terça-feira, 4 de maio de 2010

Desafio XIX - Resposta

Zoom & freeze frame no teu futuro.” Era o que todos os amigos estavam sempre prontos a dizer. “Depois olha para trás, e ri-te de ti mesmo agora. Cheio de vontade de viver. Mas sem esperança.” Porque amigos ele tinha. Amigos, tinha. “Vê-te com ela, e verás que todo o tempo de espera não é mais do que... olha, chama-lhe pedras no caminho.” O problema era o resto. Era aquele ímpeto final para viver, para transfigurar a sua casa e os seus hábitos cronometrados com as horas de sol, era um amontoado de espectativas que moldara num corpo de mulher de carne e osso. “Sabes, pá, a vida é complicada porque estamos a olhá-la para a frente e a ver todas as ramificações possíveis. Mas só vamos seguir uma. Quando já estás lá bem ao fundo e olhas para trás, parece-te tudo muito simples e linear, e nem sabes porque foste ter dúvidas!” A sua salvadora. “Aguenta-te aí, ela vai aparecer, e depois vai parecer-te que estava destinado a acontecer precisamente desta maneira.”

Dezasseis horas de um dia de temperaturas tão altas como longos eram os dias e como curtas eram as roupas. Meteu pernas a caminho para o jardim, e sentou-se na sua poltrona vegetal. Era a árvore de sempre, aquela convenientemente recortada com dois braços abertos nas raízes, e que por isso o recebia com um abraço, quando se sentava, apoiava as costas e os cotovelos, e sentia-se aconchegado. Aquela era a árvore na qual podia, instalado como num trono, observar o espectáculo do Mundo. Era um rei pescador. A sua rede era o livro itinerante que o seguia para uma leitura exibicionista, de capa ao alto. Pescava com as letras eruditas olhares femininos, curiosidades despertas. E quem o visse ali, sentado, encostado a uma banal árvore castanha de folhas amareladas pela falta de água no Verão (a árvore, não o livro), achá-lo-ia só mais alguém tentando procurar na sombra momentos calmos com um bom livro. Só que não era assim que ele se via. Freeze frame & zoom na sua cabeça. Imaginava-se na terceira pessoa, via-se como um actor com metade do seu peso e o dobro da sua altura, de pose enigmática e num pôr-do-sol de cores dramáticas, com mulheres a passarem em câmara lenta à sua frente e a perguntarem-se “mas quem será aquele homem?”, “que estará ele a fazer naquela árvore magnífica?”. E a sopa de letras de dentro do livro, as frases que sorvia alarvemente, atropelando todo o significado, não eram mais do que o passar do tempo, do que os ponteiros do relógio marcando o compasso, enquanto aguardava que os seus olhos interiores com os quais via todo este filme se voltassem do avesso.

E um dia, magicamente, incompreensivelmente, numa daquelas raras materializações da imaginação, aconteceu mesmo. Retirando os olhos do livro, captou com a visão periférica alguém que frequentemente o olhava e esboçava uma brisa de sorriso, ténue como espuma, suave como só uma mulher o conseguiria. Seria um pouco mais velha que ele, talvez. Era indisfarçável o cabelo apanhado, os princípios de ruga, o vestido castanho e os sapatos de princesa. Estava encostada à árvore banal do lado esquerdo. Tinha um livro no colo. Fechou-o. Era uma biografia do General Eisenhower. Eisenhower?

“Olá, boa tarde.”

Freeze frame & zoom na pele dele, nos pequenos poros por onde vapor se escapava a uma explosão anunciada. Não era a primeira vez. Oh, a pressão! O momento da verdade, a resposta ideal, o ter que parecer inteligente, mas sempre, claro, sendo ele mesmo. Vapor condensado em gotículas de suor, expelidas com tremuras, acompanhadas num quase desejo de voltar ao quarto. E num só instante viu o seu quarto pacífico, ao qual estava tão acostumado, no qual era rei e senhor. O seu quarto, o seu reino, o seu verdadeiro trono. Aquele onde por breves instantes se sentia confortável. Se sentia quase bem.

“Acho que já te vi aqui antes. Também costumas vir para aqui ler? O que estás a ler?”

“Sim. Fernando Pessoa.”

“Ah... Estou a ver.”

“Ah, estou a ver”, diz ela. O desprezo era palpável, as palavras tinham uma quase espessura que lhes era dada pelo sorriso de gozo. Um sorriso arcado no canto da boca, humilhante, como só uma mulher consegue. Ou pelo menos, aquilo que ele achava ser uma mulher.

“Oh, desculpa, isto saiu-me mal. Às vezes as coisas soltam-se assim sem pensar. Eu claramente falo demais.”

“Não faz mal. Eu falo demenos.”

“É que eu não gosto nada do Pessoa, sabes? Desculpa, provavelmente nem queres ouvir isto, mas ele chateia-me. Eu não gosto de pessoas assim, que não sabem viver, que passam o tempo a beber ou a fazer previsões astrológicas, e a criar umas teorias de secretária sobre como Portugal um dia vai mandar no Mundo.”

“Pois, disso eu já não sei. Eu só gosto da poesia dele. Mas ele tem aqui um poema em que diz o contrário. Acho que ele está a dizer exactamente que há coisas que são para se sentir e para se viver, e não para se pensar, porque pensar às vezes só faz perder a vida.

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

“Mas é isso, o que ele admite é mesmo isso, é que não faz nada para aproveitar a vida. E a saudade do passado... Blargh! Eu desconfio sempre das pessoas que estão sempre a dizer que devemos fazer mais e pensar menos, ou para não fazermos o coração pensar. Essas pessoas normalmente são quem não faz nada, e passa o tempo a encher a cabeça aos outros. Quem efectivamente vive, não precisa de andar a dizê-lo. E aliás, só quem vive é que pode ter matéria de jeito para pensar! Por isso essa coisa do Pessoa não tem ponta por onde se lhe pegue.”

Freeze frame & zoom para o estômago, onde a raiva se amontoava como estalagmites que cresciam milhões de anos até lhe picarem o cérebro e exigirem que ripostasse. Apetecia-lhe dizer-lhe “como te atreves a falar assim do Pessoa, que foi tão importante para mim?”, “como te atreves a tentar destruir este homem fantástico em quem tanto me revejo?”, “como te atreves a descrever-me enquanto falas dele, quando ele não tem culpa nenhuma?”. Mas em vez disso, limitou-se a questionar.

“Isso que estás a dizer até pode ser muito certo, mas não acho que tenha nada a ver com o poema.”

“Ora, tem sim. Repara, ele escreveu invenções. Personagens inventadas, vidas inventadas, e teorias inventadas. Ele simulou vidas originais, mas a verdadeira originalidade não está na escrita, está na vida em si! É por isso que ando sempre a ler biografias. As grandes vidas de grandes homens inspiram-me muito mais do que todos os poemas que já foram escritos. Como aqui o Eisenhower. Mas espera, já me perdi no raciocínio. Bom, acho que o que quero dizer é isto. O Pessoa na verdade era um fulano que não sabia viver. Ele próprio o confessa nesse poema que me leste tão bem. E escreveu sobre não saber viver. É claro que quem também não sabe viver se sente reconhecido nele. Mas que tem alguém assim para ensinar seja a quem for?”

“Talvez. Eu gosto na mesma. E agora lamento, mas tenho que ir.”

“Oh, já? Peço desculpa se disse alguma coisa que não devia. Desculpa, a sério, eu falo demais. Mas olha, queres ir tomar um café? Não, desculpa, má ideia, nem nos conhecemos. Olha, eu costumo vir cá todos os domingos à tarde. Se apareceres, podemos conversar mais um pouco... Que achas?”

Freeze frame & zoom no novo sorriso dela. Um sorriso tão sincero e inseguro, pleno de expectativa, pleno de interesse. Mas é uma impossibilidade física que se sinta algum interesse por reencontrar alguém com quem se discorda desta forma, não é? Se a diferença para ela só o fez recuar, a diferença para ele tinha que a fazer perder toda a vontade de continuar a conversa, não tinha? Então ela tem que estar a mentir quando diz que o quer ver de novo, não tem? Então todo aquele sorriso, e aquele convite, não passam de dissimulação feminina, pois não? A mentirosa! É mentirosa, e de uma forma baixa, como só a mulher consegue. Não qualquer mulher. A mulher na cabeça dele, aquela que foi moldada a partir do barro de sonhos alquímicos de transfiguração da vida.

“Talvez, outro dia.”

Zoom & freeze frame no teu futuro.” De regresso ao quarto, irritado, nervoso, desapontado, voltava sempre a fixar esse ponto distante no qual tudo seria colocado em perspectiva, e todos os medos e fraquezas seriam vistos como acidentes de percurso. “Ainda te vais rir do tempo em que estiveste sozinho.” Mas rir, rir ele já ria. Ria de cada vez que uma amiga bonita lhe descrevia o seu homem de sonho, e em todas as características esse hipotético cavalheiro era igual a ele, mas mesmo assim esse tal não era ele. “Vais ver que até te soube bem esta liberdade de não teres que te preocupar com relações nem coisas complicadas assim.” O problema era o resto. Era estar tão dependente de outra pessoa como do seu livro do Pessoa para a pescar, era ver a vida a correr a toda a volta, e ele não a conseguir apanhar. Precisava de alguém que lhe parasse o tempo, que lhe mostrasse tudo o que há para além do espelho, quando se faz zoom & freeze frame nos prazeres e na beleza que a vida tem. “Só não esperes milagres! Muda a tua vida por ti, que vais ver que quando ela chegar será até muito melhor.” A sua salvadora. Nunca iria aparecer.

E por isso, em tantas noites como naquela noite, ligou o computador de secretária, instalou-se na sua cadeira, o seu trono de quarto, baixou as calças e tocou-se. Tocou-se imaginando que não era ele quem libertava em si o fogo que vivia por debaixo de tantas expectativas opacas. Tocou-se para se libertar de todas as angústias e pensamentos complicados. E no breve instante em que fazia freeze frame & zoom no rumo do tempo, no momento onde procurava a libertação de todo o pensamento, o seu coração e a sua imaginação traíram-no. Foi naquela rapariga da tarde que pensou.

3 comentários:

  1. Ao ler este texto ficou-me a crítica que é feita a Fernando Pessoa, porque afinal tal como a personagem que é descrita, eu também o leio e também "o gosto".
    Independentemente de gostos pessoais que podem afastar-te ou aproximar-te de qualquer poesia, o que indigna é a frase que a rapariga profere:
    "É claro que quem também não sabe viver se sente reconhecido nele. Mas que tem alguém assim para ensinar seja a quem for?”

    Como se a arte, como se a poesia guardassem ensinamentos directos. Como se o poeta pensasse naquilo que quer ensinar antes de escrever. Como Oscar Wilde dizia "Toda a arte é perfeitamente inútil". E eu concordo, ás vezes as coisas estão lá simplesmente para serem lindas ou para nos emocionarem sem raciocício. Sem ideias. Sem ensinamentos.
    O artista é aquele que se põe na arte a si próprio, e se torna visivel apenas através dela.
    "Não saber viver" não ensina nada a ninguém? Nem sei se concordo, mas se concordasse isso não seria minmamente relevante.

    E portanto eu seria exactamente como esse rapaz, a repudiar e a fastar-me de alguém que tivesse dito tamanha "barbaridade". Porque quem pensa isso que terá de interessante para me dizer? que poderá ver em mim?

    É por isso que adorei o teu texto, ele é de uma realidade incrível. Porque é exactamente a pessoa que nos revira e que nos põe a nú, a mesma por vezes nos acende também o fogo mais profundo.
    A teu texto é uma deliciosa pequena história.
    Não me ensinou nada, mas eu gostei dela exactamente assim.
    ;)

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  2. Este é um daqueles textos em que não me identifico com nenhuma das personagens. Não modelei nenhum pensamento a partir dos meus próprios pensamentos. Portanto não vou defender o que elas diziam. O que pretendia era mostrar que as dizer-se que o coração não deve pensar é fácil, agora concretizá-lo é mais difícil. É a tal atracção pelo que se odeia - é a cabeça a forçar o coração a odiar, e ele a queixar-se.

    Sobre o que dizes do Fernando Pessoa (que é a nossa discussão recorrente :) ), digo-te só que neste texto o facto de ser o Pessoa e não outro qualquer é meramente circunstancial. Podia ser outro escritor qualquer - aquela personagem feminina iria sempre criticá-lo pela biografia e não pelo que escrever. Ainda assim, não concordo totalmente com o que dizes, sobretudo quanto à citação do Wilde. Um exemplo simples e quase infantil: o "Ratatui" é um filme construído na base daquela frase, "qualquer um pode cozinhar". Mas, como no final é expresso, isso não quer dizer que toda a gente seria capaz de cozinhar - quer dizer é que não é possível adivinhar à partida de onde virá o próximo grande cozinheiro. Por isso sim, a Arte é inútil, mas no sentido de não precisar de servir um propósito. Não no sentido de qualquer inutilidade poder ser Arte!

    Quanto ao Pessoa, acho que podemos discutir muito se o Pessoa é Arte ou não, se era bom escritor ou não, se nos ensina algo ou não e se isso é importante: no limite, vamos chegar apenas à conclusão de que tu gostas e eu não. Só te posso dizer que pessoalmente, e enfatizo que é pessoal, ele é o tipo de escritor que só consegue deixar-me indiferente. Porque as frases parecem-me fracas e aborrecem-me (como esta do coração e sei lá que mais). Porque (pessoalmente, lá está), eu gosto de escritores que me entusiasmam, que quando os leio me fazem levantar a voz e quase gritar para expressar os sentimentos que passam, aqueles em que sentimos que há uma vida enorme que electriza as palavras, e que nos deixam borboletas no estômago. Isso acontece-me com o Byron, acontece-me com o Baudelaire, acontece-me com a Beat Generation, acontece-me na música com o Brel (de quem ambos tanto gostamos... :) ). Para mim, o Pessoa está num universo completamente à parte destes, e eu nem preciso de saber que ele era um bêbado que passava os dias entre casa e o café, a engordar e a fazer previsões astrológicas. Isto é independente da biografia dele. E é independente do que se pode aprender com ele. A minha opinião sobre ele vem unicamente da leitura das palavras que ele deixou escritas. É uma apreciação da Arte, não da biografia. E por isso não vou defender os comentários da personagem, porque (pelo menos neste texto) ela era apenas isso, uma personagem. Não uma extensão de mim.

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  3. Não pretendia de maneira alguma que defendesses um pensamento de uma das tuas personagens. Eu compreendo perfeitamente que construas pessoas para as tuas histórias. No limite podias até adorar Pessoa e criar uma personagem que diz o que a rapariga disse. O meu propósito era justamente criticar a rapariga e não tu.
    E acho que descreves interiramente a intenção da citação de Oscar Wilde ( que era também a minha):
    "Por isso sim, a Arte é inútil, mas no sentido de não precisar de servir um propósito. Não no sentido de qualquer inutilidade poder ser Arte!"
    É exactamente por isso que analisar se determinada obra de arte foi ou não últil, se ensina ou não ensina, é irrelante para mim. Obviamente que o mundo está cheio de coisas inúteis que não são arte. Mas isso, não é preciso O.wilde nos vir dizer, basta ter pelo menos um olho aberto.

    De resto, acho que de facto é tudo uma questão mais pessoal do que outra coisa.
    Pessoa está num universo restrito de facto, onde eu também estou muitas vezes e é por isso que gosto tanto dele. (E talvez por isso que nunca suportei ler biografias).

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