morte solitária, por nenhuma razão outra do que egoísmo seu, e raiva, raiva porque aquilo que ele queria da vida ela não lhe podia dar nem quando ele estava vivo, nem já depois de morto. A sua campa, desconhecida e sem visitas, guardaria para sempre o segredo do seu nome. E, assim, perduraria apenas o mito do rapaz que apagou a vida antiga e foi viver para o Brasil. Os mitos não são mais do que a extensão que aqueles que ficam criam daqueles que recusam ver partir. Porque afinal a morte é injusta quando abruptamente interrompe os planos de alguém destinado a algo maior. Porque afinal a morte daqueles a quem queremos bem é sempre mais inconcebível do que a nossa própria morte.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Desafio XXIII

Tiago para Ricardo:

We decided not to let Dopey talk. It wasn't that he couldn't talk, just that he'd never tried."
Walt Disney


Ricardo para Wings:

"Those hostile, belligerent morons all get driver's licenses. Of course, to have children, you don't need a license. No proof of anything. You need a license to fish. You need a license to be a barber. You need a license to sell hot dogs. You know, you read about these poor kids, beaten and starved, you wonder, why are these parents allowed to even have them?"

Whatever Works, Woody Allen


Wings para Alice in Wonderland:

In many ways, they'll miss the good old days
Someday, someday
Yeah, it hurts to say, but I want you to stay
Sometimes, sometimes

When we was young, oh man, did we have fun
Always, always
Promises, they break before they're made
Sometimes, sometimes

(...)

And now my fears
They come to me in threes
So, I
Sometimes
Say, "Fate my friend,
You say the strangest things
I find, sometimes"

Oh, someday...

I ain't wasting no more time



Someday, The Strokes



"Não declares que as estrelas estão mortas, só porque o céu está nublado"
Provérbio árabe



Blue Storm para Tiago:



"One must work and dare if one really wants to live. "


Vincent van Gogh

terça-feira, 25 de maio de 2010

Desafio XXII- Resposta

Tens de parar de o agarrar, de o puxar, de o tentar acordar. Ele podia ter sido outro eu mas o não é. É exactamente ele. Olha para ele, ele é ele, apenas ele. Podia ter-se ajeitado e ajustado mas tudo o que conseguiria conquistar seria um maior desfasamento. É inutil. Ele afinal nunca pode ajustar-se, nasceu assim. Com um sopro diferente no coraçao.
Tens de parar de lhe perguntar porque é que deixou que o Icaro revolucionario e sonhador que tem no peito acordasse. O Ícaro eternamente livre, eternamente desejoso de salvar todos os outros Ícaros. Ele acordo-o porque sentiu-se vivo. Sentiu-se vivo, sabes o que é? consegues imaginar o poder dessa sensaçao fugaz? Existir mas de uma forma permanente. Sentir a textura salgada e azul do mar entre as maos, em contacto com todos os poros da pele, todos os nervos do espirito. Consegues desenhar o quadro impressionista na tua mente? Ser livre, estar vivo, ter o prazer de existir a fluir descontroladamente nas veias? Ah! Isso é tudo porque vale a pena viver.
Ele libertou-se, ele é o teu Messias. Ele é ele, so ele, apenas ele.Deus de si proprio. Descobriu o segredo de ser livre, de ser imortal. É so ser inteiramente ele.
Perguntas-lhe porque é não guarda as suas descobertas baratas , mentirosas e infatilmente ilusorias so para ele. E depois perdeste a cabeça, perdeste o teu espirito. Porque a descoberta foi dele, não tua. Foi ele deus de si proprio, tu continuas miseravel. Foi ele que se libertou, continuas prisioneiro da prisao que tu construiste. Entao tu, com a permissao de uma densa multidao sem rosto e sem carisma. Espancaste-o. Torturaste-o. Humilhaste-o. Mas ele, encharcado em sangue, riu-se. Riu-se de ti. Do teu eu debil ridiculo. Da tua patetica existencia. Riu-se e, a cambalear, levantou-se , tornou-se num deus-homem. Podes assassina-lo mas não podes quebrar o que ele é. Ele é ele e ele é livre, ninguem que é livre morre assim. Pela mao de alguem tao pouco quanto tu.
Esfaqueaste-o e humilhaste-o mas ele está vivo, o Ícaro dele está vivo e vai libertar todos os Ícaros. E vao ser bons voadores e vao sobreviver e dizer qual a textura do Sol.
Tentaste tao desesperadamente o seu homicidio mas ele é o Messias, é o teu Messias. É o heroi discreto que resiste porque está vivo e sabe que ser livre é ser ele proprio. Nunca o vais conseguir entender. Nunca vais conseguir imaginar. Vives na prisao que tu proprio construiste e na qual te prendes mais um pouco a cada segundo. Nunca vais sequer assumir que nunca vais visualizar o conceito abstracto de liberdade.
Ele ri-se. Está curado do crime que te mancha as maos, o espirito. A liberdade.
Ah, He was given to fly!

Desafio XXII - resposta

Sabe que falou do seu cansaço, da sua doença diária.
Que tentou médicos e paciências alheias.
Tratamentos fictícios que nunca resultaram
na sua preguiça estagnada,
Propaganda indefinida dessas massas de gente.
Corpos autómatos que lhe procuravam o botão do “on” cada vez que ele dizia
“Estou cansado”

Era uma doença. Pior do que a lepra ou a SIDA,
porque borbulhava da profundeza única do desejo de não ser nada e não quer ser nada e não valorizar quem é alguma coisa.
“Estou cansado”, disse ele tanta vez
E logo um fedor a fraqueza se instalava
nos ambientes da sua vida.
E logo os corpos que por ali passavam se massajavam de adrenalinas fúteis,
desejos vadios para expulsar aquela doença contagiosa.
Que pobreza. Que falta de felicidade.

E já nem ele se lembrava. Era um efeito secundário,
dos comprimidos que nunca lhe deram.
Como se aquela inércia de se levantar e abrir as persianas do quarto
fosse mais uma mobília que ele comprara.
Já nem se lembrava. Tivera sonhos?
Correra para apanhar o autocarro?
Amara?
Mas às vezes lembrava-se.
Ele fora o sonho que eles não ousavam,
quando cansados de mentir,
adormeciam em estrados de algodão e abortavam
esperanças.

E estar cansado daquele cansaço
era o seu último pedaço de
si.
Uma curta dose de eutanásia;
A rebeldia que rejeitava todos
os dias o veneno que lhe injectavam.

Por isso não se mexeu, enquanto a música tocava.
O disco estava riscado.

“… Sick and tired of being
       sick and tired of being
       sick and tired of being
       sick and tired of being
       sick and tired of being …”

terça-feira, 18 de maio de 2010

Desafio XXII

Tiago para Blue Storm:

Boys of today write lines on walls
In the streets at night
In suburbs of cities with no name
Is this destruction? ... or just quiet protest
Against loneliness?

Kings of Convenience - My ship isn't pretty


Wings para Ricardo:

O mito é o nada que é tudo
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo
Este que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos braços.
Por não ter vindo foi vindo
E nos creou
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre
De nada, morre


Fernando Pessoa , A mensagem
Blue Storm para Alice in Wonderland:

"Sick and tired of being sick and tired."


Be Free by Papa Roach


Alice in Wonderland para Wings:

He floated back down 'cause he wanted to share
His key to the locks on the chains he saw everywhere
But first he was stripped and then he was stabbed
By faceless men, well, fuckers
He still stands

Pearl Jam, Given to fly

Ricardo para Tiago:

Mmm bop, ba duba dop
Ba du bop, ba duba dop
Ba du bop, ba duba dop
Ba du

Hanson - Mbop



domingo, 16 de maio de 2010

Desafio XXI - Resposta




"To understand love, first understand freedom."

Amor é isto. Esta liberdade viva no conceito de amanha em que posso ser qualquer coisa mas escolho ser eu. Amor é isto, este frenesim, esta inquietaçao que me não deixa sossegar. Amor é isto, este bem-estar, este sorriso que nasce no espirito e transparece no rosto. Amor é isto, a emoçao sensorial profunda e bonita que nenhum raciocinio perfeito consegue ultrapassar ou bloquear.
Amor é este som, amor é a Orion. Amor é relaxares-te na cadeira e deixares que ela suporte o teu peso. Amor é seres tu, não podes amar se não sabes quem és. Amor é seres livre para seres tu. Se não existes, não escolhes. E amor é isso, a tua escolha profunda, inata e emocional. Amor é o teu lugar no mundo, é a forma como te ves e como vais impor que os outros te vejam.
Amor é a suavidade que fica de uma paixao que não foi inocua. Amor é a paixao que se alonga no tempo. Amor não é liberdade, não confudas. Eles não são uma mesma coisa, são cumplices desse crime que é viver conscientemente em vez de vagamente existir. Mas não são uma mesma coisa. Liberdade implica amor. Porque amor é o teu eu selvagem no seu ponto mais inato e agreste , atenuado pela beleza do teu conceito de belo, tranquilizado pelo teu conceito de arte. Amor é o Homem animal a construir a sua evoluçao.
E isso implica liberdade. Nada se faz sem liberdade. Nada és sem liberdade. Precisas de poder escolher e amor é isso. A escolha de quem queres ser neste mundo.
Se não etendes o que é ser livre não és capaz de amar. De sentir o frenesim de estares vivo. Se não és livre não és Homem , não tens consciencia de ti. De quem és.

sábado, 15 de maio de 2010

Desafio XXI - Resposta

There was a cold breeze in the air that afternoon. Light fog mixed with the smoke coming out of the crematory chimney, giving form to a heavy mass that seemed to float forever before vanishing up in the sky. “Some days the smoke is darker, only God knows why”, it was what she said, but every single one of us knew what she meant. She meant that a thicker soul was leaving the funeral ash, darkened by deep thoughts, tightly holding on to the meaning of earthly things all the way to heaven. She believed in stuff like heaven. He did too. He used to say that “the first thing God will do when I die is apologize to me for the people who pamper his name around”. Strange words indeed for a priest. But quite effective for an ordinary man. It was as if we could still see him, being greeted by the shameful face of a divinity too small for the high amplitude of his being. When it was all over, she took me by the arm she said “you know, the first thing I ever noticed about him was that ugly hump. I remember I called him the Hunchback of Notre Dame. He laughed and said it was appropriate, him being a priest and all.” “You must miss him very much, Emile”, I replied, confident of the answer. “Only as much as you can miss a man who turned your life around. Only as much as you.”

Emile was, of course, being modest. On the subject of lives that were shaken to their core, she could teach more than be taught. She was, after all, just a girl who threw a funny comment at him while waiting tables at a bistro in Paris where he used to sit when on vacation. Without his collar. And still, she kind of nailed him on who he was. Not the priest thing – that didn’t interest him much. The hunchback, now that was a different story. He was kind of proud of the hump on his back. He told me so himself, one night, in the midst of some abstract conversation on life choices. I can still see him, sitting on the floor, with a cup of tea, which I guess is the substitute for when you don’t drink or smoke and still want to look cool as you talk with something on your hands other than a glass or a cigar. He told me, “you know something, people are always saying you shouldn’t judge a book by its cover. Well, maybe that’s true. But you should definitely judge the person reading the book by the book’s cover”. I was intrigued. “How’s so?”, I asked. “Well, books should not be kept immaculate. They are supposed to look used: pages should be folded, and scratched, with little notes on the side. That’s how you know you have really read and understood it. There is no knowledge you can obtain from something you don’t feel. Books, much like life, are not understandable just from intellectual contemplation of words and symbols. You must take a hands-on approach to life. Or else life will just be immaculately pure while sitting on the shelf. Clean, but useless. That’s why I am going away, you know? This hump on my back is here because I keep limiting myself, so much that I can’t even walk up straight. I want it to be different. You see, I met this French girl in Paris and I’m quitting Rome and moving there. You see, this is all wrong, this stern contemplation and preaching from priests who know nothing about life because they haven’t felt it. I think now I will really do God’s work.”

I don’t know about God’s work. But he did feel life. That was the last time I saw him before Emile called me about the funeral. “Please, come with me to our house. There is something there that he would like you to have. And I would like you to see the place where we lived after he quit Rome and came here to Paris”, she said, still holding my arm. And so the high security car took me to this small apartment in Montparnasse. I could only go because no one knew I was here, otherwise it would seem a scandal. The house had a very nice view of the city. I could picture him, hands behind his back, staring out the window, and thinking what to do next. He quit Paris with Emile soon after arriving. Their whereabouts was undetermined for a while. He would send me postcards featuring short telegraphic messages from faraway places. Then, he started sending me just the postcard. He had become a professional photographer, from what he said, and was selling his pictures to postcard makers. He got a ton of them free, so sometimes I even received more than one at the same time, and then I had to wait another month until they brought me the next postcard package together with the rest of my mail. It was sad for me. I had never been without him for so long, ever since he was a little boy entering the seminar full of bright ideas. “You and me, we can turn this thing around, we’ll be rebels inside the Church”, he told me all the time. “Do you know what they will say when they find out about us? Imagine the headlines!” I never thought he would leave the church to travel the world doing odd jobs with a French girl. But then again, he was never predictable, or stable. He was just always brilliant.

“Here it is”, she said, as she brought a small package while I was staring out the window, with my hands behind my back. “Thank you. Do you know what it is?”, I stupidly asked, and she sensed my fear. I did not know what I was going to find inside. I did not want to. “Sorry, you’ll have to open it.” And open it, I did. Inside, there was a little toy unicorn, similar to the ones little girls play with. It had a note attached to its leg. It read “you can still show them that they exist”. I knew what he meant. I can still picture him, lying naked in my bed, speaking very fast, and smiling, all excited about the World and the million chances that we should create. He would tell me, “you, imagine you, such an important man. Millions of people will follow your every word. Imagine how liberating it will be when they make you Pope and you show up there, by the window, holding my hand and kissing me on the lips. Just imagine it. A non-celibate gay Pope. To the mob down there, it will be just like finding out that unicorns exist”. Of course, at the time, I was just an influential Cardinal in the Vatican, and him a young British priest born in London, not even half my age. Look at me now, boy. Part of our dream is done. They have made me Pope. But you betrayed our dream with Emile. And now, I have betrayed it with a silly hat and a name in history.

“He was a brilliant man, you know? His legacy will live on everywhere we went. It was funny to watch. He grew so much as a person, he took so many different jobs, had so many skills, and yet he always focused his work on helping other people. Once, I taught him to cook so he could get a job at some dictator’s palace. He ended up his political advisor. Another time, he started selling pictures to make postcards, and used that knowledge to become a war photographer and send pictures of all kinds of abuses to newspapers. We spent more than a decade going from one place to the other. We always came back to Paris. He said this house was our base. And two days ago he, the man who never stopped and did not like to rest, he was laying in bed. And his heart just stopped. I don’t understand it, his heart just stopped.” And then she started to cry. I did not make any move towards her, and did not show any intention to hug her. I felt it was not appropriate. I turned my back instead, to give her privacy, and again stared out the window. Light rain was now coming down, slightly clearing the fog. That great man we both loved had died from pure exhaustion.

“You know, Emile, it was that thing you told him in the cafe. That’s what made him leave Rome and come to you”, I said, quite sternly. “The joke about the hunchback?”, she asked, sobbing. “Yes, but not in the way you think. Well, it was better this way. I think he found the life he always wanted with you. And I am happy for him.” Indeed, she did not have the smallest idea why he left me and came to her. I did. That little comment of her about the hump made him realize he was bending down to a lesser goal. He could not stand up straight because I was his low ceiling. The funeral made me realize that. It was too lonely at the top for him, because no one could see or envision his true dream of a different World. And so he settled for the first objective he could get, which was me, me revealing to the World that the Pope can be gay. But that was a second hand objective. Notre Dame, he used to tell me, has the best view of Paris. “Why do people settle for the view from the Eiffel Tower, when here they can see the actual Eiffel Tower?”, he asked, truthfully puzzled. “Quasimodo had the most fun! Can you imagine, roaming free from tower to tower? I can only imagine what it must be to live staring straight to the horizon. Not upwards to God, but right in front, and still be on top of the World.” With me, in Rome, it was always laying low so no one would see us, and looking up fearing God. Emile was his skyline, his Notre Dame, from which he could look right in front and see all the great Towers of the World. God had nothing on him.

For a moment, Emile left me alone in the room. She excused herself and went to the bathroom to fix her hair and makeup. I took my eyes off the window, made sure she had left, and put the unicorn back into the box. It was too late for little girl toys. While pulling myself together, I noticed a large bookcase, filled with scattered books. They were really messed up, in no particular order. Their covers were torn, many had some pages ripped in two, others missed some pages at all. “Are these his books, Emile?”, I shouted so she could hear me from the bathroom. “Sort of. We bought them together. I guess they are mine now. Why, do you want any?”, and her answer shocked me more than anything that day. And from the first time since I knew he had died, I cried. Poor boy, you wanted so much to be a book used up by life, that you ended up letting life take the best of you. Your heart was ripped apart like one of these books. And you wanted it to be so. And still, it was as if I heard your voice telling me “half a book destroyed by time and intense reading, is still better than any book forever sitting in a shelf”. And that is the reason why you were brilliant. Not the crazy dream you sucked me into, and not your roaming around the World. The half-torn book you wrote with your life, that is why you are brilliant, and that is why you will always be just like thick fog, forever present in my life.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Desafio XXI - resposta

Ficamos sós. Como numa experiência de ficção científica.

As luzes apagaram-se dentro da sala e durante as primeiras horas a maioria das pessoas gritou e tentou empurrar a porta. Mas como a sala não tinha janelas nem qualquer tipo de mobiliário, rapidamente o cansaço apalpou e sossegou cada uma das almas e uma percepção de “não-saída” instalou-se no círculo que imaginamos formar, na mais profunda escuridão.

Nas primeiras horas eles nunca souberam que eu estava ali. Como sempre acontecera na minha vida, a primeira fase de sociabilidade num novo grupo fora a indiferença. Eu sempre fui a pessoa que não se cansava por portas sem saída.

Nessas primeiras horas eu fiquei sentada num canto, a sentir as duas paredes concorrentes e o vácuo que ficava entre elas, algures no fundo das minhas costas. Naquela profunda escuridão, isso foi tudo o que eu fiz, procurar um canto da sala. Daquele meu referencial fiquei a ouvi-los pedir socorro, numa escada de hierarquia social que se distinguia pelo timbre de voz.
Mas aquele ambiente era tão agressivamente desprovido de coisa alguma, que a minha presença apareceu muito antes do esperado.

Foi quando eles se abandonaram ao medo, que o medo se cravou no mais profundo coração das almas que ali estavam. Eu disse: “Estamos sozinhos”.
E a minha voz estalou esse medo, essa capa que lhes cobria o coração. Ouvi um soluço profundo. Os outros mantiveram o silêncio.
Alguém disse “ Não, eu não estou sozinho”. Outras vozes logo se seguiram. Começaram a enumerar as suas esposas e filhos, os seus maridos e os seus cães. Enumeram os amigos e os namorados, as flores, as guitarras, os cds, as fotografias. Enumeraram as carreiras, as viagens, o passado e o futuro que pretendiam.
E quando finalmente se calaram, eu deixei-os abandonados à sua “não-solidão”. Sabia que eles iam percorrer a viagem que eu já fizera há anos atrás.
Passado algum tempo, comecei a ouvir as cabeças a rolar, como numa execução solene. Sem barulho, todos avançaram para o cadafalso sem hesitar. Eu fechei os olhos e teci um breve murmúrio por cada uma das cabeças que se cortava à minha frente, numa realidade pintada de negro. Poucos eram os que sobreviviam, eu sabia. Na verdade toda aquela gente sempre fora só. Escolheram os primeiros amigos e namorados que podiam, as primeiras vidas que lhes eram oferecidas. Não queriam morrer sozinhos, pensavam eles que assim morriam preenchidos.
Fechei os olhos por cada uma daquelas almas. Eles não eram capazes de aguentar a verdade, como eu era.

Quando pensei que estava (finalmente) sozinho, ouvi um novo soluço. Alguém percorrera a viagem sem se atirar pelo precipício. O meu coração mexeu-se. Uma réstia patética de “não-solidão” ardeu naquela sala.
“Eu não estou sozinha” disse ela. “Deus está comigo, Deus está sempre comigo”. E depois, a um passo de seguir o mesmo caminho que os restantes, disse-me, olhando-me nos olhos “Tu não acreditas em Deus, pois não? Mas ele está aqui, e ele nunca criaria uma vida destas. Deus nunca faria uma vida tão triste. Deus não nos faria tão sós”.

Pensei em mentir-lhe, porque as palavras dela eram apenas socorro numa língua estrangeira. A cabeça dela estava prestes a cair como a dos outros. A ideia mirabolante de Deus fora um fósforo apenas um pouco mais longo. Mas as mentiras não tornam a vida menos triste.
“Eu não acreditava em Deus, para abraçar a consciência de que estava profundamente só. Mas Deus existe, lamento. Deus existe e fez a vida exactamente assim.
Deus existe. Deus está aqui. E tu continuas sozinha.”

Levantei-me da mesa do café, atordoado.A empregada sorria-me. Pensei em dizer-lhe que não valia a pena sorrir debaixo daquela triste rotina de cafés escaldados e tipos que a apalpavam. Que mais valia ela abandonar tudo, perder-se em tudo e depois respirar o oxigénio mais puro, ainda que brevemente.
Mas levantei-me e continuei a minha viagem.
Ela não ia aguentar.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Desafio XXI

Tiago para Wings:

"To understand love, first understand freedom."

Paulo Coelho


Wings para Blue Storm:
" Os que estao ausentes devem continuar ausentes"


Ricardo para Alice in Wonderland:

"She sighed in the dark. 'What do you want out of life?' I asked, and I used to ask that all the time of girls.
'I don't know,' she said. 'Just wait on tables and try to get along.' She yawned. I put my hand over her mouth and told her not to yawn. I tried to tell her how excited I was about life and the things we could do together (...). She turned away wearily. We lay on our backs, looking at the ceiling and wondering what God had wrought when He made life so sad."

Jack Kerouac, On the Road

Alice in Wonderland para Tiago:

"Conservar algo que possa recordar-te seria admitir que te posso esquecer"
William Shakespeare

"Civilization is unbearable, but it is less unbearable at the top."

Timothy Leary

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Desafio XX - resposta

“Esperar dói. Esquecer dói. Mas não saber que decisão tomar é o pior dos sofrimentos.”



Tinha uma estranha mania de viver múltiplas vezes os mesmos dias. Por vezes, imaginava também outras noites dentro da mesma. E os seus sonhos nunca foram outra coisa se não isso: realidades paralelas entre janelas que só ele conhecia.
Vivia muitas vidas. Percorria muitos caminhos. Sentia muitas coisas, todas ao mesmo tempo, testava o coração ao limite, fazia-o quase rebentar com vitaminas eléctricas de sentimentos contrastantes de euforia e depressão.
Às vezes encontravam-no triste, sentado debaixo da sua árvore preferida. Mas quando ele explicava porque, invariavelmente diziam-lhe “ Mas isso não aconteceu”. E ele gastava-os com as palavras que só ele entendia “ só porque não foi real, não quer dizer que não tenha acontecido”.
Mas que podia ele fazer, todos estes mundos lhe vivam na cabeça! Não conseguia virar à esquerda sem pensar no mundo igualmente real que surgiria se virasse à direita. Abusivamente alguém chamava a um dos mundos, realidade. Mas para ele, tudo o que sentia era real.
Como naquele dia em que chegou a casa mais cedo. Era demasiado pequeno e não estava lá ninguém. Deu a volta à casa e o gato não veio, como de costume, roçar-se nas suas pernas. No silêncio da casa, uma quantidade de múltiplos mundos se começaram a formar no seu cérebro. E começou a sentir cada um deles. Quando viu a caixa em cima da mesa dois mundos separam-se irreversivelmente: um em que o gato estava morto, e jazia dentro da caixa; outro em que o gato estava vivo e voltava do veterinário.
Sentou-se numa cadeira, a observar a caixa. E durante horas viveu aqueles dois mundos, com a mesma intensidade.
Ambos os mundos possíveis. Ambos a coexistirem com a mesma frequência. Metade dele vivia a descontracção de fim de tarde, a outra metade vivia o luto.
E por isso, era indiferente qual era o real. Ambos existiram. Mas fez a vontade à voz que ouvia no cérebro e abriu a caixa.

O gato estava morto.

E foi um alívio, viver com uma só realidade.

domingo, 9 de maio de 2010

Desafio xx- Resposta



"Even a clock that does not work is right twice a day."


A beleza exótica mas refinada dele serve para isso. Serve, alias, somente para isso. Conquista um lugar soalheiro neste mundo cinzento porque é eternamente deslocado. Mas é demasiado bonito para ser desperdiçado pelo mundo circundante. Entao permanece lá, num sitio estranho a que é dificil de aceder, aristrocatamente simples ele é rei de si proprio. E a sua beleza excentrica mas discreta encanta o mundo, a alma sobria , credivel e tranquila tornam a palavra dele sábia e decisiva.
É profundamente triste nessa sua solidao que a sociedade não etende porque o ama, o admira, o enaltece. Ele está profundamente só , o sitio requintado e importante que lhe oferecem é-lhe inteiramente inutil.
Só serve para isso, o poder dele. Demonstrar-te, a ti, a tua grandiosidade. Porque a realidade boémia e altiva trata-te como lixo mas vê bem essa tua beleza selvagem e livre, tao semelhante à dele. Só que sabe controlá-los e engana-los, ele, tu nem sequer te importas. Mas eles impoem-te uma visao distorcida e horrivel de ti, tornam-te numa outra especie de monstro. E , no final do dia, como podes não quebrar minimamente? Vais acabar por errar duramente contigo. Perder parte do requinte do teu ego.
E a beleza exótica e aristocrata dele serve para isso. O lugar importante e poderoso que ele ocupa na sociedade serve para isso. No final, ele escolhe-te. Diz-lhes que tu és muito maior e melhor que ele. E que o salvaste da corrosiva sensação de tristeza que conduz a um estado de não-vivencia activo.Tu , o lixo do mundo, salvaste-o a ele, senhor de si proprio que desvia a multidao da sua rotina
Conseguiste sentar-te junto dele, no sitio agreste e solitário a que mais ninguem ele convidou a entrar.
Só serve para isso a existencia suavemente bélica dele. Salvar-te deixando-se concertar por ti, alterando o sentido do mundo porque demonstra a tua grandiosa e misteriosa sensibilidade humana.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Desafio XX - Resposta

Senta-te aqui neste cadeirão antigo, avô, e conta-me uma história. A história já começava com o teu passar dos dedos pela protectora capa dura, suavemente percorrendo-a com um toque gentil de canto a canto, de baixo a cima, como quem acaricia um velho amigo reencontrado depois de muito tempo, antes do início da conversa. A estória que me contavas não faz sentido sem ti como personagem principal, protagonista do conto que narravas. A minha história e a minha lição contam-se ao contar como tu escolhias um texto ao acaso e o declamavas como a um salmo, com a mesma reverência pela palavra que para ti era divina, com a mesma esperança que dentro da minha cabeça ela viesse a ecoar quando alguma situação me colocar perante a mesma escolha, o mesmo dilema.

E o Mundo que imaginava e criava continha-te sempre. Quando me falavas da neve e da cidade dura onde a inocência era a única cor, eu colocava-te um gorro berrante, umas luvas de dedos cortados e um casaco para o frio, e transportava-te para lá, para dentro do conto. Punha-te uma caixa de fósforos nas mãos, e tu passavas a ser a menina. Porque cada frase docemente arrancada do arrastar da tua voz era tão sincera que eu só a concebia como tendo sido vivida. Eu não conseguia imaginar que pudesses não ter passado por aquelas privações, aquelas tristezas, aqueles triunfos e aquelas alegrias. O teu livro velho não eram estórias. O teu livro era a tua história. A tua biografia.

E não poderei nunca esquecer-me dessa imagem gravada a ferros na minha memória. Eu, sentada no chão, longe do teu cadeirão, para que nada escapasse no meu campo visual curto e lentamente mutável. Recorrias tanto à voz quanto ao suave bater dos pés, mais agitado quando a trama se tornava mais intensa, quanto à mão direita que, num gesto acompanhante do timbre da tua voz, por vezes se afastava do seu trabalho de restringir a pressa das folhas em soltar o desenlace. E os teus olhos, esses tinham personagens de corpo inteiro impregnadas de sentimentos fortes, expressivos.

E eu, menina hipnotizada pela tua força, pela oscilação da tua voz, caminhava livre nesse Mundo alternativo que me apresentavas. Resgatavas-me do laço no cabelo e dos sapatos hirtos, envernizados, capricho da minha mãe mas que tanto me magoavam, e que me obrigavas a tirar quando entrava na tua sala. Impossível esquecer aquelas palavras, essas totalmente tuas, com as quais encerravas as histórias de princesas que tanto me encantavam. "As meninas bonitas", dizias tu, "não são as que têm o laço e os sapatos. São as que vêem coisas bonitas no Mundo. As meninas deste livro são bonitas por isso, poque são capazes de ver coisas lindas onde elas existem; elas reconhecem as flores, os rios, a coragem, a sabedoria. Não é por serem princesas, nem é por terem uma cara bonita. Por isso, não saias daqui a querer ser uma princesa. Sai daqui a querer saber onde estão as coisas bonitas."

E do abraço final que me davas, apertado e carinhoso, soltavas-te para me revelares os olhos mais cheios de vida que já vi. Os olhos mais bonitos.

Deita-te aqui neste caixão de pinho, avô, e deixa-me contar-te uma história. Agora os teus velhos olhos expressivos já não contam histórias. Cansaram-se, fecharam-se, levaram consigo a força eléctrica que te transportava para dentro dos livros. E só agora, mulher feita, casada, me dou conta de quão principal foi o teu papel na minha vida. Até hoje, mesmo vincado na memória, via-te como um distante figurante numa estória minha, agigantado pela imaginação de criança. Mas aqui, vendo-te quieto, tão longe da personagem que és dentro de mim, pergunto-me em que pessoa me teria tornado se não tivesses gasto tanto tempo a abrir-me a janela para a beleza.

E eu, mesmo assim, cometi erros. De tanto procurar a beleza no Mundo, pensei sempre tê-la achado nos sítios óbvios. Tornei-me numa rapariga daquelas que se vêem e que revêem nas revistas. Tornei-me uma personagem dessas revistas, tornei-me até na capa que outros dedos por certo acariciavam com outras intenções muito diferentes da tua. Preenchi o Mundo de revistas, e não de livros. E nessa altura, afastei-me de ti. Ao tentar procurar o que me ensinaste, deixei-te ao abandono. De tal forma que já não te reconheço agora que te olho com um olhar repleto de personagens de corpo inteiro impregnadas de sentimentos tristes, saudosos.

Mas eu achei-me, e achei-te. Achei-te nele. Procurei o meu princípe para me tornar na princesa de uma das tuas histórias. E quando ele apareceu, foi tal como me disseste que seria. Tive que abrir mão dos laços e sapatos que todos os homens vestem achando que as mulheres apreciam mais um bom fato do que uma boa história. Porque ele não os usa. Tive que me lembrar que o que me poderia fazer bonita era reconhecer a verdadeira beleza no Mundo.

E eu vi-a, emanando deste homem, com uma luz e uma intensidade tão grande, que nem as flores, os rios, a coragem ou a sabedoria poderiam rivalizar consigo. E o que ele tinha era uma paixão forte que colocava em tudo o que dizia e em tudo o que fazia; era uma força sobre-humana que lhe moldava a voz e fazia a terra tremer a toda a volta quando falava; eram as palavras que usava nas estórias que escreve; era o olhar. O olhar, não os olhos castanhos banais, nem a boca proeminente, nem o nariz arqueado, nem as mãos pequenas, nem a envergadura curta. Quando ele me disse que era feio, eu respondi-lhe com as tuas palavras. O que nos torna belos é a beleza que sabemos reconhecer no Mundo. A beleza está do lado de lá, não do lado de cá do espelho.Partam-se os espelhos, e seremos mais bonitos que nunca.

E desde que ele se tornou na personagem principal da minha história, eu comecei a tornar-me na personagem principal das estórias dele. Estórias que mal acaba de escrever me lê, enquanto me sento no chão do nosso quarto, bem longe dele para que nada escape no meu campo visual curto e lentamente mutável. Ele recorre tanto à voz quanto às pernas que junta e pressiona quando a trama se tornava mais intensa, quanto às costas que dobra enquanto se inclina para à frente à medida que a voz se torna mais fina e as palavras mais rápidas. Esses são os momentos mais bonitos da minha vida. E foi contigo que eu aprendi a ver tanta beleza.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Desafio XX

Tiago para Alice in Wonderland:

“Se a dor tiver que vir, que venha rápido”, eu disse. “Porque tenho uma vida pela frente, e preciso usá-la da melhor maneira possível. Se ele tem que fazer alguma escolha, que faça logo. Então eu o espero. Ou o esqueço."

“Esperar dói. Esquecer dói. Mas não saber que decisão tomar é o pior dos sofrimentos.”

Paulo Coelho


Alice in Wonderland para Ricardo:

"I'm so ugly, but that's ok, 'cause so are you"
Kurt Cobain - Lithium


Ricardo para Blue Storm:
Time discovers truth.


Séneca


Blue Storm para Wings

"Even a clock that does not work is right twice a day."


Provérbio Polaco

Wings para Tiago:

"Ideias ousadas são como as peças de xadrez que se movem para a frente; podem ser comidas, mas podem começar um jogo vitorioso."




Johan Goethe

terça-feira, 4 de maio de 2010

Desafio XIX - Resposta

Zoom & freeze frame no teu futuro.” Era o que todos os amigos estavam sempre prontos a dizer. “Depois olha para trás, e ri-te de ti mesmo agora. Cheio de vontade de viver. Mas sem esperança.” Porque amigos ele tinha. Amigos, tinha. “Vê-te com ela, e verás que todo o tempo de espera não é mais do que... olha, chama-lhe pedras no caminho.” O problema era o resto. Era aquele ímpeto final para viver, para transfigurar a sua casa e os seus hábitos cronometrados com as horas de sol, era um amontoado de espectativas que moldara num corpo de mulher de carne e osso. “Sabes, pá, a vida é complicada porque estamos a olhá-la para a frente e a ver todas as ramificações possíveis. Mas só vamos seguir uma. Quando já estás lá bem ao fundo e olhas para trás, parece-te tudo muito simples e linear, e nem sabes porque foste ter dúvidas!” A sua salvadora. “Aguenta-te aí, ela vai aparecer, e depois vai parecer-te que estava destinado a acontecer precisamente desta maneira.”

Dezasseis horas de um dia de temperaturas tão altas como longos eram os dias e como curtas eram as roupas. Meteu pernas a caminho para o jardim, e sentou-se na sua poltrona vegetal. Era a árvore de sempre, aquela convenientemente recortada com dois braços abertos nas raízes, e que por isso o recebia com um abraço, quando se sentava, apoiava as costas e os cotovelos, e sentia-se aconchegado. Aquela era a árvore na qual podia, instalado como num trono, observar o espectáculo do Mundo. Era um rei pescador. A sua rede era o livro itinerante que o seguia para uma leitura exibicionista, de capa ao alto. Pescava com as letras eruditas olhares femininos, curiosidades despertas. E quem o visse ali, sentado, encostado a uma banal árvore castanha de folhas amareladas pela falta de água no Verão (a árvore, não o livro), achá-lo-ia só mais alguém tentando procurar na sombra momentos calmos com um bom livro. Só que não era assim que ele se via. Freeze frame & zoom na sua cabeça. Imaginava-se na terceira pessoa, via-se como um actor com metade do seu peso e o dobro da sua altura, de pose enigmática e num pôr-do-sol de cores dramáticas, com mulheres a passarem em câmara lenta à sua frente e a perguntarem-se “mas quem será aquele homem?”, “que estará ele a fazer naquela árvore magnífica?”. E a sopa de letras de dentro do livro, as frases que sorvia alarvemente, atropelando todo o significado, não eram mais do que o passar do tempo, do que os ponteiros do relógio marcando o compasso, enquanto aguardava que os seus olhos interiores com os quais via todo este filme se voltassem do avesso.

E um dia, magicamente, incompreensivelmente, numa daquelas raras materializações da imaginação, aconteceu mesmo. Retirando os olhos do livro, captou com a visão periférica alguém que frequentemente o olhava e esboçava uma brisa de sorriso, ténue como espuma, suave como só uma mulher o conseguiria. Seria um pouco mais velha que ele, talvez. Era indisfarçável o cabelo apanhado, os princípios de ruga, o vestido castanho e os sapatos de princesa. Estava encostada à árvore banal do lado esquerdo. Tinha um livro no colo. Fechou-o. Era uma biografia do General Eisenhower. Eisenhower?

“Olá, boa tarde.”

Freeze frame & zoom na pele dele, nos pequenos poros por onde vapor se escapava a uma explosão anunciada. Não era a primeira vez. Oh, a pressão! O momento da verdade, a resposta ideal, o ter que parecer inteligente, mas sempre, claro, sendo ele mesmo. Vapor condensado em gotículas de suor, expelidas com tremuras, acompanhadas num quase desejo de voltar ao quarto. E num só instante viu o seu quarto pacífico, ao qual estava tão acostumado, no qual era rei e senhor. O seu quarto, o seu reino, o seu verdadeiro trono. Aquele onde por breves instantes se sentia confortável. Se sentia quase bem.

“Acho que já te vi aqui antes. Também costumas vir para aqui ler? O que estás a ler?”

“Sim. Fernando Pessoa.”

“Ah... Estou a ver.”

“Ah, estou a ver”, diz ela. O desprezo era palpável, as palavras tinham uma quase espessura que lhes era dada pelo sorriso de gozo. Um sorriso arcado no canto da boca, humilhante, como só uma mulher consegue. Ou pelo menos, aquilo que ele achava ser uma mulher.

“Oh, desculpa, isto saiu-me mal. Às vezes as coisas soltam-se assim sem pensar. Eu claramente falo demais.”

“Não faz mal. Eu falo demenos.”

“É que eu não gosto nada do Pessoa, sabes? Desculpa, provavelmente nem queres ouvir isto, mas ele chateia-me. Eu não gosto de pessoas assim, que não sabem viver, que passam o tempo a beber ou a fazer previsões astrológicas, e a criar umas teorias de secretária sobre como Portugal um dia vai mandar no Mundo.”

“Pois, disso eu já não sei. Eu só gosto da poesia dele. Mas ele tem aqui um poema em que diz o contrário. Acho que ele está a dizer exactamente que há coisas que são para se sentir e para se viver, e não para se pensar, porque pensar às vezes só faz perder a vida.

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

“Mas é isso, o que ele admite é mesmo isso, é que não faz nada para aproveitar a vida. E a saudade do passado... Blargh! Eu desconfio sempre das pessoas que estão sempre a dizer que devemos fazer mais e pensar menos, ou para não fazermos o coração pensar. Essas pessoas normalmente são quem não faz nada, e passa o tempo a encher a cabeça aos outros. Quem efectivamente vive, não precisa de andar a dizê-lo. E aliás, só quem vive é que pode ter matéria de jeito para pensar! Por isso essa coisa do Pessoa não tem ponta por onde se lhe pegue.”

Freeze frame & zoom para o estômago, onde a raiva se amontoava como estalagmites que cresciam milhões de anos até lhe picarem o cérebro e exigirem que ripostasse. Apetecia-lhe dizer-lhe “como te atreves a falar assim do Pessoa, que foi tão importante para mim?”, “como te atreves a tentar destruir este homem fantástico em quem tanto me revejo?”, “como te atreves a descrever-me enquanto falas dele, quando ele não tem culpa nenhuma?”. Mas em vez disso, limitou-se a questionar.

“Isso que estás a dizer até pode ser muito certo, mas não acho que tenha nada a ver com o poema.”

“Ora, tem sim. Repara, ele escreveu invenções. Personagens inventadas, vidas inventadas, e teorias inventadas. Ele simulou vidas originais, mas a verdadeira originalidade não está na escrita, está na vida em si! É por isso que ando sempre a ler biografias. As grandes vidas de grandes homens inspiram-me muito mais do que todos os poemas que já foram escritos. Como aqui o Eisenhower. Mas espera, já me perdi no raciocínio. Bom, acho que o que quero dizer é isto. O Pessoa na verdade era um fulano que não sabia viver. Ele próprio o confessa nesse poema que me leste tão bem. E escreveu sobre não saber viver. É claro que quem também não sabe viver se sente reconhecido nele. Mas que tem alguém assim para ensinar seja a quem for?”

“Talvez. Eu gosto na mesma. E agora lamento, mas tenho que ir.”

“Oh, já? Peço desculpa se disse alguma coisa que não devia. Desculpa, a sério, eu falo demais. Mas olha, queres ir tomar um café? Não, desculpa, má ideia, nem nos conhecemos. Olha, eu costumo vir cá todos os domingos à tarde. Se apareceres, podemos conversar mais um pouco... Que achas?”

Freeze frame & zoom no novo sorriso dela. Um sorriso tão sincero e inseguro, pleno de expectativa, pleno de interesse. Mas é uma impossibilidade física que se sinta algum interesse por reencontrar alguém com quem se discorda desta forma, não é? Se a diferença para ela só o fez recuar, a diferença para ele tinha que a fazer perder toda a vontade de continuar a conversa, não tinha? Então ela tem que estar a mentir quando diz que o quer ver de novo, não tem? Então todo aquele sorriso, e aquele convite, não passam de dissimulação feminina, pois não? A mentirosa! É mentirosa, e de uma forma baixa, como só a mulher consegue. Não qualquer mulher. A mulher na cabeça dele, aquela que foi moldada a partir do barro de sonhos alquímicos de transfiguração da vida.

“Talvez, outro dia.”

Zoom & freeze frame no teu futuro.” De regresso ao quarto, irritado, nervoso, desapontado, voltava sempre a fixar esse ponto distante no qual tudo seria colocado em perspectiva, e todos os medos e fraquezas seriam vistos como acidentes de percurso. “Ainda te vais rir do tempo em que estiveste sozinho.” Mas rir, rir ele já ria. Ria de cada vez que uma amiga bonita lhe descrevia o seu homem de sonho, e em todas as características esse hipotético cavalheiro era igual a ele, mas mesmo assim esse tal não era ele. “Vais ver que até te soube bem esta liberdade de não teres que te preocupar com relações nem coisas complicadas assim.” O problema era o resto. Era estar tão dependente de outra pessoa como do seu livro do Pessoa para a pescar, era ver a vida a correr a toda a volta, e ele não a conseguir apanhar. Precisava de alguém que lhe parasse o tempo, que lhe mostrasse tudo o que há para além do espelho, quando se faz zoom & freeze frame nos prazeres e na beleza que a vida tem. “Só não esperes milagres! Muda a tua vida por ti, que vais ver que quando ela chegar será até muito melhor.” A sua salvadora. Nunca iria aparecer.

E por isso, em tantas noites como naquela noite, ligou o computador de secretária, instalou-se na sua cadeira, o seu trono de quarto, baixou as calças e tocou-se. Tocou-se imaginando que não era ele quem libertava em si o fogo que vivia por debaixo de tantas expectativas opacas. Tocou-se para se libertar de todas as angústias e pensamentos complicados. E no breve instante em que fazia freeze frame & zoom no rumo do tempo, no momento onde procurava a libertação de todo o pensamento, o seu coração e a sua imaginação traíram-no. Foi naquela rapariga da tarde que pensou.

domingo, 2 de maio de 2010

Desafio XIX - Resposta

Love cannot save you from your own fate

Passa-me essa fotografia que tenho na cabeça.
Perguntas-me em que estou a pensar?
Lembro-me dessa fotografia que me ficou calcificada nos olhos, como se me tivessem levantado as pálpebras e esculpido esse momento directamente na íris.
Vejo a figura dela a afastar-se, com os reflexos das costas e das nádegas apetitosas a deixarem os poros da pele dele. Vejo os olhos dele e a barba dele no horizonte. A ausência de lágrimas e a ausência de vento, como se o Nada chegasse naquele momento e os levasse aos dois num vazio que crescia de dentro de fora e explodia num fogo de artifício estático.

O amor consumira-a. Gastara e sugara-a. E ela era uma flor ressequida que ficara duma Primavera demasiado bela. O amor bebera-a sofregamente, abusara dela.
E ela agora dançava nos seus saltos agulha daquela forma mecânica que fazem os artistas estragados.
Ela afastava-se no horizonte árido de Sevilha. E eu via a figura dela cada vez mais longe, cada vez mais longe. E o nunca mais a gravar-se em cada segundo no relógio que ele tinha no coração.

Porque ele amava-a com os seus dois corações. Um era mais mecânico do que o outro; os dois eram sonhadores.
Vejo sempre os corações dele, no canto da fotografia. O que lhe batia descompassadamente no corpo e o outro, que ela já não quisera e colocara em cima do muro.
Oh, mas ela já não podia tê-lo. Ela já não tinha mãos para agarrar corações.
O amor que lhe vivera no seu queimara tudo. Violara-a.
E ela era só isso, uma cantora de Andaluzia a dançar todas as noites nos seus saltos agulha. Majestosa, vivera para esse amor grotesco e violento que era o amor de dois corações dum mesmo homem. E ele era só isso, um homem deformado que vivera para amar descompassadamente uma mulher que fazia o seu relógio de cuco cantar e o cegava de ciúmes quando a queria só sua em toda a pele e em toda a voz e cigarros.

Vejo a figura dela a desaparecer por entre o azul do céu e o amarelo da plataforma de terra de Sevilha. A mecânica do coração a desprogramar-se, a esquecer-se de como é amar. E vejo-o quieto, com dois corações inúteis, desmanchados pelas mãos de ambos, quando naquelas noites quentes se amaram demais.

(inspirado no livro "A mecânica do Coração")

Desafio XIX- Resposta

Já disse, Deus não existe. Não insistas no conceito. Deus não existe, nunca existiu resume-se tudo a ilusao filosofica e psicologica quase tao velha quanto o homem civilizacional.
A perfeiçao é uma mentira que gostas de acreditar porque procuras uma razao inocua para continuares a ter essa vida banal tao bem aceite por esta realidade obtusa. Mas nada está correcto, está tudo invertido. O sentido que existe é a ausencia de sentido algum. Já disse, não me faças repetir . Deus não existe porque o deus que tens guardado na subconsciencia e no peito não cabe neste mundo. Esse Deus divino senhor do amor e da paz e do merecido perdao é demasiado pouco para este mundo cheio de pecado. E coisas muito mais profundas e sangrentas do que o pecado tradicional. Acredita-me, Deus não existe. A vida é mesmo isto, só isto. Nada mais do que isto.
Não digas que tudo faz sentido, é uma mentira que insistes em dizer ao teu reflexo nocturno solitário acocorado no canto de uma sala escura. Escusas de ter medo porque tens todas as razoes para o sentires na pele, na mente e no espirito. Escusas de ter medo, é verdade. Deus não existe. Não temas isto, deus não te pode salvar.
Não insistas no conceito. Não pegues em pequenas coisas, estás a dificultar-te. Não argumentes com esse brilho tremulo nos olhos de que as crianças demonstram a existencia de deus, do teu Deus.
Ah! As crianças são a tua responsabilidade no mundo. São a marca que vais deixar nesta realidade triste entregue aos abutres. Não insistas, Deus não existe. As crianças são a projecçao do teu futuro fortemente influenciado pela cor do teu passado. As crianças mudam o mundo. Não faças o mundo muda-las-a elas.
No minimo, as crianças so existem para explicar a indecencia de Deus. E para um deus ser indecente mais vale ser queimado.
O mundo esteve sempre demasiado desregulado e cheio de excepçoes e incoerencias para existir um Deus, salvaguarda da aurea e profunda alma humana.