O que me dá mais vontade rir ainda é a forma como neste Mundo as coincidências se acumulam, chamam-se umas às outras. É como se cada coincidência tivesse mel, e um grupo de outras coincidências corresse a juntar-se à primeira, tornando aquilo que não é mais do que uma sequência altamente improvável num glorioso milagre. Mas um milagre é, por definição, algo impossível. Se existir uma réstia de probabilidade de que algo tenha ocorrido por algum acaso estranho, então é apenas o Mundo a funcionar normalmente.
Para a minha mãe, ainda assim, cada frase que a minha irmã pronunciava era uma revelação esplendorosa do divino, era uma lição de vida. Não que ela pronunciasse muitas: afinal, a palavra divina não pode ser banalizada, não há muitos assuntos de conversa e Deus não fala de futebol. Para a minha mãe, as parcas intervenções da minha irmã conferiam a cada uma um estatuto mais elevado ainda. Como se antes do acidente ela fosse um papagaio. Como se antes do acidente ela não se limitasse apenas a lançar umas frases para o ar, mais informativas que discursivas, com todo o desprezo por quem as escutaria. Como se antes do acidente os outros não fossem já um púlpito para a minha irmã. Como se, por aquele dispositivo de leitura ocular, ela estivesse a conter e a deixar cair gota a gota a sabedoria que não tem nem nunca teve.
E quanto mais a vida em casa se tornava alegre, mais a minha disposição tendia para a indisposição, para a tristeza e para o pasmo. O meu pai, e como a minha irmã saía ao pai, viajava pela casa telecomandado pela minha mãe, e raramente levantava a voz para expressar uma dúvida ou angústia. Que vulcão adormecido e frustrado aquele homem devia ser. A minha mãe, criara uma agenda detalhada e um plano a dois anos do que era preciso fazer para tornar a minha irmã num rosto que se vendesse em medalhas e no foco de orações.
“Primeiro, temos que pôr a Cristininha bonita outra vez. Depois, temos que partilhar a mensagem dela com o Mundo.”
A casa tornou-se numa fábrica de santos de carne e osso. Moviamo-nos como uma máquina, cada um de nós uma parte de instruções detalhadas, para aperfeiçoar um ser, que mais que um ser já era quase uma ideia, a divina Cristina.
A Cristina precisava de colocar os dentes que perdera no acidente, precisava de reparar as cicatrizes, precisava de algo na cadeira que permitisse remover aqueles ferros que se erguiam ostensivamente no ar e lhe davam um aspecto muito robótico. Frequentemente faltava comida em casa. Primeiro, porque faltava tempo, depois, porque faltava dinheiro. Quando faltou dinheiro, o meu pai interrompeu uma baixa prolongada, como dizia na ficha, "por motivos psicológicos", e regressou ao emprego. A minha mãe, sempre senhora de aproveitar oportunidades onde elas gritavam para ser achadas, usou o meu pai para trazer dinheiro para dentro de casa e também para levar a imagem da nossa santa para fora de casa. Era carteiro. Começámos a produzir folhetos para ele entregar em todos os prédios.
Com o tempo, o dinheiro deixou de ser suficiente para tudo. As intermináveis operações, o equipamento, os folhetos, as minhas propinas na universidade. A minha mãe chamou-me um dia e olhou-me nos olhos. Creio ter sido a primeira vez. Disse-me que tinha chegado o meu momento de ser abençoada sacrificando-me pela minha irmã. Disse-me que em todas as famílias é assim, os irmãos têm que se sacrificar uns pelos outros, e os filhos têm que se sacrificar pelos pais, tal como os pais se sacrificaram um dia por eles. E na nossa família havia um bem maior, a beleza da nossa Cristininha, o menino Jesus do nosso presépio, a nossa princesa. E por isso nenhum sacrifício era em vão. Nesse dia, eu perdi completamente a vontade de rir.
E a minha irmã, essa aprendeu rápido a fazer o seu jogo. Entendeu o que a nossa mãe projectava nela e reflectia-o como um espelho perfeito, iluminando e resplandecendo a vida da casa com a sua santidade, e assim dando mais força à minha mãe para continuar. A estratégia dos folhetos resultara, porque cada vez tínhamos mais visitas. Senhoras avantajadas na idade, no peso, na tinta do cabelo e na carteira, eram a visita constante em casa. Vinham, emocionavam-se, quando tinham sorte eram brindadas com palavras de sabedoria da santa, e deixavam algumas moedas na caixinha de esmolas à saída da nossa casa, transformada em igreja não oficial. De certa forma, pagavam o mesmo que na Igreja, e assistiam a um espectáculo muito melhor. Uma inválida com a palavra de Deus na boca.
Mas isso não chegava à minha mãe, era preciso algo grande, algo maior, alguma prova da desmedida santidade da filha. Várias vezes ela disse-nos que
“dar voz a esta santa será o meu testemunho no Mundo.”
E faz todo o sentido. Afinal, quando não se tem nenhum talento com o qual vincar o Mundo com o nosso nome, a forma mais fácil de não se ser esquecido, para além da própria morte, é ter filhos. E de certa forma, eu conseguia compreender e simpatizar com a cruzada da minha mãe. A filha dela tinha efectivamente morrido naquele acidente. Agora, ela precisava de santificar os restos do seu cadáver para que o seu nome permanecesse. Ela não era Rosa, era Maria, a mãe do nosso menino Jesus. Tão parte da História como o próprio.
Só que a máquina começava a encravar. O meu pai voltou a ficar de baixa, esgotado. Eu já não saía do meu quarto. Já não ria. Já não levantava a voz. Eu já tinha simplesmente desistido. Mas para a minha mãe pouco importava, porque afinal o trabalho estava concluído, e a santa estava acabada. Pronta para sair à rua. E para cunharmos em alguma moeda as nossas caras, a entrada do nosso apartamento banal, ou a cadeira e a voz metálica feminina da minha irmã, era preciso um espectáculo que ninguém fosse tão cedo esquecer.
“Família, aqui está a nossa prenda para o Mundo!”
Nunca me senti menos parte da família do que quando a Dona Rosa desapareceu a empurrar a cadeira da Cristina para além da soleira da porta da rua. A Cristina estava novamente linda. O cabelo louro imaculado oscilava muito ligeiramente com a brisa, e misturava-se no tom de pele dourado pela luz do Sol, que parecia ele mesmo abençoá-la, e reflectir-se na brancura dos seus novos dentes. Já não tinha ferros a mantê-la, porque uma cadeira mais pequena com a forma do corpo dela como que a mantinha presa ao seu contorno original. Vestiram-lhe um vestido justo e quase provocante na sua transparência de um branco de linho que está a meio caminho entre a santidade e o deboche. A Cristina, naquela manhã em que a mãe a levou à missa, parecia efectivamente algo de sobre-humano.
E já se ouviam os pneus a chiar fora da porta quando eu ainda me preparava para seguir a família, dois passos atrás, como um bom animal de presépio. Num derradeiro olhar, reparei que uma pequena barata seguia no caminho inverso, e vinha da rua para se instalar em nossa casa. E, pela primeira vez em muito tempo, ri. Ri, olhando à volta para a imundice da sala, da cozinha, para as teias de aranha no tecto, para os candeeiros de luz intermitente, para a porta lascada, para as paredes que já não eram brancas, eram um mascarrado de comida e tintas e sabe-se lá que mais. Ri, e lembrei-me das aulas às quais não podia ir há mais de um ano. A família diminuíra a entropia da beleza na figura da minha irmã, e aumentara-a a toda à volta. Para acumular toda a beleza física e espiritual naquele ser, naquele receptáculo esvaziado por um acidente, foi preciso que esta casa e toda a gente nela se tornasse num lixo, num vazio de qualquer traço que possa ser achado belo, ou sequer humano. Ri, porque sabia o que ia acontecer.
Ficção: A Cristina chegou à igreja quando a música começara a tocar. O grande órgão anunciara a entrada triunfal no átrio do pequeno tempo, naquele dia, excepcionalmente e como que adivinhando a circunstância história, estava cheio. A sua face tornou-se branca, como o seu vestido de linho, e pela primeira vez em mais de um ano de paralisia, a Cristina, perante todos os olhos que se viravam para si, mexeu o pescoço, virando o rosto para a abóbada no céu do velho edifício. Nesse momento, um pombo levantou voo. O padre caiu de joelhos e a congregação em peso chorou e gritou
“milagre!”
Facto: Que uma cadeira de rodas dê um salto no degrau da porta, e uma paralítica, presa por arames, no impulso do salto desloque o pescoço, não é nada de extraordinário. Mas quando por azar a música está a tocar e um maldito de um dos muitos pombos naquela igreja decrépita decide levantar voo ao mesmo tempo, temos as coincidências a juntarem-se como comadres. E o padre, esse, não caiu de joelhos. Caiu de rabo porque uma tábua do soalho cedeu nesse preciso instante. A casa do senhor estava tão podre como a casa da santa. Não admira que em ambos ela, na altivez da sua beleza, irradiasse luz.
E eu, rindo cá do fundo, não conseguia deixar de pensar em quanta podridão equivalerá a um pouco de beleza forçada.
Tal como dizia Freud, não existem coincidências.
ResponderEliminarMas existe sim, uma coincidência enorme na foma como as pessoas desejam as coincidências.
A perfeição construída é um mito, tal como a propria coincidência o é.
Porque no fim, fica um resultado sem passado, inócuo.
E tal como a Sophia diz naquele poema, também na tua história eu vejo "um enorme desperdiçar de gente". Por uma perfeição que não existe (nem nunca vai existir) mas que todos, por coincidência, vêem.
E o que ela pretende, na minha opinião com aquele poema é exactamente isto: fazer notar os seres humanos desperdiçados por convenções e coincidências que produzem resultados que de perfeitos só têm a inutilidade.
Gostei muito da tua história!
Quando um tema é muito bom, sinto sempre algum medo de o deixar sem resposta à altura. Aconteceu-me com este que me deste. Ainda bem que gostaste (apesar de ter usado a mesma história para duas respostas, porque afinal os dois temas pareceram-me complementares). :)
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