terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Desafio XLV - Resposta

Sabe, amigo, quando as pessoas dizem, "a minha aldeia fica no interior", geralmente querem dizer que fica junto à fronteira com Espanha. Pois esta minha aldeia é mesmo no interior a Portugal. Estamos condenados a viver longe de tudo, seja das grandes cidades, seja de outro país. Ainda assim, a meio de Agosto a terra enche-se com turistas. São quase todos espanhóis. E vêm quase todos por causa deste homem que aqui está nesta estátua acima destes degraus onde estamos sentados. É o poeta Ernesto, homem da terra, e que defendeu a terra como ninguém. Na estátua ele está curvado, de samarra e chapéu, com os Lusíadas debaixo do braço, porque é assim que ele andava quando era velho. É por ele que os espanhóis cá vêm.

Ainda hoje de manhã, estava eu aqui a fumar quando passa um casal. Ela perguntou a ele, "mira, que es esto?", e apontou para as grandes palavras escritas a tinta preta, que secaram escorrendo das costas da estátua do poeta. Aproximei-me deles, perguntei-lhes se queriam escutar a história. Eu falo bem espanhol.

Comecei por lhes dizer que só sei tanto sobre ele porque quando o Ernesto morreu entrevistei a família e os amigos para o jornal da terra. Até fui falar com os amigos de infância dele. E todos disseram que se havia alguém por quem eles não davam um chavo, era pelo Ernesto quando era criança. Era magro e branco, parecia doente. Não falava nas aulas, e os pais abusavam dele com trabalho no campo. Tinha um irmão mais velho que não lhe ligava e andou imigrado na Europa. Mas o jovem Ernesto não se queixava. Aliás, parecia feliz. Viam-no sempre a rir sozinho enquanto nadava no rio. Dizia-se que ninguém nadava melhor nem mais longe do que ele. Era como se tivesse nascido na água.

Depois pouco se sabe. Foi para Coimbra estudar, mas mal começou o curso já estava cá na terra outra vez. Disse que não se deu lá. A verdade é que mesmo estando fora só uns meses, quando chegou ninguém o reconhecia. Parecia tristonho, andava sempre com discos da Amália, e todos os Domingos só se dava com ele na igreja. Foi por essa altura que começaram a vê-lo pela aldeia a escrever numas folhas. Uns meses cá, e desapareceu de novo. Os pais diziam que tinha ido para Lisboa e que andava a escrever para um jornal. Ele mandava cartas só aos pais, com os poemas que escrevia – e que poemas. Os pais mostravam a toda a gente com orgulho. Um rapaz quase sem educação que mal tinha saído da terra, andava a deslumbrar o mundo todo em Lisboa. Ele escrevia numa rima simples, mas que falava às gentes das suas vidas e dos seus problemas. Falava da natureza e do campo. Era muito bonito.

Voltou de Lisboa com mulher e filhos, e depois disso não saiu mais da terra. Dizia que Lisboa era só mal intencionados e avarentos, e que se sentia mal na cidade. Na aldeia, sentia-se protegido, e era aqui que queria que os seus filhos crescessem, protegidos também. E os anos passaram. Publicaram sabe-se lá quantos livros dele. Os jornalistas vinham de lá longe, do Porto e de Lisboa, falar com ele ao café da terra, onde passava tardes agarrado aos papeis.

Um dia veio cá um jornalista espanhol, porque um livro dele tinha chegado até lá. E ele reagiu muito mal ao indivíduo. Disse-lhe que só lhe falava em português. Que estava na terra dele, e que era a língua dele. O espanhol foi dizer tão mal dele que nunca mais nenhum tentou voltar. Houve para aí que tivesse dito ao Ernesto que ele tinha que ser mais dado. Um homem com o talento dele merecia ser reconhecido muito para além de onde nasceu. Ele irritava-se com isso. A resposta dele, que era sempre a mesma, ficou famosa. Dizia que a sua pátria é a sua língua, e que era por ela que haveria de ser famoso. Pela língua de Camões. Portugal é uma nação velha, mais velha que as demais, e merece respeito. E afinal, burro velho não aprende línguas.

Passaram mais de muitos anos. O povo quis fazer-lhe uma estátua bem no largo da aldeia. Ele já não era novo nessa altura. A idade já pesava, ele já andava curvado e era difícil falar-lhe. A mulher já tinha morrido e os filhos, para grande mágoa sua, imigraram. Estava mais e mais centrado sobre si. Passava horas sentado nestes mesmos degraus abaixo da estátua onde estamos.

Até que um dia diz-se que um casal espanhol estava de passagem aqui pela aldeia. Ela olhou para a estátua e disse "mira, que es esto?", e o marido respondeu-lhe "es un coño cualquier nacionalista". E o coração do velho gelou. Ele percebeu o que eles disseram, e gritou com eles, e tentou explicar-lhes que não era nada disso. Mas eles não entendiam o português da aldeia que o velho falava, e acabaram por fugir dele. Dizem que ele nesse dia viu que a língua de Camões só fez com que ninguém o entendesse. Para todos os efeitos, se não o liam como deve ser, era como se ele não escrevesse.

E o velho Ernesto, depois disso, passou meses fechado dentro de casa. Dizem que quando saiu foi para ir ao café central ser entrevistado por um jornalista que tinha vindo de Madrid. Recebeu-o como a um amigo, falou-lhe em espanhol e deu-lhe várias folhas com os seus poemas escritos em inglês. Traduzidos por ele mesmo. E os poemas dele começaram a vender-se muito bem.

Coitado, ele é que já não aproveitou o dinheiro. O Ernesto morreu pouco depois. No dia em que morreu, alguém deixou aqui esta frase escrita a letras pretas escorridas: "línguas velhas só dão para burros". Há quem jure que viu o próprio Ernesto, horas antes de falecer, a pintar estas palavras nas costas da própria estátua. E por isso o velho nunca as apagou.

Vejo que o amigo não acredita neste fim, pois não? O casal espanhol a quem contei esta história de manhã acreditou. Sorriram muito para mim e disseram "que bien". Mas depois cada um só me deu dois euros. Duas moedinha. Sim, lá por a moeda dos dois euros ser a moedinha maior, não deixa de ser uma moedinha. E agora à tarde está a ser ainda mais fraco. Tenho que inventar uma história melhor, porque a dois euros de cada vez não arranjo o suficiente para me ir embora deste fim de Mundo. Compreende, amigo?

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Desafio XLVIII - Resposta

There's little in taking or giving,
There's little in water or wine;
This living, this living, this living
Was never a project of mine.
Oh, hard is the struggle, and sparse is
The gain of the one at the top,
For art is a form of catharsis,
And love is a permanent flop,
And work is the province of cattle,
And rest's for a clam in a shell,

So I'm thinking of throwing the battle
Would you kindly direct me to hell?


Estavam os dois sentados no café. Passados tantos anos, reencontraram-se. Tinham sido irmaos em tempos. Longiquos, longiquos tempos em que a vida era simples e as responsabilidades caiam sobre o tipo de ego que se não quer ter. Longos e ténues tempos em que eles eram irmaos, em que eram iguais.
O homem loiro acendeu o cigarro e , discretamente, olhou para o seu amigo de infancia, para o seu irmao de sangue. Ainda hoje sentia a culpa inocente de ter sido bem sucessido, de ter um ego bélico, de ter conseguido quebrar todas as convenções ridiculas que o estrangulavam. Que estrangularam os dois. Ainda hoje sente culpa por o não ter conseguido libertar , o seu irmao de sangue. O seu único irmao neste mundo tao cru.
O outro, calmo, tranquilo e alegre tentou introduzir um topico de conversa mas eles já não eram nada um ao outro. E o homem moreno sabia-o. Mas gostava tanto do seu irmao naquele dia chuvoso como gostava quando eram crianças. Tinha um orgulho no irmao, por ter sobrevivido, por ter conseguido reunir um grito mudo e ter-se libertado. Lá no fundo sabia que nasceu a ser um caso perdido e que a fé que o irmao tinha nele era inutil. Ele nasceu condenado e ia morrer condenado. Acendeu tambem o seu cigarro e fumou-o como se fosse o ultimo e esticou uma folha de papel ao irmao. Ficou espantado e sempre fora perspicaz , penteou o cabelo loiro como demonstraçao de nervosismo. E medo. Ninguem connhecia o seu irmao melhor que ele. Leu o papel e disse-lhe “Não. Não o farei”. O outro perdeu o sorriso. Ele tinha de aceitar era a sua única hipotese de conquistar alguma paz. Tentou convence-lo:
“Esta vida, esta forma de vida, ah nunca foi uma ideia minha. Nunca quis ser isto mas é preciso cobardia para rejeitar o que sempre fui.Sempre fui isto, um pouco isto. Há um pouco disto em todo o lado, na àgua, no fogo. Há uma parte moribunda em cada canto do mundo. Ate em ti. Mas sempre foste melhor que isso, quem me dera ser como tu!
O outro continuou a dizer um Não definitivo e assustado. O não ia fazer. E disse-lhe que eles sempre foram iguais, ele simplesmente tinha tido sorte porque Deus já morreu há muito. E outro, na sua alegria triste existencialista, deu-lhe um sorriso triste e continuou:
“Entende, o amor é simplesmente um continuo suceder de fracassos se não achares que existe algum proposito no mundo e eu sinto-me condenado a ser isto. Sinto-me vendado e encurralado por mim. Por todos os que me querem bem. So me magoaram mais com um amor que me tinham . Sempre foram incapazes de me compreender, sempre me desejaram o melhor que , ao não se adequar a mim, me foi assassinando aos poucos.”
“Eu sempre te compreendi . E não faço isto. Nem pensar.”Nos seus olhos tao duros, tao resistentes e tao estrategos , o azul ganhava uma lágrima de espelho. Não ia fazer aquilo que o seu irmao lhe pedia.
“Por favor, so te peço que garantas que vá para o Inferno. Sempre me condenaram ao paraiso e a uma vida longa cheia de um sucesso vazio que nunca se adequou a mim. E perdi o contacto contigo, meu irmao. E vi-te a seres tu e a brilhares enquanto eras orgulhosamente tu. Vi o reflexo de quem desejava ser mas nunca poderia. Concede-me uma boa morte, concede-me um fim digno e honravel: está lá, no penhasco que dá para o mar. Porque vou morrer de qualquer forma porque já estou morto há muito. Esta la por mim. Por favor.”
O homem loiro olhou o irmao nos olhos. A tristeza era tao violenta que perdeu a única lagrima que tinha. O outro voltou a insistir: por favor, é a maior prenda que me podes dar. Garantir que por uma vez vou para o sitio que quero ir. Ambos sabemos que o Paraiso e bastante aborrecido.

Saiu do penhasco com o seu sobretudo negro a esvoaçar, tenebrosamente, em unissono com o seu longo cabelo loiro. Não conseguiu olhar para baixo e ver o seu irmao desfeito. Mas o que o mais incomodava era a quebra da metáfora horrivel que definia o seu irmao de sangue. Finalmente o corpo estava tao desfeito quanto o ser dele, finalmente tinha um sitio para ir chorar a catastrofe que a sua vida tinha sido, que a sua curta vida tinha sido. Finalmente, podia ir chora-lo aquele penhasco. Pelo seu irmao de sangue e por si. Afinal, tambem morreu qualquer coisa dele naquele dia.
Nunca mais foi o mesmo homem. Perdera o seu irmao de sangue, o seu irmao num mundo cru e torturoso. E era injusto, ambos eram inocentes, por isso é que queriam ir, gentilmente, directos para o Inferno.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Desafio XLVII- Resposta

"Nada do que se sonha é tao estranho como aquilo que se vê"

Quando se sentou naquele café com ele soube que nada seria igual ao que tinha sido. Conhecia-o vagamente de vista, eram vizinhos, viam-se frequentemente mas tornaram-se amigos (primeiro) numa festa qualquer. Aconteceu tudo de uma forma tao estranha e genuina que não lembrava nenhum livro cheio de um romance dramatico. Por isso é que o sorriso dele a encantava. Não tinha visto nenhum sorriso como o dele, como aquele meio sorriso fundo cheio de desafio, amor e timidez. E profundidade. Uma profundidade que o cabelo desalinhado dele não preve a não ser que se repare nos peculiares pormenores dele que demonstram uma genialidade lucida que a loucura encobre.
Ela tremeu levemente quando olhou para os olhos azuis dele e ele sorriu, deu-lhe aquele meio-sorriso que so ele tinha. As conversas que tinham eram leves e, inesperadamente profundas. A voz dele era sempre de seda quando falava com ela e as maos enormes ganhavam uma suavidade que a fazia querer acariciar a pele branca. Mas nada do que fazia era convencional, não , muito pelo contrário. Tudo o que conquistou dela conquistou por não ser convencional, por ter sido sempre honesto, por ter sido sempre ele. E, ela sempre pensou, que so se apaixonaria por um monstro, um monstro reflexo dela. Alguem cruamente perspicaz, alguem cheio de uma beleza dificil de se aceitar por ser muito maior que este Universo. Ela sempre amou monstros e ele era um monstro com uma textura diferente. Era simplesmente louco, ele. A imaginaçao voava com frequencia, a realidade facilmente perdia lugar a uma ideia para a proxima banda-desenhada que criaria. E era muito grande, muito bruto, muito pouco romantico. Menos quando falava com ela, quando era com ela ele ganhava uma qualquer sensibilidade que o tornava encantador sem o tornar minimamente comum. Ninguem era igual a ele, nada era comparavel ao longo, vermelho e eternamente despenteado cabelo dele. Nada se comparava a agressividade que ele demonstrava quando um principe , cheio daquelas caracteristicas baratas que encantam as meninas nas historias de encantar, se aproximava dela. E era entao que ela se apercebia que havia um pouco de monstro nele. como havia nela.
Nunca pensou ama-lo. Ela gostava de monstros, talvez por se identificar com eles, talvez por conseguir salva-los da melancolia existencial ao quebrar uma solidao que se instala quando se cresce a parte da sociedade. Mas nunca sonhou que amaria um louco, um louco como ele era. Nem no seu sonho mais excentrico alguma vez pensou que um louco, um sonhador acordado como ele era, podia ter tantas ideias lucidas em comum com ela. Nunca sonhou que o rapaz que morava no predio em frente que ouvia as suas musicas preferidas e passava a vida a imaginar situaçoes de banda desenhada podia ser a pessoa, no mundo inteiro, que mais semelhanças tinha com ela. E amava-o. Não, nunca imaginou isso ela.
Ele acariciou-lhe a mao. A dela era tao mais pequena que a dele, perdia-se inteiramente na enorme branquidao da mao dele. Afinal, ela era o monstro, sempre fora o monstro.
Sempre comentara que o vizinho doido que morava em frente a ela era dono de uma beleza diferente das outras. Mas nunca imaginou ficar presa a algo tao diferente, tao excentrico, tao anti-social. Mas viu isso acontecer e o meio sorriso dele afastou-lhe todos os pensamentos. Nunca ela pensou nisto, nesta realidade em que é ela o monstro. Sonhou tantas vezes, tantas cenas excentricas, tantos cenarios diferentes mas nenhum onde ela fosse o monstro e a bela fosse louca. Loucamente lucida . Mas nada do que se sonha é tao estranho como aquilo que se ve, as vezes.

Desafio XLIX - Resposta

"C'est par la musique qu' a commencé l'indiscipline"


A verdade é que ela sempre fora louca. Mas não com uma loucura daquelas que são geniais e, na intimidade, quase insuportaveis. Nem daquelas loucuras sociais que abraçam novas amizades facilmente. Não, ela sempre teve uma loucura diferente. Pacata, tranquila. Defini-a, a loucura dela. Como se em algum momento alcançasse um extremo e o mundo tornava-se invertido. Era uma loucura lucida e logica que quando era activada a transpunha para outro mundo.
Era um dia de Outono profundo, um dia perfeito para se ver o Mar no seu horizonte azul e frio. Combinaram encontrarem-se na praia sombria longiqua da cidade, ela e os amigos. Fora uma tarde agradavel e ela tinha tido uma conduta perfeitamente anormal. Nunca respondia claramente às perguntas que lhe faziam mas não deixava de responder. Tinha sempre uma ideia que era levemente descontextualizada, mas não estranha o suficiente para causar o sentimento de choque. Adoravam-na os amigos, era um genio discreto e tranquilo, carinhoso e cheio de uma compaixao que não viam em mais ninguem. Ela é que os não adorava a eles, tinham sempre a sensação que não lhe chegavam, que ela precisava de algo mais. Gostava dela desde a primeira vez que a vira com a sua beleza excentrica e funda, com o seu rosto vindo do futuro, Luis sempre gostara dela e ela parecia nem nunca ter reparado nisso. So se importava com música ela, so lhe interessava a musica. As bochechas ficam vermelhas da excitaçao, os gestos tornavam-se rapidos e confusos, os olhos ganhavam um brilho exímio que a presença dele nunca lhe causava. E ele não podia competir com a música embora gostasse muito de vencer essa batalha. E, se ele vencesse, ela nunca mais ficaria assim a ouvir musica, afinal metade dela era igual a ele.
Mas o amor revela-se como essencia da arte nos momentos mais estranhos e desconexos. A camioneta que os levaria de volta para a cidade nunca apareceu e entraram em panico, o grupo de jovens. A praia sombria, no final do mundo, a duas horas a pé da cidade. Entraram todos em pânico menos Luis que esperou que o seu amor entrasse em panico para, convencionalmente, a confortar. Mas , como sempre, a música chegou primeiro. Quando todos se entregaram ao desespero, ela pegou no mp3 e começou a ouvir musica. Estavam todos a discutir o que iriam fazer e ela olhava para o mar e repetia que o mar era lindo e que adorava jazz. Perguntavas-lhe, repetidamente, se já alguma vez tinham ouvido jazz. Ninguem queria saber, tudo o que eles queriam era chegar a casa, a salvo, aquecerem-se do frio gélido que se tinha instalado nos ossos, entre os fios de medo que nascia no espirito de quem considera que está bastante perdido.
E foi ela que resolveu o problema. Disse-lhes para irem a pé. Disseram-lhe que era perigoso e ela respondeu que jazz era fabuloso, sentia a alma a encher-lhe o coraçao com uma coisa qualquer. Esperança, talvez? Optimismo. Amor estava intimamente a uma visao aberta que se focava nos pormenores que nunca antes tinham sido vistos. Amor era optimismo. Iam a pé e era escusado chorar nada mais havia a fazer. Foi a resposta dela e depois foi o silencio dela. Continuou a ouvir musica, a cantar a melodia que estava a ouvir e a perguntares-lhe de tempos em tempos, se já tinham ouvido jazz. Mandaram-na calar muitas vezes e ela parecia não se importar minimamente. Parecia não querer saber deles para nada. Luis chamou-lhe doida, a rejeiçao em pessoas que se dedicam a estabilidade, resulta sempre em insultos detestaveis e crueis. Mas ela so se importava com a musica e respondeu-lhe: so agora é que descobriste? Já ouviste jazz? Ah, este ritmo é fantastico. É duro mas é melodico, como esta situaçao. Ele afastou-se dela e ela sorriu-lhe. Afinal sempre soube, sempre soube tudo, simplesmente nunca gostou dele. O coraçao tinha uma melodia que ele não podia compreender. O amor não se podia ajeitar.
Chegaram a casa todos em perfeito estado. Todos surpreendidos com ela, a rapariga cheia de uma beleza excentrica e diferente que , durante duas horas terriveis e sombrias, so falou de jazz. Mas eles já deviam saber, a musica é o começo da indisciplina. E ela sempre fora louca, sincopadamente louca. Por isso é que gostavam tanto dela.
E, desde aquela tarde, em que ela descobriu o quanto amava a musica que se tornou verdadeiramente indisciplinada. Passou a fazer unicamente aquilo que a fazia ser ela propria. É a maior indisciplina de todas, quebrar a convençao da miseria de uma estabilidade vazia.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Desafio XLVII - Resposta

"An artist has no home in Europe except in Paris."
Friedrich Nietzsche


Se uma partícula encontrar a sua anti-partícula, é certo que ambas se destroem.

E esta história, era uma história igual a tantas outras, exceptuando que durante o tempo em que foi contada parecia diferente.
Ela era muito nova quando começou a fugir de casa e a encontrar o amor em camas vazias ou caixotes do lixo. Perdeu a virgindade antes de ter perdido a cabeça, pensava ela que era assim que se debatia dos males do mundo e deixava a loucura consumir-lhe o cérebro.
Soube argutamente, escolher os homens da sua vida, era neles que confeccionava a sua estranheza detalhada e era neles que encontrava a sua inspiração. Dizia ela que escrever assim, era melhor, primeiro sentia o horror da vida e depois, quando se fartava de vaguear voltava para a secretária e escrevia sobre a sua vida. Por isso, tentava albergar dentro do seu tenro corpo todos os amores e ódios e mudava de tema e de coração como quem muda de roupa para ver qual lhe assenta melhor.
E na verdade, foi assim que foi tendo sucesso, na sombra das pessoas que escutavam a sua história e a achavam diferente e ousada, sem consultarem no livro o tamanho da aldrabice dela ou o tamanho da sua própria mediocridade.
Um dia, convenceu o seu amante a levá-la a Paris, pois sabia desde criança que era lá que os artistas se fixavam e ela queria agora escrever na capital francesa, pisar todos os pontos obrigatórios para se ser artista – e julgava ela que aquela vida pensada ao pormenor de originalidade era tudo o que o era preciso.


Como eu fui parar a Paris, foi um acaso da sorte. Em nova, perdi lá um amor e nunca pensei lá voltar. Paris ecoava-me a solidão nas ruas, como se eu estivesse permanentemente a percorrer aqueles corredores de escola vazios em fim de tarde em que todas as crianças já tinham ido para casa menos eu, caída no esquecimento.
Por isso, ao contrário dos artistas, concentrei-me em curar as minhas feridas com álcool que me anestesiasse e que afastasse aquela dor física que eu sentia. E por isso, ao contrário dos artistas afastei-me de Paris.
Em ambientes hostis de aborrecimento, estendi as garras da minha existência, exigindo um direito às lágrimas e à minha tristeza tão ácida que me corroía mais o fígado do que o álcool.
E bebia e fumava sozinha, na escuridão dum quarto. Permanecia por descobrir, atrás de uma cortina negra que me separava da rua - enquanto esperava que aquela dor passasse.
E como nunca engoli os comprimidos de resignação que me deixavam todas as noites em cima da mesa-de-cabeceira com o copo de água para a minha ressaca permanente, fui-me rebelando contra os relógios de parede, contra as portas abertas e os exames obrigatórios. Cheguei a um ponto em que já nem suportava os horários dos autocarros e nesse dia, dei por oficial a minha doença.
Como para me curar dum mal que ninguém sabia qual era, sugeriram-me que viajasse, que apanhasse outros ares. E lá me levantei dum sofá como se o tempo, ele próprio me, tivesse criado artrite nos pensamentos.
Arranjaram-me um emprego em Paris, por ironia. E de malas pouco cheias, voltei àquela cidade de solidão, onde o meu amor ainda andava perdido. E a primeira coisa que fiz, foi percorrer os túneis do metro, à procura dele. Encontrei pedaços dele nas frestas das paredes e nos lugares vazios. Mas voltei para casa, nesse dia, sem o ter encontrado. Nos dias seguintes, fugir à ausência dele tornou-se no meu vício, a única heroína que acalmava o meu espírito.
Até um dia. Era Inverno e chovia muito e eu estava cansada daquela viagem e de todas as outras que nunca fizera. Percorria o metro uma vez mais, e na multidão desenfreada não havia qualquer sinal dele, como sempre. As cabeças mexiam-se como numa dança ondulante e eu imaginei os campos de searas frescos a ondularem ao sabor daquele vento. Quem me dera o céu azul, o vento na minha cara, o chão fresco da terra. Mas só havia a chuva violenta de Paris, os semáforos a gritar com os carros, e a multidão apressada em esconder-me o meu amor. Então, devagar deixei-me escorregar pela parede, enquanto de olhos fechados comecei a cantar. Era uma canção antiga, que me veio à cabeça, falava da multidão e dum amor de braços abertos que se perde. E eu não encontrava o meu. Fui cantando enquanto o frio me consumia: minha voz aquecia-me. Quando abri os olhos, as minhas mãos estavam como congeladas e à minha frente, havia um generoso balde de moedas. Alguém passou e disse de forma comovida, que eu cantava aquela música como a Edith.
E lá do fundo, uma rapariga que me fitava enregelou-se com este comentário. Parecia-se estranhamente comigo, tinha o mesmo cabelo apesar de parecer ser muito mais nova e na sua mão estava pousado um livro e uma agenda como se estivesse estado a escrever.
Olhei para ela de baixo para cima e vi quem eu poderia ter sido. Vi de forma clara a razão pela qual eu nunca encontraria o meu amor perdido. E fechei novamente os olhos.

Mas a rapariga não prosseguiu mais, porque chegou a casa e deixou de escrever.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Desafio XLVIII - Resposta



É belo, seja qual for o ângulo por que se olhe. O olhar mais distraído é imediatamente captado pela profusão de cores nos pés dele. Cores que se articulam sem se misturar, que são florais sendo sóbrias. Cores que parecem solidificar uma base de apoio flutuante, um caminhar nas núvens seguro, um voo em terra. E depressa o olhar é conduzido pelo caminho ascendente de um manto hirto, no topo do qual nasce um pescoço e um rosto. O rosto adivinha-se masculino, mas está voltado, misterioso. Como se o homem que ama necessitasse de largar o Mundo e focar-se na mulher de tez pálida e olhos fechados que se entrega a um abraço e a um beijo ténue. O cabelo dele é crespo, e adivinham-se algumas folhas pontuando os caracóis. Destoa, individualizado, do cabelo escorrido e claro dela, onde as flores formam uma coroa. Pelo cuidado dele, ela é uma rainha. Uma rainha abandonada, ajoelhada, num acto quase sagrado de amor. Enquanto todo ele são rectângulos, nela tudo é circular e floral. E, ao seu redor, há uma atmosfera dourada, solene. Uma atmosfera que os separa do Mundo. Os dourados resplandescentes dão-lhe perspectiva, vagueiam na luz incidente e tornam-no diferente consoante o ângulo por que olha. Mas sempre belo.

“Gostas desse?”, perguntou-me ela ao entrar na sala. “Naturalmente”, porque afinal foi pelo Klimt que vim a Viena. “Eu não”, foi a confissão orgulhosa que ela me fez. Inaceitável para mim. E por isso fiz-lhe o roteiro do quadro, de baixo para cima. Expliquei-lhe as figuras, as ambiências, e até a técnica. Ela mantinha um olhar estupidamente fixo enquanto eu falava. Não parecia seguir com os olhos as minhas indicações, não parecia muito interessada nas ténues variações de cor e material. Ela já se tinha decidido.

“Pois, tudo isso pode ser verdade. Mas isto é muito pretencioso. Isto está pintado com ouro verdadeiro? Já viste bem o tamanho disto? Quanto ouro é que ele para aqui meteu? Não suporto estas coisas tão burguesas. E como se não bastasse, está aqui enfiado numa caixa de vidro, como se fosse superior aos outros quadros. E afinal, são só duas pessoas a beijar-se.” Ela terminou o seu discurso, e afastou-se calmamente, convencida de ter rematado a conversa e ficado com a última palavra. Porque afinal, palavras e argumentos seriam curtos para lhe responder. E então caminhou lentamente à volta da sala, fixando outras obras expostas.

Desviei o olhar do quadro e mantive-o fechado nela. Até então, a nossa viagem tinha sido perfeita. Até então, a nossa vida tinha sido boa. Mas tudo em nós gritava diferença. Eu, encerrado num monocromatismo de camisa, calças de bombazine e sapatos, parecia dez anos mais velho. Ela, expelia luz pelo arraial colorido da sua camisola de alças vermelha, calças largas com riscas verticais castanhas e laranja e sandálias. Juntos, eramos imiscíveis. Dir-se-ia que eu era feito de quadrados e ela de círculos.

Mas foi também naquele museu de Viena que a compreendi o velho Klimt. Aprendi que o belo chavão de extremos que se complementam não passa de uma frase feita. Não há complementariedade nenhuma. A beleza é feita da tensão e do choque. Os quadrados e os círculos juntam-se, tocam-se, mas nunca se misturam.

E aquela mulher, que agora se preparava para voltar as costas ao Klimt e deixar a sala, é bela, seja qual for o ângulo por que se olhe. Naquele instante, desejei-a muito. E a luxúria é o ouro do amor. Eu e ela, nós somos belos, seja qual for o ângulo por que se olhe.

Por isso, movi-me rapidamente na sua direcção, antes que o seu pé esquerdo tocasse o chão semelhante da sala seguinte. Os olhares voltaram-se para mim, como se eu fosse a nova atracção, a obra viva. Aproximei-me dela lateralmente, e, num gesto seco, coloquei-lhe o braço esquerdo por cima dos ombros. Apoiei ambas as mãos no seu rosto e voltei-me para, com a subtileza prolongada que apenas a intimidade traz, lhe beijar o rosto, junto ao canto do lábio que ela voltara para mim. Naquele beijo, eu coloquei toda a electricidade que a presença dela me provoca e que a ausência dela me faz doer. E prolonguei aquele contacto suave dos meus lábios com a pele dela. E por entre a luz amarelada de dois ou três flashes das máquinas fotográficas de turistas japoneses, ela abandonou a sua mão esquerda no meu peito, e envolveu o meu pescoço com o seu braço direito magro.

E a última coisa que vi antes de cerrar os olhos e sentir a tontura do momento cair sobre mim, foi também os olhos dela a fecharem-se, e o canto da boca dela a ser trazido mais para junto da minha por um sorriso. E eu juro que, naquele momento, os joelhos dela enfraqueceram e dobraram-se um pouco. O nosso amor, assim posto, valia todo o ouro do Mundo. Era belo, seja qual for o ângulo por que se olhe.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Desafio XLIV -Resposta

http://www.youtube.com/watch?v=Ek4D7Rrq144

Ela disse-te, o amor por si só vale menos do que se convencionou que valeria. E não importa que a tivesses amado (ou que a ames ainda) se nunca compreendeste a genialidade da essencia do ser dela. Que importa que lhe tenhas oferecido a conquista do mundo como presente se tudo o que ela desejava era a excentricidade de uma liberdade aberta nos pequenos pormenores do quotidiano? Tudo o que ela desejava era ser livre, ser livre aqui onde ninguem é. Tudo o que ela desejava era ser ela, exponencialmente ela. Tudo o que lhe ofereceste consistiu naquilo que gostavas que ela desejasse mas o amor não se sustenta com isso.
Aínda hoje lamentas a ida sem volta dela, para longe de ti, para longe dessa realidade onde viviam os dois. E ainda hoje lamentas a felicidade dela , o alivio dela. Porque, de facto, a amaste e ela amou-te mas o amor não aguenta isso. Que importa que a amasses mais do que alguma vez amaste a realidade onde estavas preso, que importa que a amasses mais do que amaste a tua vida seria e adulta? Nada. Porque ela era discretamente genial, a forma como se ria e do que se ria era genial, era peculiar.Nunca percebeste porque é que se ria das desgraças, nunca viste que não se ria de uma qualquer desgraça. Oh não, nada disso. Ela ria daqueles momentos em que alguem anulava o pessimismo , que o tornava em pouco. Isso garantia-lhe toda a força bélica e resistente que tinha no peito e pela qual sempre a admiraste. Era porque se ria das desgraças, ela. Tornava-as pouco, explorava-as e dissecavas ate se tornarem um pormenor quotidiano como outro qualquer. Por isso é que era tao resistente, tao forte. A vida era uma aventura e se tudo for bom é um caminho vazio. A arte reside no que fazes com as adversidades que te aparecem. E ela ria-se, criticava , ironizava e ria-se. Por isso é que conseguiu deixar-te deixa-la quando a tornaste infeliz por a não deixares rir-se.
Mas tu nunca entendeste e ela sempre te disse que o amor, por maior que seja, não aguenta girar no sentido contrario do mundo. Sempre te disse que a tua vida não tinha desgraças, era perfeita, e por isso mesmo, vazia. Sempre te disse que te não sabias rir porque a vida, a tua vida, era demasiado seria e adulta e economica. Sempre te disse que “A vida é demasiado curta para ser levada a serio” e tu nunca esboçaste um sorriso pela ironia veridica nesta frase. Não, tu nunca entendeste porque é que ela idolatrava o Oscar Wilde.
E, naquele dia cheio de Sol, em que ela correu para ficar quieta a olhar fixamente para o tumulo dele, tu nunca entendeste a protecçao que ela sentia. So por estar la, no tumulo dele, sob o olhar dele. Nunca entendeste Oscar Wilde, nunca compreendeste o que a maravilhava nele.Nunca entendeste nada.
E, nesse dia, ela deixou-te , perspicazmente, deixa-la. Porque sempre foi mais estratega do que tu alguma vez foste. A vida dela não era seria, a imaginaçao que lhe escorria e cada pensamento tornou-a resistente e forte. A tua vida era demasiado seria para não ser insignificante.
Hoje, passas por ela, e magoa-te tanto como te magoou naquele dia. A felicidade dela, a iluminaçao do ser dela e o teu, cinzento baço, distorcido e tenue. Moribundo. Porque nunca entendeste que o riso é um dos teus bens mais preciosos. O optimismo verdadeiro consiste em ver a alternativa, nem que seja a mais ridicula. Não, nunca entendeste que “estamos todos na lama, mas alguns conseguem ver as estrelas.” E ela nasceu a saber isto, o Oscar Wilde resumiu um pensamento confuso dela numa frase simples.